Passa
hoje, dia 16 de março, o centenário do Museu Nacional Grão Vasco, que a
instituição se propõe celebrar de “portas abertas”. E, se as velas aniversárias
se apagam nesta data centenária, a celebração prolonga-se pelo ano inteiro.
Este
museu, criado pelo decreto 2284-C, é sonho e iniciativa do capitão Francisco de
Almeida Moreira, que foi o seu primeiro diretor e cujo objetivo era preservar e valorizar o
património histórico, artístico e arqueológico da região de Viseu, em especial
as pinturas de Vasco Fernandes.
Este militar, professor e artista – homem de apurada sensibilidade para as
artes – começou por instalar esta unidade museológica no interior do complexo
do edifício da Sé de Viseu, onde depois ficou o chamado Tesouro da Sé. Só em 1938, as obras ali reunidas foram transferidas
para o edifício contíguo à nave lateral direita da catedral e que se prolonga
até à rua fronteira à igreja da Misericórdia. Este é o Paço dos Três Escalões, dantes seminário e paço episcopal e onde
funcionou o Liceu Nacional. Depois da requalificação sob o projeto do arquiteto
Souto Moura – levada a cabo entre 2001 e 2003, o museu ficou dotado das valências
museológicas que hoje se lhe reconhecem e lhe valeram o estatuto de museu nacional
atribuído por despacho publicado em 18 de maio de 2015, assinado pelo então Secretário
de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier.
Este espaço museológico de Grão Vasco, no centro histórico da
cidade – que acolhe a obra de Vasco Fernandes ou Grão Vasco, nome maior da
pintura portuguesa dos séculos XV e XVI – possui um acervo que inclui obras de
arte de diversa tipologia e cronologia. A coleção principal do museu é
constituída por um conjunto notável de pinturas de retábulo, provenientes da
Catedral, de outras igrejas da região e de depósitos de outros museus, da
autoria de Vasco Fernandes (c. 1475-1542), de seus
colaboradores e de contemporâneos. Porém, o acervo inclui objetos e suportes
figurativos originalmente destinados a práticas litúrgicas (pintura, escultura, ourivesaria e marfins, do Românico ao
Barroco), maioritariamente provenientes da Catedral e de outras igrejas da
região, a que se juntam várias peças de arqueologia, uma coleção importante de
pintura portuguesa dos séculos XIX e XX, exemplares de mobiliário, faiança
portuguesa e porcelana oriental.
O destaque vai para os 14 painéis do retábulo da capela-mor
da Sé da cidade episcopal (1501-1506), no auge da
época dos Descobrimentos, ou para as monumentais obras São Pedro, Anunciação, Última Ceia (ou Instituição da
Sagrada Eucaristia) ou para o tríptico Lamentação
sobre o Corpo de Cristo, São
Francisco, Santo António, Assunção da Virgem… Este é efetivamente “o
coração do Museu”, segundo o seu diretor Agostinho Ribeiro, que refere que a
maioria das 22 obras classificadas como tesouro nacional são da autoria de Grão
Vasco (nome por que era conhecido Vasco Fernandes no século XVI) e que o museu possui
obras de Columbano Bordalo Pinheiro, José Malhoa e Silva Porto, além de objetos
e suportes figurativos destinados à Liturgia, esculturas, peças de ourivesaria e
faiança portuguesa.
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A
evocação celebrativa do centenário sob o mote “Festa do Museu, Festa de Viseu”, ocorre hoje, dia 16, com a atuação
do Coro do Teatro Nacional de São Carlos (na Catedral), a inauguração da exposição multimédia
História do Museu Nacional Grão Vasco
(desde
as origens da sua fundação até à atualidade, patente até 26 de junho) e lançamento de uma edição
limitada do Vinho Grão Vasco Reserva do Museu 1996, além conferências e lançamento
de edições comemorativas ao longo do ano.
Destacam-se
ainda, entre as 50 iniciativas museológicas para o corrente ano do centenário: Diálogos Intemporais (escultura de
Rogério Timóteo)> até 26
junho; Aguarelas, de Júlio Resende>
até 1 maio; Visitas Dançadas, de Leonor Barata (parceria com o Teatro Viriato)> 4-29 de maio; Visitas
Musicadas (parceria com
o Conservatório de Música Dr. Azeredo Perdigão)> maio e junho;
Noite no Museu> 14 maio;
Concerto da
Banda Sinfónica do Exército> 21 maio; e Faianças Artísticas de Bordallo
Pinheiro, de 8 de outubro
de 2016 a 29 janeiro de 2017.
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Do
exterior, contempla-se o Paço dos Três Escalões
como um enorme
cubo em granito. Contudo, o interior do Museu Grão Vasco alberga segredos que
não são visíveis pelos visitantes. Na “cave, voltada à cisterna do Largo
António José Pereira, situam-se as oficinas, os laboratórios e as máquinas que
garantem a segurança do edifício.
No rés-do-chão,
estão os serviços, a livraria, a cafetaria, a biblioteca e a sala de exposições
temporárias. No primeiro andar, há mais peças expostas, mas é no segundo andar
que se encontram os painéis de Grão Vasco e, em especial, o ex-líbris do museu,
o “São Pedro”. E, no último andar,
logo abaixo do telhado, o cofre-forte guarda várias centenas de pinturas – cerca
de 4 mil, sendo que muitas delas estão expostas noutros espaços do país e que
constituem as reservas, como adianta Agostinho Ribeiro.
A construção do Paço dos Três
Escalões, com início a 6 de Julho de 1593, no
local onde se aprecia o museu, deveu-se à necessidade de
criar na cidade e diocese um seminário ou um colégio para a formação do clero. Embora
se desconheça em bom rigor a autoria do projeto, aponta-se para uma
origem castelhana, à semelhança do que sucedeu com
o desenho da fachada da
Catedral, encomendado alguns anos mais tarde a
um arquiteto de Salamanca. Este imponente edifício granítico, cujo
último piso terá sido acrescentado já no século
XVIII, mantém uma relação singular entre sobriedade
e monumentalidade sobretudo através da extensa fachada norte, em cujo
efeito cenográfico se configura a própria cidade episcopal.
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Embora
o ex-libris do museu Grão Vasco seja com toda a razão o quadro de São Pedro pela imponente centralidade da
figura anacronicamente imperial do primeiro Papa em postura de bênção, devidamente
proporcionada e de olhar vivo num rosto austero, não posso deixar de salientar
um outro quadro, o da Adoração do Magos.
Retrata uma das cenas da temática da natalidade do Senhor presente em 7 dos 14
quadros do retábulo da Capela-Mor da Sé de Viseu no Renascimento. Constitui a
primeira representação de um indígena na história da arte europeia. Com efeito,
o Baltazar do episódio da adoração do
Menino narrado pelo Evangelho de Mateus (vd Mt 2, 1-12) é, no quadro do pintor
renascentista, um índio brasileiro dos tupinambá.
Pedro
Álvares Cabral aportou a terras de Vera Cruz em 1500 e a pintura será datada de
entre 1501 e 1503. O Baltazar de Grão Vasco enverga camisa e calções à europeia
na época, mas ostenta na cabeça um toucado de penas, curiosa novidade exótica. O
pescoço vai circundado de inúmeros colares de contas; os pulsos e tornozelos
vão adornados de manilhas de ouro; das orelhas pendem brincos de coral branco; e
como insígnia exibe uma flecha apoiada no chão. Para
a cerimónia da oferenda ao Menino Deus segura nas mãos uma taça de casca de
coco.
O
simbolismo da cena viseense remonta à ideia fundamental da Epifania enquanto revelação
da salvação de Deus aos gentios em virtude da qual a evangelização há de chegar
a todos os povos (vd Mt 28,19; At 11,18). No caso português, percebe-se
de imediato a força da mensagem contida na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei
Dom Manuel I sobre o achamento do Brasil, onde vive um povo disponível para a mensagem
cristã, pelo que se impõe aos portugueses e espanhóis a tarefa da evangelização
e cristianização do continente americano.
***
Depois
que se tornou museu nacional, o Grão Vasco duplicou o número anual de
visitantes e entrou numa ambição antes não sonhada: gostaria de atingir no ano
do centenário os cem mil visitantes, fasquia
tornada possível face aos números registados em janeiro e fevereiro. A este respeito,
o diretor entende que a realização de tal desiderato “constituiria uma
belíssima prenda. Graças à sua “localização”, à “qualidade do seu acervo” e
também à “designação de museu nacional”, que obteve recentemente, o museu tem
“atratibilidade suficiente para o aumento do número de visitantes”.
Agostinho
Ribeiro declarou que a “obra que é o rosto do próprio museu”, “São Pedro”, pintado por Vasco Fernandes,
em 1529, foi encomenda dum “grande bispo do renascimento português, Dom Miguel
da Silva”. E adiantou que “talvez esta constitua a obra referencial, tanto mais
que é uma obra-prima do grande pintor, incontornável no conhecimento e na
interpretação da História da Arte em Portugal”. Estão submetidas a proteção
especial para acautelar a preservação: a escultura em madeira dourada “Santa
Ana e a Virgem”, de Claude Joseph Laprade (1732); e o autorretrato de Columbano Bordalo Pinheiro, “No meu atelier” (1884). Segundo Agostinho Ribeiro, são três obras que
exemplificam a “diversidade e a qualidade intrínseca” do acervo do Museu
Nacional Grão Vasco.
Como desafios
a partir do centenário, indica: por um lado, a manutenção daquilo que de bem
tem vindo a fazer, como “a conservação, a preservação, o estudo, a
classificação das obras de arte e depois expô-las e divulgá-las”; por outro
lado, o reforço da componente “da afirmação dos museus na contemporaneidade”,
dado que não podem ser “só esse repositório do património que salvaguarda, que
preserva, que estuda e que divulga”.
Para
Agostinho Ribeiro, o museu tem de “projetar a contemporaneidade” e
constituir-se como “centro de dinamização e de ação cultural”, pluridisciplinar
e aberto a diversos públicos, no pressuposto de que “já não trabalhamos para a
comunidade, trabalhamos com a comunidade nestas parcerias que temos vindo a
desenvolver com as entidades que fazem o todo da sociedade viseense”.
Por sua vez,
Almeida Henriques, Presidente da Câmara de Viseu, assume o Museu Nacional Grão
Vasco, a que foi atribuída a medalha de ouro municipal, como “uma âncora da
cidade” que faz parte da estratégia ambiciosa que o município tem para o
património cultural. E lembrou que Viseu pretende assumir, “cada vez mais, o
seu estatuto de uma cidade com 2.500 anos de História que está a descobrir o
seu património material e imaterial”, com o objetivo de obter a classificação
de Património da Humanidade da UNESCO.
***
Pois bem, o
melhor que um cidadão natural da ilustre Beira Alta pode esperar da sua cidade
cabeça de distrito é que o museu nacional de Grão Vasco marque mais e mais
pontos na afirmação cultural portuguesa de vocação universal e a UNESCO
reconheça a valia deste escrínio de arte humanizada e humanizante.
2016.03.16
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