quarta-feira, 16 de março de 2016

No centenário do museu Grão Vasco

Passa hoje, dia 16 de março, o centenário do Museu Nacional Grão Vasco, que a instituição se propõe celebrar de “portas abertas”. E, se as velas aniversárias se apagam nesta data centenária, a celebração prolonga-se pelo ano inteiro.
Este museu, criado pelo decreto 2284-C, é sonho e iniciativa do capitão Francisco de Almeida Moreira, que foi o seu primeiro diretor e cujo objetivo era preservar e valorizar o património histórico, artístico e arqueológico da região de Viseu, em especial as pinturas de Vasco Fernandes. Este militar, professor e artista – homem de apurada sensibilidade para as artes – começou por instalar esta unidade museológica no interior do complexo do edifício da Sé de Viseu, onde depois ficou o chamado Tesouro da Sé. Só em 1938, as obras ali reunidas foram transferidas para o edifício contíguo à nave lateral direita da catedral e que se prolonga até à rua fronteira à igreja da Misericórdia. Este é o Paço dos Três Escalões, dantes seminário e paço episcopal e onde funcionou o Liceu Nacional. Depois da requalificação sob o projeto do arquiteto Souto Moura – levada a cabo entre 2001 e 2003, o museu ficou dotado das valências museológicas que hoje se lhe reconhecem e lhe valeram o estatuto de museu nacional atribuído por despacho publicado em 18 de maio de 2015, assinado pelo então Secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier.
Este espaço museológico de Grão Vasco, no centro histórico da cidade – que acolhe a obra de Vasco Fernandes ou Grão Vasco, nome maior da pintura portuguesa dos séculos XV e XVI – possui um acervo que inclui obras de arte de diversa tipologia e cronologia. A coleção principal do museu é constituída por um conjunto notável de pinturas de retábulo, provenientes da Catedral, de outras igrejas da região e de depósitos de outros museus, da autoria de Vasco Fernandes (c. 1475-1542), de seus colaboradores e de contemporâneos. Porém, o acervo inclui objetos e suportes figurativos originalmente destinados a práticas litúrgicas (pintura, escultura, ourivesaria e marfins, do Românico ao Barroco), maioritariamente provenientes da Catedral e de outras igrejas da região, a que se juntam várias peças de arqueologia, uma coleção importante de pintura portuguesa dos séculos XIX e XX, exemplares de mobiliário, faiança portuguesa e porcelana oriental.
O destaque vai para os 14 painéis do retábulo da capela-mor da Sé da cidade episcopal (1501-1506), no auge da época dos Descobrimentos, ou para as monumentais obras São Pedro, Anunciação, Última Ceia (ou Instituição da Sagrada Eucaristia) ou para o tríptico Lamentação sobre o Corpo de Cristo, São Francisco, Santo António, Assunção da Virgem… Este é efetivamente “o coração do Museu”, segundo o seu diretor Agostinho Ribeiro, que refere que a maioria das 22 obras classificadas como tesouro nacional são da autoria de Grão Vasco (nome por que era conhecido Vasco Fernandes no século XVI) e que o museu possui obras de Columbano Bordalo Pinheiro, José Malhoa e Silva Porto, além de objetos e suportes figurativos destinados à Liturgia, esculturas, peças de ourivesaria e faiança portuguesa.
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A evocação celebrativa do centenário sob o mote “Festa do Museu, Festa de Viseu”, ocorre hoje, dia 16, com a atuação do Coro do Teatro Nacional de São Carlos (na Catedral), a inauguração da exposição multimédia História do Museu Nacional Grão Vasco (desde as origens da sua fundação até à atualidade, patente até 26 de junho) e lançamento de uma edição limitada do Vinho Grão Vasco Reserva do Museu 1996, além conferências e lançamento de edições comemorativas ao longo do ano.
Destacam-se ainda, entre as 50 iniciativas museológicas para o corrente ano do centenário: Diálogos Intemporais (escultura de Rogério Timóteo)> até 26 junho; Aguarelas, de Júlio Resende> até 1 maio; Visitas Dançadas, de Leonor Barata (parceria com o Teatro Viriato)> 4-29 de maio; Visitas Musicadas  (parceria com o Conservatório de Música Dr. Azeredo Perdigão)> maio e junho; Noite no Museu> 14 maio; Concerto da Banda Sinfónica do Exército> 21 maio; e Faianças Artísticas de Bordallo Pinheiro, de 8 de outubro de 2016 a 29 janeiro de 2017.
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Do exterior, contempla-se o Paço dos Três Escalões como um enorme cubo em granito. Contudo, o interior do Museu Grão Vasco alberga segredos que não são visíveis pelos visitantes. Na “cave, voltada à cisterna do Largo António José Pereira, situam-se as oficinas, os laboratórios e as máquinas que garantem a segurança do edifício. No rés-do-chão, estão os serviços, a livraria, a cafetaria, a biblioteca e a sala de exposições temporárias. No primeiro andar, há mais peças expostas, mas é no segundo andar que se encontram os painéis de Grão Vasco e, em especial, o ex-líbris do museu, o “São Pedro”. E, no último andar, logo abaixo do telhado, o cofre-forte guarda várias centenas de pinturas – cerca de 4 mil, sendo que muitas delas estão expostas noutros espaços do país e que constituem as reservas, como adianta Agostinho Ribeiro.
A construção do Paço dos Três Escalões, com início a 6 de Julho de 1593, no local onde se aprecia o museu, deveu-se à necessidade de criar na cidade e diocese um seminário ou um colégio para a formação do clero. Embora se desconheça em bom rigor a autoria do projeto, aponta-se para uma origem castelhana, à semelhança do que sucedeu com o desenho da fachada da Catedral, encomendado alguns anos mais tarde a um arquiteto de Salamanca. Este imponente edifício granítico, cujo último piso terá sido acrescentado já no século XVIII, mantém uma relação singular entre sobriedade e monumentalidade sobretudo através da extensa fachada norte, em cujo efeito cenográfico se configura a própria cidade episcopal.
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Embora o ex-libris do museu Grão Vasco seja com toda a razão o quadro de São Pedro pela imponente centralidade da figura anacronicamente imperial do primeiro Papa em postura de bênção, devidamente proporcionada e de olhar vivo num rosto austero, não posso deixar de salientar um outro quadro, o da Adoração do Magos. Retrata uma das cenas da temática da natalidade do Senhor presente em 7 dos 14 quadros do retábulo da Capela-Mor da Sé de Viseu no Renascimento. Constitui a primeira representação de um indígena na história da arte europeia. Com efeito, o Baltazar do episódio da adoração do Menino narrado pelo Evangelho de Mateus (vd Mt 2, 1-12) é, no quadro do pintor renascentista, um índio brasileiro dos tupinambá.
Pedro Álvares Cabral aportou a terras de Vera Cruz em 1500 e a pintura será datada de entre 1501 e 1503. O Baltazar de Grão Vasco enverga camisa e calções à europeia na época, mas ostenta na cabeça um toucado de penas, curiosa novidade exótica. O pescoço vai circundado de inúmeros colares de contas; os pulsos e tornozelos vão adornados de manilhas de ouro; das orelhas pendem brincos de coral branco; e como insígnia exibe uma flecha apoiada no chão. Para a cerimónia da oferenda ao Menino Deus segura nas mãos uma taça de casca de coco.
O simbolismo da cena viseense remonta à ideia fundamental da Epifania enquanto revelação da salvação de Deus aos gentios em virtude da qual a evangelização há de chegar a todos os povos (vd Mt 28,19; At 11,18). No caso português, percebe-se de imediato a força da mensagem contida na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel I sobre o achamento do Brasil, onde vive um povo disponível para a mensagem cristã, pelo que se impõe aos portugueses e espanhóis a tarefa da evangelização e cristianização do continente americano.  
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Depois que se tornou museu nacional, o Grão Vasco duplicou o número anual de visitantes e entrou numa ambição antes não sonhada: gostaria de atingir no ano do centenário os cem mil visitantes, fasquia tornada possível face aos números registados em janeiro e fevereiro. A este respeito, o diretor entende que a realização de tal desiderato “constituiria uma belíssima prenda. Graças à sua “localização”, à “qualidade do seu acervo” e também à “designação de museu nacional”, que obteve recentemente, o museu tem “atratibilidade suficiente para o aumento do número de visitantes”.
Agostinho Ribeiro declarou que a “obra que é o rosto do próprio museu”, “São Pedro”, pintado por Vasco Fernandes, em 1529, foi encomenda dum “grande bispo do renascimento português, Dom Miguel da Silva”. E adiantou que “talvez esta constitua a obra referencial, tanto mais que é uma obra-prima do grande pintor, incontornável no conhecimento e na interpretação da História da Arte em Portugal”. Estão submetidas a proteção especial para acautelar a preservação: a escultura em madeira dourada “Santa Ana e a Virgem”, de Claude Joseph Laprade (1732); e o autorretrato de Columbano Bordalo Pinheiro, “No meu atelier” (1884). Segundo Agostinho Ribeiro, são três obras que exemplificam a “diversidade e a qualidade intrínseca” do acervo do Museu Nacional Grão Vasco.
Como desafios a partir do centenário, indica: por um lado, a manutenção daquilo que de bem tem vindo a fazer, como “a conservação, a preservação, o estudo, a classificação das obras de arte e depois expô-las e divulgá-las”; por outro lado, o reforço da componente “da afirmação dos museus na contemporaneidade”, dado que não podem ser “só esse repositório do património que salvaguarda, que preserva, que estuda e que divulga”.
Para Agostinho Ribeiro, o museu tem de “projetar a contemporaneidade” e constituir-se como “centro de dinamização e de ação cultural”, pluridisciplinar e aberto a diversos públicos, no pressuposto de que “já não trabalhamos para a comunidade, trabalhamos com a comunidade nestas parcerias que temos vindo a desenvolver com as entidades que fazem o todo da sociedade viseense”.
Por sua vez, Almeida Henriques, Presidente da Câmara de Viseu, assume o Museu Nacional Grão Vasco, a que foi atribuída a medalha de ouro municipal, como “uma âncora da cidade” que faz parte da estratégia ambiciosa que o município tem para o património cultural. E lembrou que Viseu pretende assumir, “cada vez mais, o seu estatuto de uma cidade com 2.500 anos de História que está a descobrir o seu património material e imaterial”, com o objetivo de obter a classificação de Património da Humanidade da UNESCO.
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Pois bem, o melhor que um cidadão natural da ilustre Beira Alta pode esperar da sua cidade cabeça de distrito é que o museu nacional de Grão Vasco marque mais e mais pontos na afirmação cultural portuguesa de vocação universal e a UNESCO reconheça a valia deste escrínio de arte humanizada e humanizante.

2016.03.16 

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