No
IV domingo da quaresma do Ano C, lê-se e proclama-se, aquando da Liturgia da
Palavra da Missa, a parábola do homem que
tinha dois filhos, tradicionalmente denominada por parábola do filho pródigo e que muitos, entre os quais se conta o
Papa Francisco, preferem designar por parábola
do Pai misericordioso. A
designação menos ajustada é exatamente a tradicional por acentuar a vida do
pródigo esquecendo a postura do filho mais velho.
Francisco,
na alocução que fez perante a multidão reunida na Praça de São Pedro no passado
dia 6 de março, antes da recitação do Angelus,
propôs que os crentes tomassem o Evangelho de Lucas e relessem as três
parábolas da misericórdia que ocupam todo o seu capítulo 15.º: (vv.
4-7), a da ovelha
reencontrada (melhor que parábola da ovelha perdida); (vv.
8-10), a da moeda
reencontrada (melhor que parábola da moeda perdida); e, (vv.
11-32), a do Pai
misericordioso. É óbvio que mais importante nas parábolas em causa o mais
importante e edificante não será a postura da ovelha que se perde por capricho
ou fraqueza, mas a atitude pressurosa e solícita do pastor que a procura e,
tendo-a reencontrado, faz festa e pede a todos que se alegrem com ele, porque a
ovelha foi encontrada viva e sã; o mais importante e edificante não será a
casualidade da perda da moeda por descuido ou negligência da mulher, mas o
facto da procura incessante e multímoda por parte da mesma mulher e, tendo-a
readquirido, exterioriza a sua alegria e convida as amigas a que se alegrem com
ela porque a moeda que tinha perdido foi encontrada em boas condições; e o mais
importante e edificante não será a exigência do filho mais novo sobre a parte
que lhe cabe da herança, o abandono da casa paterna e mesmo o seu regresso, mas
a atitude do pai que, regressado o filho, que ele esperava paciente e
esperançadamente, o deixou reconhecer o seu pecado, mas não lhe deixou
continuar o discurso, antes o mandou reintegrar de imediato e fazer festa,
porque o filho que estava morto, agora está vivo e são.
Visão
limitada de leitor tem posto o acento na perda e pecado e, secundariamente, no
achamento e regresso, ao passo que as parábolas da misericórdia são bem mais
ricas em conteúdo.
***
Antes
de mais, é importante reler o contexto em que as referidas parábolas são
apresentadas:
“Aproximavam-se dele todos os cobradores de impostos e
pecadores para o ouvirem. Mas os
fariseus e os doutores da Lei murmuravam entre si, dizendo: Este acolhe os pecadores e come com eles.”
Parece que a
ovelha e a moeda que depois foram reencontradas e o filho pródigo que regressou
arrependido figuram aqui os cobradores de impostos e pecadores, disponíveis
para ouvirem o Mestre, enquanto os fariseus e os doutores da Lei se sentiam bem
na sua autossuficiência e no seu status
próprio e, se acorriam a Ele, não era para propriamente O escutarem, mas para O
experimentarem e murmurarem, autoescandalizados, porque ele acolhia os
pecadores e comia com eles (cf Lc 5,30; 7,34).
Depois, é de
referir que a conclusão da primeira parábola é, da parte do Mestre, “Digo-vos Eu:
haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por
noventa e nove justos que não necessitam de conversão” (v. 7). E a conclusão da segunda é, Digo-vos: Assim há alegria entre os anjos de
Deus por um só pecador que se converte”. A alegria que é apontada no céu ou
entre os anjos refere-se efetivamente a um só pecador que se converta, encarado
em termos gerais e comparativamente a noventa e nove justos que não precisam de
arrepender-se. Porém, no caso do Pai misericordioso, a alegria apontada é o
máximo e é de festa, traje novo, sandálias, anel e banquete. É alegria
absoluta, não comparável, mas personalizada neste filho:
“O pai disse aos seus
servos: ‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o
dedo e sandálias para os pés. Trazei
o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e
reviveu, estava perdido e foi encontrado.’ E a festa principiou.” (vv. 22-24).
Têm razão os
comentadores ao assumirem que o cap. 15.º de Lucas tem uma unidade literária na
diversidade das três parábolas em torno da alegria do reencontro do que se
havia perdido. Mas entre elas há uma progressão, como já foi explicitado. No
entanto, é de acrescentar que as duas primeiras parábolas refletem a procura do
pecador pelo Pai, no primeiro caso, sob a figura do pastor que procura o objeto
da sua afeição, materializado na ovelha que se perdeu e à qual se ligou pelo
que lhe fornece de lã, leite e sobretudo cordeiros; e, no segundo, sob a figura
a dona de casa que procura um objeto precioso – a moeda – que lhe faz imensa
falta para a sua pobre subsistência. É de notar, nesta segunda parábola, um
reflexo do rosto feminino de Deus – Deus que é Pai e que é mãe, como é pastor e
pater familias.
Por seu
turno, pelo regresso do filho, o Pai – que logo que o viu, “encheu-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao
pescoço e cobriu-o de beijos” (v. 20) – mobilizou tudo e todos para a festa e
mostrou-se disposto a repetir à saciedade o pregão, o que faz ao ver a
relutante resistência do filho mais velho em participar na festa:
“Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é
teu. Mas tínhamos de fazer uma
festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava
perdido e foi encontrado.” (vv. 31-32).
***
Se a ovelha
se perdeu por fraqueza e debilidade ou por desorientação e a moeda se perdeu
por distração ou negligência da mulher, o filho mais novo perdeu-se por orgulho
e ambição, fazendo uso da sua liberdade, liberdade que o Pai, no seu coração de
misericórdia, respeita sem questionar ou pôr em causa.
A este
respeito, o Papa Francisco sublinha o protagonismo do Pai benevolente com os
dois filhos. Dividiu os bens não só por quem o exigiu, mas pelos dois. Poderia
recusar repartir os bens, porque ainda está vivo, atender o pedido do filho
mais novo e reter a parte respeitante ao mais velho. Mas mostrou-se o pai da
equidade: repartiu e repartiu pelos dois. Bem podia ter-se oposto à pretensão
do filho mais novo de sair de casa, sob o pretexto da sua imaturidade, ou
litigar judicialmente ou extrajudicialmente recusando entregar a herança. Pelo
contrário, este pai mostrou-se tolerante, respeitador da liberdade do filho,
embora ciente dos riscos que ele corria.
Assim é Deus
– diz o Papa – “deixa-nos livres, a ponto de podermos cometer erros, porque, ao
criar-nos, deu-nos o grande dom da liberdade”. E a liberdade é dom ou
prerrogativa irrenunciável. Cabe, como é consensual e como repte Francisco, ao
homem fazer o bom uso desta prerrogativa.
Mas há que
notar que a separação do pai em relação ao filho é apenas territorial. O filho
pode ter esquecido o progenitor, ao passo que o Pai traz o filho sempre no coração,
espera confiante o seu regresso olhando para o caminho na esperança de o ver.
E, como quem espera sempre alcança, um dia vê-o assomar ao longe (cf v. 20); e, ao ver que ele se aproxima,
corre pressuroso ao seu encontro, não se deixando ficar no seu cadeirão a
preparar o ajuste de contas ou o sermão de que espatifou tudo, fazendo mau uso
da liberdade e tendo agora a paga do seu mau comportamento. Nada disso. A
liberdade não é cobrável por quem é misericordioso; e o pai cobre o filho de
beijos, acolhe o filho com ternura, primeiro, e com alegria e festa, depois. O
seu perdão não tem limites e está sempre disponível: é fruto do amor e da
misericórdia para com aquele que precisa, seja qual for o tipo de precisão.
O pródigo,
segundo o relato evangélico, gastou a fortuna levando vida dissoluta sem
especificar como foi essa vida, mas o irmão mais velho, na hora de apontar o
dedo, especificou, “esse teu filho gastou
o que lhe deste com mulheres de má vida” (v. 30) – marcando o distanciamento.
O filho mais
novo, quando se viu abandonado e na miséria, fez o propósito de ir ter com o
pai, lembrado da abundância em que vivem todos lá em casa e prepara o discurso.
Junto do pai, confessa: pequei contra o céu e contra ti (a dimensão humana e espiritual do
pecado); já não sou digno
de ser chamado teu filho (o pecado tira-nos a dignidade de filhos). E o pai deixa-o confessar este reconhecimento, mas
não lhe deixa dizer que o trate como um dos jornaleiros (para este pai os filhos são sempre
filhos e livres) – (cf vv. 17-20.21-22).
***
Dizíamos que
Deus é misericordioso para quem precise, independentemente do tipo de
necessidade que atinja cada um. Assim, se o filho mais novo precisou de
acolhimento no retorno à casa paterna, o mais velho precisou do esclarecimento
e da insistência do pai pela sua ira, arrogância soberba e inveja. Primeiro, o
pai não é patrão, a quem o filho serve como se fosse um servo. Não faz sentido
o discurso, “há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma
ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos” nem a acusação displicente ao irmão, que
acaba por ser acusação ao pai, “agora, ao
chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o
vitelo gordo”. Depois, o pai esclarece que a permanência em casa tem como
efeito a comunhão de bens (“tudo o que é meu é teu”); que o
irmão é sempre irmão e próximo (“este teu irmão”); e que
é preciso fazer festa, porque ele está vivo, foi encontrado. Se perante os
criados o mais novo é “este meu filho”, junto do mais velho, é “este teu irmão.
Como este pai, Deus efetivamente não desiste de ninguém.
***
O discurso
papal contém uma novidade decorrente da parábola: o terceiro filho – o próprio Jesus,
o Messias. Este, sendo como o Pai, assumiu em Si próprio a condição de servo (Fl 2,6-7). Este filho-servo torna visíveis e palpáveis os
braços e o coração do Pai. “Ele – diz o Papa – “acolheu o pródigo e lavou os
seus pés sujos, preparou o banquete para a festa do perdão e Ele, Jesus Cristo,
ensina-nos hoje e sempre a ser “misericordiosos como o Pai”, respeitando a consciência
e a liberdade de cada um.
Como já se
entreviu, a figura do pai da parábola revela o rosto, os lábios e o coração de
Deus, “pai misericordioso que em Jesus nos ama para lá de toda a medida, espera
a nossa conversão cada vez que caímos no erro”, ou seja, “espera o nosso
regresso quando nos afastamos dele”. Mais: “está sempre pronto a abrir-nos os seus
braços tenha acontecido o que quer que seja” e “continua a considerar-nos seus
filhos quando estamos perdidos e vem ao nosso encontro com ternura quando
voltamos para Ele”.
Neste itinerário
quaresmal, o Papa quer que saibamos que o Pai nos fala com tanta bondade quando
acreditamos na sua misericórdia e que os erros cometidos nunca prejudicam a fidelidade
do seu amor. E no sacramento da reconciliação podemos encontrar o acolhimento e
a restituição da dignidade de filhos, ouvindo o reconfortante “Segue em frente, vai em paz”.
2016.03.07 – Louro de Carvalho
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