Penso
dever recordar que Francisco, que passará à História, por um lado, como o Papa dos
pobres e das periferias existenciais e, por outro, como o Papa da Misericórdia
– o que deve ser entendido não como dialogia dicotómica, mas intrinsecamente
entrosada – começou com a afirmação da vertente da misericórdia mostrada em
Jesus e da vertente da providência intuída em Deus e espelhada nas suas
criaturas mais diletas.
Com
efeito, antes da recitação do Angelus,
em 17 de março de 2013, perante os fiéis apinhados na Praça de São Pedro,
declarou, a propósito do episódio da adúltera alegadamente apanhada em
flagrante (Jo 8,1-11),
salientando o lado misericordioso de Deus:
“O rosto de Deus é o de um pai misericordioso,
que sempre tem paciência. Já pensastes na paciência de Deus, na paciência que
Ele tem com cada um de nós? É a sua misericórdia. Sempre tem paciência, tanta
paciência connosco: compreende-nos, está à nossa espera; não se cansa de nos
perdoar, se soubermos voltar para Ele com o coração contrito.”
Já na homilia da missa na paróquia de Santa Ana, do
Vaticano, no mesmo dia, comentando a mesma passagem do Evangelho de São João, conjugada
com o propósito de Cristo vir para os pecadores, segundo a linha dos sinóticos,
advertia:
“Ora a mensagem de Jesus é sempre a mesma: a
misericórdia. A meu ver – humildemente o afirmo –, é a mensagem mais forte do
Senhor: a misericórdia. Ele próprio o disse: Eu não vim para os justos; os
justos justificam-se sozinhos – alto lá, bendito Senhor! Se Tu podes fazê-lo,
eu não posso! – Sim, mas eles acreditam que o podem fazer. Eu vim para os
pecadores (cf Mt 9,13; Mc 2,17; Lc 5,32).”
E, no fim da Via-Sacra, em sexta-feira santa do
seu primeiro ano de pontificado, ensina que, por detrás do perdão, da
misericórdia e do julgamento, está o amor:
“Na realidade, Deus falou, respondeu, e a sua
resposta é a Cruz de Cristo: uma Palavra que é amor, misericórdia, perdão. É
também julgamento: Deus julga amando-nos. […]. Caminhemos juntos pela senda da
Cruz, caminhemos levando no coração esta Palavra de amor e de perdão.”
Mas, no primeiro discurso aos cardeais, ressalta
o lado providente plasmado na ação do Espírito Santo, que, enquanto Paráclito,
“é o protagonista supremo de cada iniciativa e manifestação de fé”. Mais:
“O Paráclito cria todas as diferenças nas
Igrejas, parecendo um apóstolo de Babel. Mas, por outro lado, é Ele que cria a
unidade destas diferenças, não na “igualação”, mas na harmonia. Lembro-me de um
Padre da Igreja que O definia assim: “Ipse harmonia est”. É o Paráclito
quem dá a cada um de nós os diversos carismas, e nos une nesta comunidade da
Igreja que adora ao Pai, ao Filho e a Ele, ao Espírito Santo.”
E, na homilia da missa da inauguração do seu
exercício do múnus petrino, a 19 de março de 2013, a partir da missão de São
José, de guardião de Jesus e de Maria, entende que esta missão custódia (de guardar providentemente) se
estende a toda a Igreja, citando, a propósito o n.º 1 da exortação apostólica Redemptoris Custos, de João Paulo II:
“São José, assim como cuidou com amor de Maria e
se dedicou com empenho jubiloso à educação de Jesus Cristo, assim também guarda
e protege o seu Corpo místico, a Igreja, da qual a Virgem Santíssima é figura e
modelo”.
Mais: trata-se de uma missão arvorada em
obrigação de todos os cristãos e com “uma dimensão antecedente, que é
simplesmente humana e diz respeito a todos”:
É a de guardar a criação inteira, a beleza da
criação, como se diz no livro de Génesis e nos mostrou São Francisco de Assis:
é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos. É
guardar as pessoas, cuidar carinhosamente de todas elas e cada uma,
especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis e que
muitas vezes estão na periferia do nosso coração. É cuidar uns dos outros na
família: os esposos guardam-se reciprocamente, depois, como pais, cuidam dos
filhos, e, com o passar do tempo, os próprios filhos tornam-se guardiões dos
pais. É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo guardar-se na
intimidade, no respeito e no bem. Fundamentalmente, tudo está confiado à guarda
do homem, e é uma responsabilidade que nos diz respeito a todos. Sede guardiões
dos dons de Deus!”
Recorde-se que a encíclica Laudato Si’ constitui um hino ao Deus criador, uma homenagem ao
Deus providente que nos guarda e a assunção do nosso dever de guardiões da
criação ou “dos dons de Deus”, em que têm a palavra e o mister decisivo os
responsáveis pelos destinos dos povos. E, porque se falha tanto nesta missão
custódia, porque se destrói a Terra; porque se criam as desigualdades, a
opressão/repressão, o tráfico de órgãos humanos, pessoas e bens; porque se
instalam estruturas de pecado e crime, com as consequências de condenação e
vingança – por tudo isso, ressalta o contraste entre a postura de Deus e a
postura dos homens: a justiça humana, no seu poder discricionário, faz uso e
abuso da condenação e da punição (e timidamente da reinserção); a justiça divina faz gala do perdão, da espera
de Deus, da alegria por quem volta. A justiça humana é lacunar, fiando-se na
aparência, lenta e implacável; a justiça divina é pronta, misericordiosa, de
coração; a justiça humana funda-se na lei, é cega e cortante; a justiça divina
funda-se no amor, tem a lucidez do olhar de Deus amoroso e misericordioso de
Deus e é reconciliadora; a justiça humana cumpre-se através da multa e do
cárcere (tantas vezes da morte) e
da vigilância repressiva; a justiça divina cumpre-se através da comunhão com Deus,
os irmãos e a criação e exprime-se no enunciado: “Vai em paz e não tornes a pecar!” (Jo 8,11).
Ora, o Papa Francisco avisa sobre o que é preciso
para a bondade e eficácia do guardar:
“Para ‘guardar’, devemos também cuidar de nós
mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida; então ‘guardar’
quer dizer vigiar sobre os nossos sentimentos, o nosso coração, porque é dele
que saem as boas intenções e as más: aquelas que edificam e as que destroem.
Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura.”
***
Como é a providência de Deus? Sempre aprendemos e
confessamos: Deus está em toda a parte e cuida de nós. Mas como é que este
cuidado providente, conjugado com a omnipresença divina, se concretiza?
O profeta Ezequiel mostra-nos o cuidado de Deus
semelhante ao do bom pastor. Ele próprio cuidará das suas ovelhas e se
interessará por elas (cf 34,11) e
as livrará da dispersão e, do deserto ou da confusão, as reconduzirá à sua
terra e pastagens:
“Como o pastor se
preocupa com o seu rebanho, quando se encontra entre as ovelhas dispersas,
assim me preocuparei Eu com o meu. Reconduzi-lo-ei de todas as partes por onde
tenha sido disperso, num dia de nuvens e de trevas. Arrancá-los-ei de entre os povos e os
reunirei dos vários países, a fim de os reconduzir à sua própria terra e os
apascentar nos montes de Israel, nos vales e em todos os lugares habitados da
região.” (34, 12-13).
A ação divina consiste em dar bom alimento às ovelhas, vigiar
sobre a gorda e forte para que não perca as suas qualidades nem se volte contra
as demais e ter cuidados redobrados para com a doente e/ou dispersa:
“Eu os apascentarei em boas pastagens; o seu pasto será nas
montanhas elevadas de Israel; estarão tranquilas em bons pastos; comerão em
férteis prados, nos montes de Israel. Sou
Eu que apascentarei as minhas ovelhas, sou Eu quem as fará descansar – oráculo
do Senhor Deus. Procurarei aquela
que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que
está ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei sobre a que está gorda e
forte. A todas apascentarei com justiça.” (34, 14-16).
É de anotar que este juízo de Deus se justifica –
quem sabe se hoje também assim será na condução da Igreja e dos povos! – pela
iniquidade de quem detém a obrigação e o poder:
“Ai dos pastores de Israel, que se apascentam a
si mesmos! Não devem os pastores apascentar o rebanho? Vós, porém, bebestes-lhes o leite,
vestistes-vos com a sua lã, matastes as reses mais gordas e não apascentastes
as ovelhas. Não tratastes das
fracas, não cuidastes da doente, não curastes a que estava ferida; não
reconduzistes a transviada; não procurastes a que se tinha perdido; mas a todas
tratastes com violência e dureza.”
Os Evangelhos acentuam a providência, como se
pode ver, por exemplo, em Mateus e Lucas.
A seguinte passagem de Mateus é eloquente no
atinente à alimentação e ao vestuário:
“Não vos inquieteis quanto
à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo,
com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento e o
corpo mais do que o vestido? Olhai
as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai
celeste alimenta-as. […] Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai como
crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! […] Ora, se Deus veste assim a erva do
campo, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, como não fará muito mais
por vós, homens de pouca fé?” (Mt 6,25-26a.27.29-30).
E
Lucas, a propósito da oração e da bondade divina, evidencia o lado paternal de
Deus:
“Qual o pai de entre vós
que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir um peixe,
lhe dará uma serpente? Ou, se lhe
pedir um ovo, lhe dará um escorpião? Pois se vós, que sois maus, sabeis dar
coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo
àqueles que lho pedem!” (Lc 11,11-13).
Depois,
as três parábolas da misericórdia, do capítulo 15 do evangelho lucano já
comentadas atestam o lado misericordioso do Pai – que o é porque equitativo, generoso,
justo, atento, confiante e expectante. Com o regresso do filho “perdido”, ora
encontrado, manda fazer festa e insta a que todos participem, incluindo o filho
renitente e invejoso.
Porém,
a providência, a misericórdia e o amor atingem o auge em Jesus – no
conhecimento, no chamar pelo nome e na entrega até morte – que sente em si o
encargo amoroso dado pelo Pai:
“Eu sou o bom pastor;
conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me, assim como o Pai me conhece e Eu
conheço o Pai; e ofereço a minha vida pelas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas
que não são deste redil. Também a estas Eu preciso de as trazer e hão de ouvir
a minha voz; e haverá um só rebanho e um só pastor. É por isto que meu Pai me tem amor:
por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. Ninguém ma tira, mas sou Eu que a
ofereço livremente. Tenho poder de a oferecer e poder de a retomar. Tal é o
encargo que recebi de meu Pai.” (Jo 10,14-18).
E,
no cume do sofrimento, suplica o perdão para aos seus algozes: “Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,24).
***
É
com um coração amoroso, providente e misericordioso – como o de Deus – que o
Papa que uma Igreja de portas abertas e em saída para as periferias existenciais
qual hospital de campanha a cuidar da humanidade ferida – economia missionaria
em que se inscreve a opção preferencial pelos pobres.
Para
tanto a encomenda (entrega ou confia) à guarda proveniente de Deus, ao cuidado intercessor da Mãe,
à solicitude de José, às preces dos santos e ao serviço zeloso (Que responsabilidade!), embora frágil, dos Pastores.
2016.03.12 – Louro
de Carvalho
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