segunda-feira, 7 de março de 2016

A misericórdia e a liberdade

No IV domingo da quaresma do Ano C, lê-se e proclama-se, aquando da Liturgia da Palavra da Missa, a parábola do homem que tinha dois filhos, tradicionalmente denominada por parábola do filho pródigo e que muitos, entre os quais se conta o Papa Francisco, preferem designar por parábola do Pai misericordioso. A designação menos ajustada é exatamente a tradicional por acentuar a vida do pródigo esquecendo a postura do filho mais velho.
Francisco, na alocução que fez perante a multidão reunida na Praça de São Pedro no passado dia 6 de março, antes da recitação do Angelus, propôs que os crentes tomassem o Evangelho de Lucas e relessem as três parábolas da misericórdia que ocupam todo o seu capítulo 15.º: (vv. 4-7), a da ovelha reencontrada (melhor que parábola da ovelha perdida); (vv. 8-10), a da moeda reencontrada (melhor que parábola da moeda perdida); e, (vv. 11-32), a do Pai misericordioso. É óbvio que mais importante nas parábolas em causa o mais importante e edificante não será a postura da ovelha que se perde por capricho ou fraqueza, mas a atitude pressurosa e solícita do pastor que a procura e, tendo-a reencontrado, faz festa e pede a todos que se alegrem com ele, porque a ovelha foi encontrada viva e sã; o mais importante e edificante não será a casualidade da perda da moeda por descuido ou negligência da mulher, mas o facto da procura incessante e multímoda por parte da mesma mulher e, tendo-a readquirido, exterioriza a sua alegria e convida as amigas a que se alegrem com ela porque a moeda que tinha perdido foi encontrada em boas condições; e o mais importante e edificante não será a exigência do filho mais novo sobre a parte que lhe cabe da herança, o abandono da casa paterna e mesmo o seu regresso, mas a atitude do pai que, regressado o filho, que ele esperava paciente e esperançadamente, o deixou reconhecer o seu pecado, mas não lhe deixou continuar o discurso, antes o mandou reintegrar de imediato e fazer festa, porque o filho que estava morto, agora está vivo e são.
Visão limitada de leitor tem posto o acento na perda e pecado e, secundariamente, no achamento e regresso, ao passo que as parábolas da misericórdia são bem mais ricas em conteúdo.
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Antes de mais, é importante reler o contexto em que as referidas parábolas são apresentadas:
“Aproximavam-se dele todos os cobradores de impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da Lei murmuravam entre si, dizendo: Este acolhe os pecadores e come com eles.”
Parece que a ovelha e a moeda que depois foram reencontradas e o filho pródigo que regressou arrependido figuram aqui os cobradores de impostos e pecadores, disponíveis para ouvirem o Mestre, enquanto os fariseus e os doutores da Lei se sentiam bem na sua autossuficiência e no seu status próprio e, se acorriam a Ele, não era para propriamente O escutarem, mas para O experimentarem e murmurarem, autoescandalizados, porque ele acolhia os pecadores e comia com eles (cf Lc 5,30; 7,34). 
Depois, é de referir que a conclusão da primeira parábola é, da parte do Mestre, “Digo-vos Eu: haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão” (v. 7). E a conclusão da segunda é, Digo-vos: Assim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte”. A alegria que é apontada no céu ou entre os anjos refere-se efetivamente a um só pecador que se converta, encarado em termos gerais e comparativamente a noventa e nove justos que não precisam de arrepender-se. Porém, no caso do Pai misericordioso, a alegria apontada é o máximo e é de festa, traje novo, sandálias, anel e banquete. É alegria absoluta, não comparável, mas personalizada neste filho:
“O pai disse aos seus servos: ‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.’ E a festa principiou.” (vv. 22-24).
Têm razão os comentadores ao assumirem que o cap. 15.º de Lucas tem uma unidade literária na diversidade das três parábolas em torno da alegria do reencontro do que se havia perdido. Mas entre elas há uma progressão, como já foi explicitado. No entanto, é de acrescentar que as duas primeiras parábolas refletem a procura do pecador pelo Pai, no primeiro caso, sob a figura do pastor que procura o objeto da sua afeição, materializado na ovelha que se perdeu e à qual se ligou pelo que lhe fornece de lã, leite e sobretudo cordeiros; e, no segundo, sob a figura a dona de casa que procura um objeto precioso – a moeda – que lhe faz imensa falta para a sua pobre subsistência. É de notar, nesta segunda parábola, um reflexo do rosto feminino de Deus – Deus que é Pai e que é mãe, como é pastor e pater familias.
Por seu turno, pelo regresso do filho, o Pai – que logo que o viu, “encheu-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos” (v. 20) – mobilizou tudo e todos para a festa e mostrou-se disposto a repetir à saciedade o pregão, o que faz ao ver a relutante resistência do filho mais velho em participar na festa:
“Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.” (vv. 31-32).
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Se a ovelha se perdeu por fraqueza e debilidade ou por desorientação e a moeda se perdeu por distração ou negligência da mulher, o filho mais novo perdeu-se por orgulho e ambição, fazendo uso da sua liberdade, liberdade que o Pai, no seu coração de misericórdia, respeita sem questionar ou pôr em causa.
A este respeito, o Papa Francisco sublinha o protagonismo do Pai benevolente com os dois filhos. Dividiu os bens não só por quem o exigiu, mas pelos dois. Poderia recusar repartir os bens, porque ainda está vivo, atender o pedido do filho mais novo e reter a parte respeitante ao mais velho. Mas mostrou-se o pai da equidade: repartiu e repartiu pelos dois. Bem podia ter-se oposto à pretensão do filho mais novo de sair de casa, sob o pretexto da sua imaturidade, ou litigar judicialmente ou extrajudicialmente recusando entregar a herança. Pelo contrário, este pai mostrou-se tolerante, respeitador da liberdade do filho, embora ciente dos riscos que ele corria.
Assim é Deus – diz o Papa – “deixa-nos livres, a ponto de podermos cometer erros, porque, ao criar-nos, deu-nos o grande dom da liberdade”. E a liberdade é dom ou prerrogativa irrenunciável. Cabe, como é consensual e como repte Francisco, ao homem fazer o bom uso desta prerrogativa.
Mas há que notar que a separação do pai em relação ao filho é apenas territorial. O filho pode ter esquecido o progenitor, ao passo que o Pai traz o filho sempre no coração, espera confiante o seu regresso olhando para o caminho na esperança de o ver. E, como quem espera sempre alcança, um dia vê-o assomar ao longe (cf v. 20); e, ao ver que ele se aproxima, corre pressuroso ao seu encontro, não se deixando ficar no seu cadeirão a preparar o ajuste de contas ou o sermão de que espatifou tudo, fazendo mau uso da liberdade e tendo agora a paga do seu mau comportamento. Nada disso. A liberdade não é cobrável por quem é misericordioso; e o pai cobre o filho de beijos, acolhe o filho com ternura, primeiro, e com alegria e festa, depois. O seu perdão não tem limites e está sempre disponível: é fruto do amor e da misericórdia para com aquele que precisa, seja qual for o tipo de precisão.
O pródigo, segundo o relato evangélico, gastou a fortuna levando vida dissoluta sem especificar como foi essa vida, mas o irmão mais velho, na hora de apontar o dedo, especificou, “esse teu filho gastou o que lhe deste com mulheres de má vida” (v. 30) – marcando o distanciamento.
O filho mais novo, quando se viu abandonado e na miséria, fez o propósito de ir ter com o pai, lembrado da abundância em que vivem todos lá em casa e prepara o discurso. Junto do pai, confessa: pequei contra o céu e contra ti (a dimensão humana e espiritual do pecado); já não sou digno de ser chamado teu filho (o pecado tira-nos a dignidade de filhos). E o pai deixa-o confessar este reconhecimento, mas não lhe deixa dizer que o trate como um dos jornaleiros (para este pai os filhos são sempre filhos e livres) – (cf vv. 17-20.21-22).
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Dizíamos que Deus é misericordioso para quem precise, independentemente do tipo de necessidade que atinja cada um. Assim, se o filho mais novo precisou de acolhimento no retorno à casa paterna, o mais velho precisou do esclarecimento e da insistência do pai pela sua ira, arrogância soberba e inveja. Primeiro, o pai não é patrão, a quem o filho serve como se fosse um servo. Não faz sentido o discurso, “há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos” nem a acusação displicente ao irmão, que acaba por ser acusação ao pai, “agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo”. Depois, o pai esclarece que a permanência em casa tem como efeito a comunhão de bens (“tudo o que é meu é teu”); que o irmão é sempre irmão e próximo (“este teu irmão”); e que é preciso fazer festa, porque ele está vivo, foi encontrado. Se perante os criados o mais novo é “este meu filho”, junto do mais velho, é “este teu irmão. Como este pai, Deus efetivamente não desiste de ninguém.
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O discurso papal contém uma novidade decorrente da parábola: o terceiro filho – o próprio Jesus, o Messias. Este, sendo como o Pai, assumiu em Si próprio a condição de servo (Fl 2,6-7). Este filho-servo torna visíveis e palpáveis os braços e o coração do Pai. “Ele – diz o Papa – “acolheu o pródigo e lavou os seus pés sujos, preparou o banquete para a festa do perdão e Ele, Jesus Cristo, ensina-nos hoje e sempre a ser “misericordiosos como o Pai”, respeitando a consciência e a liberdade de cada um.
Como já se entreviu, a figura do pai da parábola revela o rosto, os lábios e o coração de Deus, “pai misericordioso que em Jesus nos ama para lá de toda a medida, espera a nossa conversão cada vez que caímos no erro”, ou seja, “espera o nosso regresso quando nos afastamos dele”. Mais: “está sempre pronto a abrir-nos os seus braços tenha acontecido o que quer que seja” e “continua a considerar-nos seus filhos quando estamos perdidos e vem ao nosso encontro com ternura quando voltamos para Ele”.
Neste itinerário quaresmal, o Papa quer que saibamos que o Pai nos fala com tanta bondade quando acreditamos na sua misericórdia e que os erros cometidos nunca prejudicam a fidelidade do seu amor. E no sacramento da reconciliação podemos encontrar o acolhimento e a restituição da dignidade de filhos, ouvindo o reconfortante “Segue em frente, vai em paz”.

2016.03.07 – Louro de Carvalho

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