quarta-feira, 12 de abril de 2023

As hierarquias julgam-se intocáveis, não apenas nas forças armadas

 

Ainda temos a memória fresca do suposto caso de indisciplina militar na recusa de sargentos e de praças da Marinha em cumprir a missão de escoltar um navio russo em trânsito nas águas do Funchal, alegadamente por falta de condições de segurança do patrulheiro NRP ‘Mondego’. Com efeito, só a hierarquia tem competência para fazer tal avaliação. Resta saber se, quando o mesmo patrulheiro, por avaria, não cumpriu a missão de retirar das Ilhas Selvagens um grupo da Polícia Marítima e do Instituto de Conservação da Natureza e teve de ser rebocado, foi necessário um relatório elaborado e aprovado pelos competentes superiores hierárquicos.    

A propósito, recordo-me de que, ao tempo de capelão militar num regimento de infantaria, discordei das indicações técnicas do capitão engenheiro que foi ali chamado para resolver um problema de drenagem das imediações da capela.

O comandante do batalhão de comando e serviços, presente na ocasião, fez reparo pelo facto de eu contradizer o capitão, pois ele era engenheiro e eu não. E eu, pedindo licença, retorqui, dizendo que, talvez no inverno seguinte, teria razão. Meu dito, meu feito. Como não fui atendido no verão, no inverno o capitão engenheiro teve de voltar ao local.

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Estes considerandos vieram-me à tona a propósito do incidente médico-cirúrgico em curso no Hospital de Faro, a que a comunicação social tem dado relevo.  

A médica interna Diana de Carvalho Pereira apresentou queixa na Polícia Judiciária (PJ) sobre onze casos de “erro/negligência” no serviço de cirurgia do hospital de Faro, entre janeiro e março.

Segundo o que a médica relata na sua conta na rede social Twitter, nos casos ocorridos, dos 11 doentes em causa, três morreram, dois estão internados nos cuidados intermédios, os restantes tiveram lesão corporal associada a erro médico, que variam desde a castração acidental, perda de rins ou necessidade de colostomia para o resto da vida.

Na sequência da queixa, o Ministério Público (MP), como anunciou, a 10 de abril, a Procuradoria-Geral da República (PGR), instaurou um inquérito sobre alegados erros e casos de negligência no serviço de cirurgia no Hospital de Faro.

Também a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) anunciaram, no dia 10, que vão investigar a alegada negligência no serviço de cirurgia do Hospital de Faro para “cabal esclarecimento” das denúncias.

“A ERS e a IGAS, após terem tido conhecimento dos factos relativos a eventuais casos relacionados com alegadas negligências ocorridas no Centro Hospitalar Universitário do Algarve – Hospital de Faro, decidiram, no quadro das suas competências, abrir, respetivamente, um processo de investigação e um processo de inquérito que permita o cabal esclarecimento destas acusações”, revelou fonte do regulador à agência Lusa, avançando que as duas entidades decidiram cooperar, de modo a obter “todos os esclarecimentos necessários, de forma complementar”, sobre os alegados erros e casos de negligência denunciados à PJ por uma médica interna do hospital.

Entretanto, a 11 de abril, após uma reunião com o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a Ordem dos Médicos (OM) decidiu criar uma comissão técnico-científica independente, com o objetivo de avaliar os alegados erros e casos de negligência no serviço de cirurgia do Hospital de Faro, pois, como referiu, o bastonário da OM, Carlos Cortes,  “há indícios de alguma gravidade”.

“Acertámos com o Ministério da Saúde a criação de uma comissão técnico-científica de peritos, médicos independentes, que irão avaliar as denúncias que foram transmitidas e que são do conhecimento da Ordem dos Médicos”, disse o bastonário da OM, em conferência de imprensa, no edifício da OM, em Lisboa.

“Perante a especificidade daquilo que nos foi relatado e perante a gravidade das queixas que nos foram transmitidas, era importante termos aqui uma intervenção célere, por um lado, e consequente, pelo outro, para salvaguardar a segurança dos cuidados de saúde (...) e para assegurar também que as ‘leges artis’ sejam respeitadas, isto é, as práticas médicas corretas sejam cumpridas”, observou.

Carlos Cortes adiantou que teve conhecimento da denúncia na semana anterior, após o que a comunicou ao conselho disciplinar da secção regional do sul da OM, ao MP, à IGAS, à ERS, ao Ministério da Saúde (MS), à Administração Regional de Saúde do Algarve e ao Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve. A esta entidade foram pedidas “explicações urgentes”. “Decidimos, em conjugação com o Conselho Regional do Sul, fazer uma primeira visita, uma primeira avaliação, no Hospital de Faro, conjuntamente com o Conselho de Administração, a direção clínica, a direção do serviço, os médicos especialistas do serviço e os médicos internos do serviço, para fazer um primeiro enquadramento”, especificou.

E disse que esteve em “contacto telefónico”, durante o fim de semana, com a médica que fez as denúncias e que vai, em conjunto com Conselho Regional do Sul da OM e com o Conselho da Sub-Região do Algarve da OM, acompanhar esta situação de forma próxima.

Carlos Cortes lembrou que o processo está a ser avaliado e que, além da comissão de avaliação independente, o Hospital de Faro terá de fazer a análise interna e a IGAS a sua intervenção.

Questionado sobre se os médicos que cometeram alegados erros e atos de negligência haviam sido alvo de suspensão, o bastonário disse que isso “é um aspeto que tem a ver com o Conselho de Administração” do Hospital de Faro.

Entretanto, o Conselho Regional Sul da OM agendou para o dia 14 de abril, uma reunião com o Conselho de Administração da unidade hospitalar do Algarve.

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Não obstante, já está tomada uma decisão, a esperada. O diretor do serviço de cirurgia, Martins dos Santos, disse ao Público que a profissional de saúde “não exercerá mais” naquele serviço, porque nenhum dos cirurgiões a quer tutelar. E a médica internista não pode exercer sem a supervisão de um médico especialista, pois ainda está a tirar a especialidade.

A própria Diana Pereira afirmou ao jornal que não quer “trabalhar num hospital deste tipo” e que a sua intenção era despedir-se, logo após ter apresentado a queixa.

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Como escreve Catarina Simões (https://www.nit.pt/fit/saude), que ouviu Diana Pereira, para o NiT, esta é médica interna do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA).

Em janeiro começou o internato em cirurgia, departamento onde encontrou, segundo diz, “uma realidade chocante”. No início de abril, a profissional de saúde, de 27 anos, natural do Porto, apresentou queixa na PJ e o caso seguiu para o MP. Perante a gravidade das acusações, o hospital abriu um inquérito interno com caráter de urgência. O diretor clínico pediu a intervenção da OM, cujo bastonário garantiu que se tratava de “um assunto prioritário”

A internista recorreu às redes sociais para expor o caso, alegando que “foi inventada uma história de insanidade mental” para a difamar. Porém, garante estar na posse plena das suas faculdades psíquicas, tendo, inclusive, um atestado médico que o comprova.

No início de 2022, fez um estágio de três meses em cirurgia no Hospital de Faro, integrado na formação geral, que inclui períodos em vários serviços. Então, foi integrada numa equipa que tinha boas práticas, pelo que escolheu cirurgia como especialidade. Entretanto, prosseguiu o estágio geral no centro de saúde e pediu para fazer horas extra no hospital de Faro.

Como havia maior necessidade na equipa do cirurgião em causa, foi escalada para fazer urgências às terças, à noite, com os respetivos profissionais. Rapidamente percebeu como trabalhavam e não teve boa experiência. Quatro semanas depois, desistiu de fazer essas horas, por medo de trabalhar naquelas condições. Ao invés do suposto, atendia pacientes, sozinha, e fazia pequenas suturas. Em janeiro, no começo do internato de cirurgia, foi colocada, nessa mesma equipa. E foi durante estes meses que ocorreram as situações agora denunciadas.

No ano de formação geral tinha ouvido comentários sobre o médico em questão e sobre a sua falta de profissionalismo. Nas cirurgias havia sempre algum especialista a dar-lhe indicações. E uma interna recusou ser orientada por ele.

Assim, por medo da conduta do orientador e por ter pouca experiência, estudava os procedimentos das cirurgias programadas. Consultava os livros e os vídeos disponibilizados nas plataformas para internos. E viu coisas que não batem certo, envergonhando qualquer profissional de saúde.

Entre janeiro e março, reportou 11 casos do que considera erro e/ou negligência. Por exemplo, um dos doentes esteve, durante uma semana, com compressas esquecidas no abdómen.

Não relatou o que viu ao diretor de cirurgia ou a outro superior hierárquico, pois, reiteradamente,  viu que estes cirurgiões, que estavam sempre presentes, não faziam nada. Por isso, começou a pedir exames, quando suspeitava de práticas clínicas indevidas. Descobriu que, muitas vezes, estava correta. Reuniu todas as provas necessárias e fez queixa na PJ, a 1 de abril. No dia seguinte, reportou os casos à OM, à ERSE e à Administração Central do Sistema de Saúde (ACES), via e-mail. A 3 de abril, informou a direção clínica, a administração do hospital e a diretora do internato. No dia 4, informou o diretor de serviço. Seguiu a ordem hierárquica, de forma inversa, pois todos diziam que, naquele hospital, as queixas internas não davam em nada.

Costumava pedir os contactos aos familiares, para lhes ligar diretamente, porque o serviço tinha muitas solicitações. Muitos queixaram-se de sintomas estranhos. A outros informou-os, quando decidiu fazer a queixa, porque são as verdadeiras vítimas.

Logo após a denúncia, o diretor do serviço fez queixa interna da conduta profissional de Diana Pereira, alegando que isso teria de ser averiguado. Alegam uma falsa história de insanidade, que é desmentida por um relatório de avaliação psíquica. Não obstante (contraditoriamente, digo eu), é acompanhada por um psicólogo. desde a segunda semana do internato, pois não conseguia dormir bem e desenvolveu stresse laboral.

Não sabe o que vai acontecer ao seu internato. Isso será resolvido pela direção do internato e por outras entidades competentes. Atualmente, é uma interna sem orientador e com um péssimo ambiente no local de trabalho.

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Enfim, o que uma médica em fim de carreira não fez – que, pelos vistos, a apoia – fê-lo Diana Pereira no início. Como insinuei, a contradição entre a posse das faculdades psíquicas e o simultâneo acompanhamento psicológico podem anular ou atenuar a veridicidade dos factos. O zelo profissional, talvez aliado a sabedoria pretensamente superior, ditou a imprudência que a fez esquecer a hierarquia na empresa e no serviço público e a capacidade de defesa corporativa apontada à OM. É pena que, eventualmente, se venha a perder uma profissional de saúde e que os erros, a terem existido, não sejam punidos e, de futuro, evitados. Cairá por terra a badalada investigação sobre o caso? Terá a falta de recato da interna consequências irreversíveis?   

2023.04.14 – Louro de Carvalho

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