A ADSE foi
criada em 1963 sob a designação de Assistência na Doença aos Servidores Civis
do Estado num contexto em que não estava estabelecido o SNS (Serviço Nacional de Saúde) universal, gratuito (ou tendencialmente
gratuito). Todavia, o Estado entendeu que, enquanto entidade patronal,
devia cuidar do apoio à saúde dos seus servidores, exigindo-lhes uma módica
contribuição sobre o seu vencimento mensal (salário
ou pensão). Falamos de servidores civis, porquanto os militares dos três ramos
das forças armadas e da GNR tinham os hospitais militares e passaram a dispor
da respetiva ADM (E, FA, A e G, conforme
se referisse ao Exército, Força Aérea, Armada e Guarda Nacional Republicana). Também PSP e
funcionários do Ministério da Justiça tinham o seu serviço de assistência, como
ainda hoje. E lembro-me de que alguns professores ainda descontavam para a
Previdência do Ministério da Educação Nacional.
É conveniente
não esquecer que as entidades patronais tinham obrigação de inscrever os seus
trabalhadores na respetiva Caixa de Previdência para futura obtenção de reforma
e alguma assistência na doença. Em breve se popularizou a expressão “é médico da caixa”, pelo excesso de
rapidez e quase nula atenção com que os doentes eram atendidos. Deste sistema
ficavam excluídos os rurais, a não ser que descontassem para as casas do povo,
para o que eram exigidas umas tantas condições, e muitos trabalhadores que se
furtavam aos descontos, com geral agrado de patrões. Para estes excluídos, em
caso de internamento hospitalar, a câmara municipal da sua área de residência
deliberava, mediante o atestado de pobreza passado pela respetiva Junta de
Freguesia, sobre o pagamento do serviço ao hospital.
Os beneficiários
da ADSE usufruíam da prerrogativa de se abeirarem dos médicos da ADSE nos
concelhos de Lisboa e do Porto e, em geral, dos médicos de regime livre. Perante
estes últimos adiantavam o monte pecuniário da consulta (bem como o do pagamento de meios auxiliares – ou
complementares – de diagnóstico e terapêutica) e enviavam posteriormente o
recibo para a ADSE, geralmente através do serviço em que prestavam o trabalho,
para receberem a magra comparticipação. Em caso de internamento hospitalar em
unidade de saúde pública, todo o atendimento era prestado de forma gratuita,
devendo o utente responsabilizar-se pelo pagamento da diferença no caso de
optar (por sua iniciativa) por quarto particular. O desconto em farmácia era feito
logo à cabeça, devendo os serviços do farmacêutico enviar à ADSE os documentos
de despesa para efeitos de reembolso por parte da farmácia.
***
Por despacho de
António Arnaut, quando era Ministro dos Assuntos Sociais, foi estabelecido o
SNS, que veio a fixar-se mais tarde por lei e que, por revisão constitucional,
passou de gratuito a tendencialmente gratuito. Foi à luz da
amenização do princípio da gratuitidade que se justificou a introdução das
taxas moderadoras, bem como para obviar a ditos abusos da utilização das
unidades de saúde. Porém, há que fazer duas ressalvas: foram os profissionais
de saúde e os sucessivos governos que fizeram a campanha pela medicina
preventiva onde se inclui a consulta de rotina, mesmo que não haja doença; e,
juntando a farinha com o farelo, puseram-se no mesmo barco punitivo os
abusadores e os que não têm hipótese de saber se o seu caso é de verdadeira
urgência ou de mero susto. Mais: chegou a ser escandaloso o facto de os médicos
do SNS, universal, deixarem marcar apenas seis consultas por dia! E, para serem
atendidos, os doentes chegaram a ir alta madrugada para as imediações de
centros de saúde a esperar na rua.
Depois da criação
do SNS, foi criada, a partir da experiência da ADSE, a Direção-Geral de
Proteção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública, mantendo a
mesma sigla, como complemento ao próprio SNS. A sua missão é:
. Organizar,
implementar, orientar e controlar todas as formas de proteção social, em
colaboração com a Direção-Geral da Administração e Emprego Público e serviços e
instituições dependentes dos ministérios da Saúde, do Trabalho e da
Solidariedade Social e outros organismos estatais ou particulares congéneres;
. Propor as
medidas adequadas à utilização dos recursos que lhe sejam atribuídos, por forma
a prosseguir os seus fins dentro dos princípios da gestão por objetivos;
. Celebrar
os acordos, convenções, contratos e protocolos que interessem ao desempenho da
sua missão e acompanhar o rigoroso cumprimento dos mesmos;
. Promover o
registo dos encargos familiares na AP (Administração Pública) e propor a
definição de critérios de aplicação do direito às respetivas prestações;
. Proceder à
gestão dos benefícios a aplicar no domínio da proteção social da AP;
. Controlar
e fiscalizar as situações de doença;
. Contribuir
para o desenvolvimento da ação social em articulação com os Serviços Sociais da
AP;
. Propor ou
participar na elaboração de projetos de diploma relativos às suas atribuições;
.
Desenvolver os mecanismos de controlo inerentes à atribuição de benefícios;
. Aplicar
aos beneficiários as sanções legais quando se detetem infrações às suas normas
e regulamentos.
Assim, os
médicos da ADSE ou os delegados de saúde verificavam ao domicílio as situações
de doença dos funcionários públicos e eram constituídas juntas médicas no
âmbito da ADSE para verificação da incapacidade temporária de trabalho do
funcionário e proposta de submissão a junta médica da CGA (Caixa Geral de Aposentações) quando fosse o caso.
Em muitos casos,
eram mal vistos os funcionários que desejassem recorrer aos centros de saúde (confesso que pessoalmente nunca tive esse problema), já que tinham
disponíveis os médicos do regime livre.
Com o rolar do
tempo, multiplicaram-se os contratos da ADSE, à semelhança dos outros
subsistemas de saúde, com entidades privadas fornecedoras de consultas médicas,
meios complementares de diagnóstico, cirurgias e internamentos.
Diga-se em abono
da verdade que a criação do chamado médico de família, graças às limitações do
sistema e à flutuação destes profissionais de saúde nunca se tornou atrativa
para os funcionários públicos. E foi vista com maus olhos a exigência, em 2007,
de que o atestado médico comprovativo da doença tivesse necessariamente de ser
passado por médico do SNS ou do regime convencionado, alegando-se o potencial
entupimento do SNS.
***
Entretanto, por
iniciativa própria ou, mais tarde, a mando da troika (dizem alguns, incluindo o TdC), a ADSE deixou de celebrar ou
manter contratos com hospitais públicos e farmácias, passando os encargos com
consultas, tratamentos hospitalares, internamentos e medicamentos a ser
imputados ao SNS e ao utente. Por outro lado, desde 2013, as entidades do
Estado ou outras cujos trabalhadores puderam inscrever-se na ADSE deixaram de
ajudar a custear os encargos da ADSE, devendo ela sustentar-se exclusivamente
com base nas contribuições dos beneficiários.
Por
consequência, a quotização subiu até um nível impensável há uns anos a esta
parte (3,5% do vencimento ou pensão do titular), a ponto de em
2014 e 2015 o subsistema ser superavitário.
Ora o subsistema
é alegadamente superavitário devido ao aumento brutal das comparticipações dos
beneficiários, à redução das comparticipações e à desoneração em relação às
despesas com farmácias e com hospitais públicos. Caso contrário, seria sempre
deficitário. Por outro lado, um subsistema que foi recriado para complementar o
SNS passou a ser importante fonte de financiamento dos hospitais e outros
prestadores de saúde privados, bem como instrumento de satisfação de alguns
encargos do Estado noutras áreas.
***
Por sua vez, o TdC (Tribunal de
Contas), na sequência de auditoria ao subsistema,
considera que o aumento dos descontos para a ADSE, sem suporte em estudos, foi “excessivo”
e que, em 2015, bastaria uma contribuição de 2,1% para que os custos com os
cuidados de saúde prestados fossem integralmente financiados pelos
beneficiários. E, mesmo que houvesse necessidade de garantir um excedente de
segurança, os trabalhadores da função pública e aposentados do Estado teriam
apenas de descontar 2,25% dos seus salários ou pensões.
Como
sugestão para o futuro, o TdC recomenda uma taxa de desconto indexada ao nível
de despesas previstas, com uma margem de 10%, a introdução de limiares mínimos
e máximos de contribuição e uma variação em função da idade em que o
beneficiário entra para o sistema.
A prova de
que a subida da taxa de desconto para 3,5% foi excessiva é o excedente de 138,9
milhões da ADSE, verificado em 2014, e de 89,4 milhões de euros, previsto para
2015.
Ora, segundo
o TdC, este excedente está a ser usado pelo Estado, servindo “apenas objetivos
de consolidação orçamental”. A entidade gestora da ADSE
“Tem uma propriedade
muito limitada sobre os excedentes gerados (…) visto não os poder utilizar
livremente, seja no financiamento da despesa de saúde seja na obtenção de uma
remuneração pela subscrição de aplicações financeiras ou, eventualmente, pela
aplicação noutros investimentos”.
Mais:
“É o Estado quem tem beneficiado da utilização
desses excedentes, provenientes dos quotizados da ADSE, a uma taxa de 0%, isto
é, sem qualquer remuneração paga à ADSE”.
Outra prova
da desproporcionalidade do aumento é o acentuado número de renúncias. Entre
2011 e 2014, porque a inscrição e a permanência na ADSE deixaram de ser
obrigatórias, mais de 4000 pessoas a abandonaram. Para o TdC isto é um sinal de
alerta para a sustentabilidade do subsistema, já que as saídas ocorrem sobretudo
nos rendimentos mais elevados. A desproporção que se verifica, nos últimos
escalões, entre desconto e benefícios, pode fomentar a saída de quotizados, sem
que haja um plano dos gestores para resolver este problema.
Por isso, o
TdC recomenda que a ADSE deixe da assumir encargos inerentes ao Orçamento do
Estado e ao SNS como, por exemplo, despesas “que têm de ser financiadas
por receitas gerais dos impostos”: a comparticipação do Estado no preço dos
medicamentos, a assistência médica no estrangeiro quando ela não resulta da
livre vontade da pessoa, os cuidados respiratórios domiciliários prescritos
pelo SNS, o transporte de doentes de e para entidade do SNS e os meios
complementares de diagnóstico e terapêutica prescritos pelo SNS, assim como a
verificação domiciliária na doença e a realização de juntas médicas a pedido
das entidades empregadoras, “uma actividade alheia ao esquema de benefícios da
ADSE”.
Os auditores,
neste âmbito, recomendam que a ADSE suspenda o financiamento dos cuidados da
responsabilidade do SNS ou outros que não possam ser suportados pelo desconto,
“caso não se disponha de receita com origem em fundos públicos”. No caso do
controlo de faltas, propõem que a ADSE cobre às entidades empregadoras pela
prestação do serviço. Ao nível da gestão, sugerem a aprovação de novo estatuto
jurídico-financeiro, em que os beneficiários participem na gestão, que deve ser
“exclusivamente técnica” e não “instrumento de política económica”.
O TdC lembra
que as conclusões e recomendações feitas ao Governo e à própria ADSE se
reportam a resultados de 2014, pelo que não têm em conta outros
desenvolvimentos que ocorreram posteriormente, como é o caso da transferência
da dependência da direção-geral do Ministério das Finanças para o da Saúde e a aprovação
do novo modelo de governação.
***
Vem aí a reforma da ADSE. Pelo despacho n.º 3177-A/2016, de 1 de março, o Ministro da Saúde explica
que “a adopção de medidas de reformulação do sistema, nas vertentes
jurídica, institucional, estatutária e financeira” será alvo de análise
ponderada e aprofundada, “pelo que se revela adequado colher os contributos
especializados de individualidades de reconhecido mérito”. Assim, é criada uma comissão para estudar a reformulação da ADSE (o subsistema
de saúde dos funcionários e aposentados do Estado). Constituída por nove especialistas, a comissão tem até 30 de Junho para
apresentar uma proposta que tenha em conta o programa do Governo e as
recomendações do Tribunal de Contas.
Estes responsáveis reunirão de acordo com um plano
ainda a definir e a comissão poderá ouvir as entidades “que considere
convenientes” para apresentar, “até ao dia 30 de Junho de 2016 uma proposta de projeto
de enquadramento e regulação que contemple a revisão do modelo institucional,
estatutário e financeiro da Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE), de acordo com o previsto no Programa do Governo e
tendo em conta as recomendações do Tribunal de Contas”.
De acordo com o predito despacho, os membros da
comissão renunciaram a qualquer tipo de remuneração pelos trabalhos realizados.
Há várias propostas em cima da mesa quanto ao futuro
da ADSE. O programa do Governo prevê que a gestão do subsistema tenha
representantes dos beneficiários. E o Orçamento do Estado para 2016 prevê o alargamento
do universo de beneficiários aos filhos entre os 26 e os 30 anos, aos cônjuges (incluindo
os que descontam para outros sistemas de segurança social) e aos trabalhadores do Estado e empresas públicas com
contrato individual de trabalho. A base destas alterações foi o relatório de
atividades para 2015 da ADSE, que chegava mesmo a pôr em cima da mesa a criação
de serviços de saúde próprios.
***
Depois do
exposto, são pertinentes alguns pontos de comentário.
Não percebo
como é que a polémica em torno da ADSE só eclodiu depois que o subsistema se
tornou superavitário. Até então ninguém a invejou nem falou em acabar com ela.
Advogar que
os funcionários devem cingir-se ao SNS é ignorar que o SNS está longe de
responder às necessidades da população, sobretudo agora com problemas acrescidos,
e também é desprezar que este subsistema vive exclusivamente e viveu, na sua maior,
parte das contribuições dos beneficiários. Mais: os trabalhadores do Estado
eram obrigados a inscrever-se nele. Não podem, depois, vir deputados e
ex-governantes dizer que é um seguro de saúde e os beneficiários podem sair livremente
do subsistema. Pergunto que seguradora aceitaria utentes que passaram a vida a descontar
para a ADSE, que benefícios lhes ofereceria aos 65 e mais anos de idade e por
que preço. Também querem acabar com os demais subsistemas? E porque não cobiçam
e intentam a participação nesses subsistemas com alguns o querem para a ADSE?
E pergunto-me
por que motivo o Estado renunciou ao contributo da ADSE para o SNS e despesas farmacêuticas.
Foi para justificar por esta via a satisfação de encargos orçamentais ou para
legitimar o aumento brutal das taxas moderadoras no SNS? A não obrigatoriedade da
permanência na ADSE visou amolecê-la e decretar o seu óbito ou foi ao abrigo da
livre escolha?
Reforme-se o
subsistema sem injustiçar o alargado painel de contribuintes não podres de
ricos!
2016.03.05 – Louro de Carvalho
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