sábado, 5 de março de 2016

Sobre a ADSE e o SNS

A ADSE foi criada em 1963 sob a designação de Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado num contexto em que não estava estabelecido o SNS (Serviço Nacional de Saúde) universal, gratuito (ou tendencialmente gratuito). Todavia, o Estado entendeu que, enquanto entidade patronal, devia cuidar do apoio à saúde dos seus servidores, exigindo-lhes uma módica contribuição sobre o seu vencimento mensal (salário ou pensão). Falamos de servidores civis, porquanto os militares dos três ramos das forças armadas e da GNR tinham os hospitais militares e passaram a dispor da respetiva ADM (E, FA, A e G, conforme se referisse ao Exército, Força Aérea, Armada e Guarda Nacional Republicana). Também PSP e funcionários do Ministério da Justiça tinham o seu serviço de assistência, como ainda hoje. E lembro-me de que alguns professores ainda descontavam para a Previdência do Ministério da Educação Nacional.
É conveniente não esquecer que as entidades patronais tinham obrigação de inscrever os seus trabalhadores na respetiva Caixa de Previdência para futura obtenção de reforma e alguma assistência na doença. Em breve se popularizou a expressão “é médico da caixa”, pelo excesso de rapidez e quase nula atenção com que os doentes eram atendidos. Deste sistema ficavam excluídos os rurais, a não ser que descontassem para as casas do povo, para o que eram exigidas umas tantas condições, e muitos trabalhadores que se furtavam aos descontos, com geral agrado de patrões. Para estes excluídos, em caso de internamento hospitalar, a câmara municipal da sua área de residência deliberava, mediante o atestado de pobreza passado pela respetiva Junta de Freguesia, sobre o pagamento do serviço ao hospital.
Os beneficiários da ADSE usufruíam da prerrogativa de se abeirarem dos médicos da ADSE nos concelhos de Lisboa e do Porto e, em geral, dos médicos de regime livre. Perante estes últimos adiantavam o monte pecuniário da consulta (bem como o do pagamento de meios auxiliares – ou complementares – de diagnóstico e terapêutica) e enviavam posteriormente o recibo para a ADSE, geralmente através do serviço em que prestavam o trabalho, para receberem a magra comparticipação. Em caso de internamento hospitalar em unidade de saúde pública, todo o atendimento era prestado de forma gratuita, devendo o utente responsabilizar-se pelo pagamento da diferença no caso de optar (por sua iniciativa) por quarto particular. O desconto em farmácia era feito logo à cabeça, devendo os serviços do farmacêutico enviar à ADSE os documentos de despesa para efeitos de reembolso por parte da farmácia.
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Por despacho de António Arnaut, quando era Ministro dos Assuntos Sociais, foi estabelecido o SNS, que veio a fixar-se mais tarde por lei e que, por revisão constitucional, passou de gratuito a tendencialmente gratuito. Foi à luz da amenização do princípio da gratuitidade que se justificou a introdução das taxas moderadoras, bem como para obviar a ditos abusos da utilização das unidades de saúde. Porém, há que fazer duas ressalvas: foram os profissionais de saúde e os sucessivos governos que fizeram a campanha pela medicina preventiva onde se inclui a consulta de rotina, mesmo que não haja doença; e, juntando a farinha com o farelo, puseram-se no mesmo barco punitivo os abusadores e os que não têm hipótese de saber se o seu caso é de verdadeira urgência ou de mero susto. Mais: chegou a ser escandaloso o facto de os médicos do SNS, universal, deixarem marcar apenas seis consultas por dia! E, para serem atendidos, os doentes chegaram a ir alta madrugada para as imediações de centros de saúde a esperar na rua.
Depois da criação do SNS, foi criada, a partir da experiência da ADSE, a Direção-Geral de Proteção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública, mantendo a mesma sigla, como complemento ao próprio SNS. A sua missão é:
. Organizar, implementar, orientar e controlar todas as formas de proteção social, em colaboração com a Direção-Geral da Administração e Emprego Público e serviços e instituições dependentes dos ministérios da Saúde, do Trabalho e da Solidariedade Social e outros organismos estatais ou particulares congéneres;
. Propor as medidas adequadas à utilização dos recursos que lhe sejam atribuídos, por forma a prosseguir os seus fins dentro dos princípios da gestão por objetivos;
. Celebrar os acordos, convenções, contratos e protocolos que interessem ao desempenho da sua missão e acompanhar o rigoroso cumprimento dos mesmos;
. Promover o registo dos encargos familiares na AP (Administração Pública) e propor a definição de critérios de aplicação do direito às respetivas prestações;
. Proceder à gestão dos benefícios a aplicar no domínio da proteção social da AP;
. Controlar e fiscalizar as situações de doença;
. Contribuir para o desenvolvimento da ação social em articulação com os Serviços Sociais da AP;
. Propor ou participar na elaboração de projetos de diploma relativos às suas atribuições;
. Desenvolver os mecanismos de controlo inerentes à atribuição de benefícios;
. Aplicar aos beneficiários as sanções legais quando se detetem infrações às suas normas e regulamentos.


Assim, os médicos da ADSE ou os delegados de saúde verificavam ao domicílio as situações de doença dos funcionários públicos e eram constituídas juntas médicas no âmbito da ADSE para verificação da incapacidade temporária de trabalho do funcionário e proposta de submissão a junta médica da CGA (Caixa Geral de Aposentações) quando fosse o caso.
Em muitos casos, eram mal vistos os funcionários que desejassem recorrer aos centros de saúde (confesso que pessoalmente nunca tive esse problema), já que tinham disponíveis os médicos do regime livre.
Com o rolar do tempo, multiplicaram-se os contratos da ADSE, à semelhança dos outros subsistemas de saúde, com entidades privadas fornecedoras de consultas médicas, meios complementares de diagnóstico, cirurgias e internamentos. 
Diga-se em abono da verdade que a criação do chamado médico de família, graças às limitações do sistema e à flutuação destes profissionais de saúde nunca se tornou atrativa para os funcionários públicos. E foi vista com maus olhos a exigência, em 2007, de que o atestado médico comprovativo da doença tivesse necessariamente de ser passado por médico do SNS ou do regime convencionado, alegando-se o potencial entupimento do SNS.
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Entretanto, por iniciativa própria ou, mais tarde, a mando da troika (dizem alguns, incluindo o TdC), a ADSE deixou de celebrar ou manter contratos com hospitais públicos e farmácias, passando os encargos com consultas, tratamentos hospitalares, internamentos e medicamentos a ser imputados ao SNS e ao utente. Por outro lado, desde 2013, as entidades do Estado ou outras cujos trabalhadores puderam inscrever-se na ADSE deixaram de ajudar a custear os encargos da ADSE, devendo ela sustentar-se exclusivamente com base nas contribuições dos beneficiários.
Por consequência, a quotização subiu até um nível impensável há uns anos a esta parte (3,5% do vencimento ou pensão do titular), a ponto de em 2014 e 2015 o subsistema ser superavitário.
Ora o subsistema é alegadamente superavitário devido ao aumento brutal das comparticipações dos beneficiários, à redução das comparticipações e à desoneração em relação às despesas com farmácias e com hospitais públicos. Caso contrário, seria sempre deficitário. Por outro lado, um subsistema que foi recriado para complementar o SNS passou a ser importante fonte de financiamento dos hospitais e outros prestadores de saúde privados, bem como instrumento de satisfação de alguns encargos do Estado noutras áreas.   
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 Por sua vez, o TdC (Tribunal de Contas), na sequência de auditoria ao subsistema, considera que o aumento dos descontos para a ADSE, sem suporte em estudos, foi “excessivo” e que, em 2015, bastaria uma contribuição de 2,1% para que os custos com os cuidados de saúde prestados fossem integralmente financiados pelos beneficiários. E, mesmo que houvesse necessidade de garantir um excedente de segurança, os trabalhadores da função pública e aposentados do Estado teriam apenas de descontar 2,25% dos seus salários ou pensões.
Como sugestão para o futuro, o TdC recomenda uma taxa de desconto indexada ao nível de despesas previstas, com uma margem de 10%, a introdução de limiares mínimos e máximos de contribuição e uma variação em função da idade em que o beneficiário entra para o sistema.
A prova de que a subida da taxa de desconto para 3,5% foi excessiva é o excedente de 138,9 milhões da ADSE, verificado em 2014, e de 89,4 milhões de euros, previsto para 2015.
Ora, segundo o TdC, este excedente está a ser usado pelo Estado, servindo “apenas objetivos de consolidação orçamental”. A entidade gestora da ADSE
“Tem uma propriedade muito limitada sobre os excedentes gerados (…) visto não os poder utilizar livremente, seja no financiamento da despesa de saúde seja na obtenção de uma remuneração pela subscrição de aplicações financeiras ou, eventualmente, pela aplicação noutros investimentos”.

Mais:
 “É o Estado quem tem beneficiado da utilização desses excedentes, provenientes dos quotizados da ADSE, a uma taxa de 0%, isto é, sem qualquer remuneração paga à ADSE”.

Outra prova da desproporcionalidade do aumento é o acentuado número de renúncias. Entre 2011 e 2014, porque a inscrição e a permanência na ADSE deixaram de ser obrigatórias, mais de 4000 pessoas a abandonaram. Para o TdC isto é um sinal de alerta para a sustentabilidade do subsistema, já que as saídas ocorrem sobretudo nos rendimentos mais elevados. A desproporção que se verifica, nos últimos escalões, entre desconto e benefícios, pode fomentar a saída de quotizados, sem que haja um plano dos gestores para resolver este problema.
Por isso, o TdC recomenda que a ADSE deixe da assumir encargos inerentes ao Orçamento do Estado e ao SNS como, por exemplo, despesas “que têm de ser financiadas por receitas gerais dos impostos”: a comparticipação do Estado no preço dos medicamentos, a assistência médica no estrangeiro quando ela não resulta da livre vontade da pessoa, os cuidados respiratórios domiciliários prescritos pelo SNS, o transporte de doentes de e para entidade do SNS e os meios complementares de diagnóstico e terapêutica prescritos pelo SNS, assim como a verificação domiciliária na doença e a realização de juntas médicas a pedido das entidades empregadoras, “uma actividade alheia ao esquema de benefícios da ADSE”.
Os auditores, neste âmbito, recomendam que a ADSE suspenda o financiamento dos cuidados da responsabilidade do SNS ou outros que não possam ser suportados pelo desconto, “caso não se disponha de receita com origem em fundos públicos”. No caso do controlo de faltas, propõem que a ADSE cobre às entidades empregadoras pela prestação do serviço. Ao nível da gestão, sugerem a aprovação de novo estatuto jurídico-financeiro, em que os beneficiários participem na gestão, que deve ser “exclusivamente técnica” e não “instrumento de política económica”.
O TdC lembra que as conclusões e recomendações feitas ao Governo e à própria ADSE se reportam a resultados de 2014, pelo que não têm em conta outros desenvolvimentos que ocorreram posteriormente, como é o caso da transferência da dependência da direção-geral do Ministério das Finanças para o da Saúde e a aprovação do novo modelo de governação.
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Vem aí a reforma da ADSE. Pelo despacho n.º 3177-A/2016, de 1 de março, o Ministro da Saúde explica que “a adopção de medidas de reformulação do sistema, nas vertentes jurídica, institucional, estatutária e financeira” será alvo de análise ponderada e aprofundada, “pelo que se revela adequado colher os contributos especializados de individualidades de reconhecido mérito”. Assim, é criada uma comissão para estudar a reformulação da ADSE (o subsistema de saúde dos funcionários e aposentados do Estado). Constituída por nove especialistas, a comissão tem até 30 de Junho para apresentar uma proposta que tenha em conta o programa do Governo e as recomendações do Tribunal de Contas.
Estes responsáveis reunirão de acordo com um plano ainda a definir e a comissão poderá ouvir as entidades “que considere convenientes” para apresentar, “até ao dia 30 de Junho de 2016 uma proposta de projeto de enquadramento e regulação que contemple a revisão do modelo institucional, estatutário e financeiro da Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE), de acordo com o previsto no Programa do Governo e tendo em conta as recomendações do Tribunal de Contas”.
De acordo com o predito despacho, os membros da comissão renunciaram a qualquer tipo de remuneração pelos trabalhos realizados.
Há várias propostas em cima da mesa quanto ao futuro da ADSE. O programa do Governo prevê que a gestão do subsistema tenha representantes dos beneficiários. E o Orçamento do Estado para 2016 prevê o alargamento do universo de beneficiários aos filhos entre os 26 e os 30 anos, aos cônjuges (incluindo os que descontam para outros sistemas de segurança social) e aos trabalhadores do Estado e empresas públicas com contrato individual de trabalho. A base destas alterações foi o relatório de atividades para 2015 da ADSE, que chegava mesmo a pôr em cima da mesa a criação de serviços de saúde próprios.
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Depois do exposto, são pertinentes alguns pontos de comentário.
Não percebo como é que a polémica em torno da ADSE só eclodiu depois que o subsistema se tornou superavitário. Até então ninguém a invejou nem falou em acabar com ela.
Advogar que os funcionários devem cingir-se ao SNS é ignorar que o SNS está longe de responder às necessidades da população, sobretudo agora com problemas acrescidos, e também é desprezar que este subsistema vive exclusivamente e viveu, na sua maior, parte das contribuições dos beneficiários. Mais: os trabalhadores do Estado eram obrigados a inscrever-se nele. Não podem, depois, vir deputados e ex-governantes dizer que é um seguro de saúde e os beneficiários podem sair livremente do subsistema. Pergunto que seguradora aceitaria utentes que passaram a vida a descontar para a ADSE, que benefícios lhes ofereceria aos 65 e mais anos de idade e por que preço. Também querem acabar com os demais subsistemas? E porque não cobiçam e intentam a participação nesses subsistemas com alguns o querem para a ADSE?
E pergunto-me por que motivo o Estado renunciou ao contributo da ADSE para o SNS e despesas farmacêuticas. Foi para justificar por esta via a satisfação de encargos orçamentais ou para legitimar o aumento brutal das taxas moderadoras no SNS? A não obrigatoriedade da permanência na ADSE visou amolecê-la e decretar o seu óbito ou foi ao abrigo da livre escolha?
Reforme-se o subsistema sem injustiçar o alargado painel de contribuintes não podres de ricos!

2016.03.05 – Louro de Carvalho    

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