quarta-feira, 2 de março de 2016

A situação ambivalente da comunicação social

Decorreu ontem, dia 29 de fevereiro, na Escola de Comunicação Social, em Lisboa, a conferência “Comunicação Social – de Emídio Rangel aos tempos de hoje” para assinalar os 28 anos da TSF. Sendo de inteira justiça a referência à memória e ação de Rangel, falecido a 13 de agosto de 2014, no âmbito da comunicação social, a conferência reveste-se de grande interesse hoje pela visão contraditória perfilhada pelos intervenientes, de que se destacam: Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente eleito; Carlos Magno, presidente da ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social); José Pacheco Pereira, historiador e comentador; e Daniel Proença de Carvalho, chairman do Global Media Group.
A visão mais otimista foi, sem dúvida, a de Proença de Carvalho:
“Vivemos um período de total liberdade de expressão e pluralismo a todos os níveis e, hoje, todos os quadrantes políticos e ideológicos se manifestam e os meios de Comunicação Social exprimem essas várias correntes”.
Ao invés, Pacheco Pereira vê o atual jornalismo com um olhar bem pessimista, apontando “falências significativas” à forma como a informação é fornecida ao público. Critica também algumas opções editoriais por apostarem preferencialmente na “espetacularidade” em detrimento do “serviço que interessa às pessoas”, assegurando não pensar “que haja um sólido pluralismo na Comunicação Social”.
Por seu turno, Marcelo Rebelo de Sousa, que fez o discurso de abertura, afirmou que Emídio Rangel, movido por uma notável “visão de mudança” e percebendo “o que estava a mudar na Comunicação Social em Portugal”, conseguiu criar “uma nova realidade na rádio e na televisão”. Com efeito, bem sabemos como foi inovador o modo de fazer rádio na TSF, estação que fundou ou o papel determinante que teve no devir da RTP e da SIC.
Porém, quanto à situação atual dos meios de Comunicação Social, Marcelo não tem dúvidas: o panorama “é agora muito mais difícil do que era há 20 ou 30 anos porque há uma componente financeira e económica poderosíssima e que está a condicionar a Comunicação Social em vários países”. E, como é óbvio, Portugal não pode arvorar-se em oásis no meio deste deserto de mediocridade, penso eu, e imune às tendências da época e do mercado.
Por outro lado, o ex-comentador televisivo, sublinhando o encerramento de vários jornais nos últimos anos, por motivos predominantemente económicos, considerou que “é preciso heroísmo para continuar o percurso na Comunicação Social porque novas realidades apareceram”. Depois, reiterou a essencialidade deste poder para a democracia.
Carlos Magno, por sua vez, equacionou a problemática da necessidade de “refundar o jornalismo”, justificando:
“É preciso dizer que o jornalismo de cidadãos é uma treta e que o jornalismo é uma atividade profissional que custa dinheiro, exige investimento e tem de ter uma ética, um código de conduta e tem de ser remunerado”.
No encerramento, João Soares, Ministro da Cultura, lembrou “a revolução” que Rangel iniciou com a TSF e lamentou “que ele cá não esteja, para fazer a revolução que precisamos de fazer quanto à situação que temos no nosso país”. O atual detentor da pasta da Cultura salientou a necessidade de respeitar a memória de Rangel.
Acresce ainda referir que, para falar de memórias, das que têm partilhadas com o fundador, estiveram presentes os antigos diretores da TSF Carlos Andrade, David Borges e José Fragoso; e ainda o diretor que acaba de deixar o cargo, Paulo Baldaia, e o sucessor, David Dinis. Também as filhas de Emídio Rangel estiveram na conferência.
E, em memória do fundador da TSF, foram instituídos dois prémios para incentivar o jornalismo: o Prémio Emídio Rangel e o Prémio Emídio Rangel Carreira.
O Prémio Emídio Rangel vai, a partir de setembro, distinguir o “trabalho feito nas rádios locais, nas rádios dos países africanos de língua oficial portuguesa e nas universidades”. O júri será composto pelos ex-diretores e diretor da TSF, pelo jornalista Fernando Alves (o mentor da iniciativa) e também por Ana Rangel, filha do fundador desta rádio.
O Prémio Emídio Rangel Carreira será atribuído de quatro em quatro anos e distinguirá um(a) jornalista cujo percurso profissional se tenha destacado. Daniel Proença de Carvalho, Miguel Sousa Tavares, José Pacheco Pereira e Vicente Jorge Silva serão os elementos do júri a quem caberá decidir a atribuição desta distinção.
***
Confesso não perceber aonde Proença de Carvalho foi beber a bebida inebriante do seu otimismo em relação aos nossos jornais, rádios e estações televisivas. Muitos fecharam, outros foram “reestruturados” (com as consequências que daí advêm) e o pluralismo de que fala o ilustre advogado vê-se nas redes sociais (algumas com linguagens bem destravadas) e nalguns periódicos on line. De resto, só aceito o pluralismo “proençano” se olhar para o país com os olhos fixos exclusivamente nos artigos 37.º e 38.º da CRP que rezam, respetivamente:
Sobre a “liberdade de expressão e informação”
1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
3. As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.
4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.

Sobre a “liberdade de imprensa e meios de comunicação social
1. É garantida a liberdade de imprensa.
2. A liberdade de imprensa implica:
   a) A liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respetivos órgãos de comunicação social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional; b) O direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à proteção da independência e do sigilo profissionais, bem como o direito de elegerem conselhos de redação; c) O direito de fundação de jornais e de quaisquer outras publicações, independentemente de autorização administrativa, caução ou habilitação prévias.
3. A lei assegura, com caráter genérico, a divulgação da titularidade e dos meios de financiamento dos órgãos de comunicação social.
4. O Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico, impondo o princípio da especialidade das empresas titulares de órgãos de informação geral, tratando-as e apoiando-as de forma não discriminatória e impedindo a sua concentração, designadamente através de participações múltiplas ou cruzadas.
5. O Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão.
6. A estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do setor público devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião.
7. As estações emissoras de radiodifusão e de radiotelevisão só podem funcionar mediante licença, a conferir por concurso público, nos termos da lei.
***

Proença não se lembra (?) das diversas pressões, por via direta ou indireta, de titulares de cargos públicos sobre órgãos de Comunicação Social, jornalistas e pivôs de serviços noticiosos e chegando à demissão de alguns e à supressão de programas ou mudança intempestiva do seu figurino. Depois, não vê que o encerramento e reestruturação de órgãos de comunicação resultam de insuficiência ou mesmo penúria económica, nem vê a tendência para a concentração de órgãos de comunicação num conjunto cada vez mais reduzido e poderoso de uns tantos grupos económicos, alguns de proveniência estrangeira. Os números 4 e 5 do art.º 38.º estão em perigo constante. 
Nem Marcelo Rebelo de Sousa ignora o poder cada vez mais crescente dos grupos económicos que estiolam e asfixiam a Comunicação Social ou a sujeitam aos seus interesses estratégicos, predominantemente económicos, mas com implicação política, quer queimando em lume brando o poder instituído quer minando o terreno para que outrem o tome (ele próprio passou por consequências disso). A título de exemplo, pergunto-me quais os jornais, nomeadamente os ditos de referência, que verdadeiramente ostentavam uma linha de oposição ao XIX Governo ou quais os que hoje não têm um alinhamento editorial de franca contestação ao tratado da geringonça. Concorde-se com um governo ou discorde-se dele, não é normal um governo fazer tudo mal ou tudo bem! E os dois lados devem ter expressão clara.
Por outro lado, já me farto dos órgãos independentes que atuam junto dos meios de comunicação social do setor público ou da propalada independência e autonomia dos seus conselhos de administração. Tal não passa habitualmente de hipocrisia encapotada ou de subserviência travestida de interesse público!
No atinente à liberdade de expressão e de informação por parte dos cidadãos, pergunta-se se os jornais, além do magro espaço de cartas aos diretores, sujeitas a restrições e cortes, e os programas de rádio e televisão interativos, com fortes limitações, têm efetiva liberdade de expressão. E, mesmo que não haja censura política ou exame prévio, todos sabem como os jornalistas são peados no seu profissionalismo pelo diretor pressionado pela administração ou pela oportunidade – censura interna que pode conduzir à precariedade ou ao desemprego.
Depois, não sei se é o estatuto editorial ou se é o desígnio das audiências e venda de papel tornado praxe estatutária que, a coberto do jornalismo de investigação, tantas vezes de grande utilidade, se substitui à justiça fazendo gato-sapato do segredo de justiça e condenando ou absolvendo na praça pública os suspeitos. Por outro lado, a cada passo, os repórteres sujeitam a inquérito deprimente vítimas, sinistrados e pessoas comuns que vivem dramas existenciais, expondo-os publicamente de forma despudorada e desnecessária.
Finalmente, concordo que o jornalismo precise de ser refundado com vista à independência face aos poderes, no rumo da objetividade, regulado sobretudo por sustentáveis códigos de conduta, servido e dirigido por competentes profissionais, mas abrindo as suas portas à colaboração de pensadores de referência e à participação real do público. Todavia, não posso aceitar que o jornalismo de cidadãos seja pura e simplesmente conversa da treta, já que, por um lado, são os cidadãos que suportam, como destinatários, pagantes e fonte de informação, o jornalismo profissional, por outro, bem sei do importante papel dos amadores periódicos locais e boletins regulares de associações e outras coletividades na informação, formação, promoção e entretenimento.  
Assim, deixo para reflexão dois pontos. Contrario como aplicável ao jornalismo o aforismo latino, “De miminis non curat praetor” e recordo o adágio português, “O trabalho do menino é pouco, mas quem o despreza é louco”.

2016.03.01 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário