Esta
é a frase sentenciosa proferida por Jesus face à tentativa dos fariseus de
impedirem as crianças, os discípulos e a multidão de aclamarem o Senhor que
entrava triunfalmente na sua Jerusalém, a cidade do grande Rei. É com o relato desta
solene ovação a Jesus Mestre e Senhor, o Rei que vem em nome do Senhor, aquando
da sua entrada em Jerusalém montando num jumentinho, que se inicia a Semana Santa.
É o domingo de Ramos ou da Paixão.
É
domingo de Ramos, porque à passagem do Senhor o povo estendia as suas capas no
caminho para o Rei passar, as pessoas cortavam ramos de oliveira e de outras
árvores e lançavam-nos no solo enquanto aclamavam o Senhor, clamando: “Bendito
o Rei que vem em nome do Senhor, Paz no Céu e glória nas alturas” (Lc
19,38); “Hossana!
Bendito O que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino que vem, o Reino do nosso
pai David! Hossana nas alturas!” (Mc 11,9-10).
É
domingo da Paixão, porque esta entrada solene, mas humilde, não de poder, mas
de serviço, é prenúncio do supremo martírio do Gólgota. Esta apoteose é o
encaminhamento para a morte voluntária de Jesus, a entrega amorosa pela
salvação da humanidade – entrega cujo instrumento é a resolução sinedrita estranhamente
homologada por Pôncio Pilatos. É assim que em Domingo de Ramos se proclama na
Missa o relato da Paixão de Cristo segundo os evangélicos sinóticos (Mateus,
no ano A; Marcos no ano B; e Lucas, no ano C), sendo Sexta-feira Santa o momento central da
Paixão, pelo que se proclamará, nesse dia, o relato da Paixão de Cristo segundo
João.
Porém,
se este domingo de Ramos e da Paixão constitui a inauguração da caminhada para
morte de Cristo, é consequentemente o rasgar dos Céus para o milagre da
Ressurreição e para a descida do Espírito Paráclito como dom total de Deus ao
Homem a corroborar a ação redentora do Filho de Deus em prol de cada um dos
homens pecadores, que doravante se alimentam da Eucaristia, renovação incruenta
do Sacrifício e Sacramento do amor divino e fraternal.
Hoje,
domingo da Paixão e 20 de março, a proclamação da Paixão (Lc
22,14 – 23,56) é
precedida da leitura de Isaías (Is 50-4-7), a perícopa do Servo sofrente, que se oferece como
vítima pelos irmãos; do canto meditado do Salmo 22 (21), o do aparente abandono do
servo por Deus – que se lamenta: “Meu
Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?” (M7,27,46; Mc
15,34) –, mas que há
de proclamar o nome de Deus na assembleia para que todos O glorifiquem; e da
leitura da carta de Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11), a da auto-humilhação do Filho
de Deus. Porém, na sexta-feira, a Paixão do Redentor segundo o relato do
discípulo predileto (Jo 18,1 – 19,42) culmina a Liturgia da Palavra,
a preceder a oração universal, a que se segue a exaltação e adoração da Santa
Cruz e a Sagrada Comunhão a partir da reserva eucarística de quinta-feira
Santa. A proclamação da Paixão é antecedida da leitura da profecia de Isaías (Is
52,13 – 53,12), a
perícopa do Servo que realiza o
resgate do povo na humilhação e de cuja morte nascerá um novo Povo de Deus, a
Igreja; do canto meditado do Salmo 32 (31) sob o mote, “Pai em Tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc
23,46), o canto da
esperança no Senhor e apelo à coragem e animação de todos os que esperam em
Deus; e da leitura da carta aos Hebreus (Hb 4,15-16.5,7-9), do Sumo Sacerdote que, pelo
seu sacrifício até à morte, movido pela obediência e confiança, duma só vez, resgatou
a humanidade e lhe restituiu a graça e a misericórdia, tornando-se causa da
nossa salvação.
Da
morte de Cristo na cruz evidencia-se o perdão de Deus, implorado pelo próprio
Filho (cf
Lc 23,34), a
promessa do paraíso para os desapegados do pecado (cf
Lc 23,42.43), a
exaltação da inocência do Cordeiro de Deus (cf Jo 1,29) e o nascimento da Igreja do
lado aberto e adormecido de Cristo (cf Jo 19,21-37), a qual assenta o seu
discipulado na companhia de Maria (cf Jo 19,25-27), a mãe e o protótipo da Igreja
(cf
At 1,14; Ap 12,1-6.13-14).
***
Na sua
homilia da celebração eucarística da Paixão, o Santo Padre recordou que só
Jesus nos salva dos laços do pecado, da morte, do medo e da tristeza.
Apesar de
partir de texto pré-escrito, Francisco improvisou algumas palavras para chamar
a atenção sobre a situação dos migrantes e refugiados em cuja situação se
espelha no hoje o drama da Paixão de Cristo nas vertentes de abandono,
exploração das pessoas, tráfico de pessoas e órgãos, construção de muros, tortura,
separação forçada das famílias, êxodo das suas terras, miséria e morte aos
poucos e aos pedaços. São as consequências da guerra que gera destruição,
penúria e morte – e tudo movido pela luta de interesses, frustração negocial e
diplomática, indústria e comércio de armas e outros equipamentos militares.
Dizia o Papa
que a multidão gritava em festa, “Bendito seja o que vem em nome do Senhor»
(cf Lc 19,38). E reconheceu que os peregrinos que acorreram à
Praça de São Pedro, sobretudo os jovens da 31.ª Jornada Mundial da Juventude,
que terá o seu ápice em Cracóvia no próximo verão, fizeram seu aquele
entusiasmo de há dois mil anos. Agitaram ramos de palmeira e de oliveira,
exprimiram com o Papa o louvor, a alegria e o desejo de receber Jesus que vem a
nós, que deseja entrar em nossas vidas, em nossas aldeias e cidades. Já não vem
montado num jumentinho, mas vem até nós com a mesma humildade, vem “em nome do
Senhor” com” a força do seu amor divino”, a perdoar “os nossos pecados” e a reconciliar-nos
“com o Pai e com nós mesmos”. Também hoje fica contente com a manifestação de
afeto da multidão quando novos fariseus O convidam a calar as crianças e os
outros que o aclamam, sentenciando que “se eles se calarem, gritarão as pedras”
(Lc 19,40). Nada nem
ninguém travará o entusiasmo pela vinda de Jesus. Como disse ao Presidente de
Portugal, a oliveira simboliza a paz. Ora a paz é dom que Jesus dá e deixa aos
discípulos e cuja construção constitui tarefa de todos. Mais: Ele próprio é a
Paz: “só Jesus nos salva das amarras do pecado, da morte, do medo e da tristeza”.
***
Mas
Francisco adverte que “o Senhor não nos salvou com uma entrada triunfal nem por
meio de milagres prestigiosos”. Atém-se ao resumo da economia da Salvação que o
apóstolo Paulo faz na sua carta aos Filipenses em torno de duas formas verbais:
“aniquilou-Se” e “humilhou-Se” a Si mesmo (Flp 2,7.8). Aniquilando-se
a Si mesmo, Jesus renunciou à glória de Filho de Deus e tornou-Se
Filho do homem, solidarizando-Se em tudo connosco. “Ele que é sem pecado”
fez-Se pecado por nós, pagou por nós, que somos os pecadores. Como diz o Papa,
“viveu entre nós numa condição de servo
(Fl 2,7), não de rei, nem de príncipe, mas de servo”. E, para
tal, “humilhou-Se”.
E é o abismo da sua humilhação – abismo que parece sem fundo – que a Semana Santa
nos apresenta.
Antes da
Paixão propriamente dita, depois da Ceia pascal com os discípulos, Jesus faz um
gesto simbólico do seu grande amor, sem limites – o lava-pés: “O Senhor e o
Mestre” (Jo13,14) abaixa-Se aos pés dos discípulos,
como os servos faziam, para nos ensinar que “temos necessidade de ser
alcançados pelo seu amor, que se inclina sobre nós” e que “não podemos amar” e
servir “sem antes nos deixarmos amar por Ele, sem experimentar a sua ternura
surpreendente e sem aceitar que o verdadeiro amor consiste no serviço concreto”,
afetivo e efetivo.
Porém, a
humilhação de Jesus torna-se extrema na Paixão: sofre a traição com a venda por
30 moedas de prata seguida do beijo hipócrita de um discípulo que escolhera e
tomara por amigo; sofre pela fuga e abandono dos restantes discípulos; sofre a
tríplice negação de Pedro; sofre as zombarias, insultos e escarros; sofre no
corpo violências atrozes como as cacetadas, a flagelação e a coroa de espinhos,
que O desfiguram e O tornam irreconhecível; sofre a infâmia e a iníqua
condenação das autoridades, religiosas e políticas, enfim, é feito
pecado e reconhecido injusto.
Pilatos
remete-O a Herodes, que O devolve ao governador romano. Sofre a negação de toda
a justiça; sente na própria pele a indiferença de ninguém querer assumir a
responsabilidade do seu destino. E é aqui que Francisco faz uma das referências
lancinantes às situações de hoje:
“Penso em tantas pessoas, tantos
marginalizados, tantos deslocados, tantos refugiados, de cujo destino muitos
não querem assumir a responsabilidade”.
E, voltando
à história da Paixão, recorda:
“A multidão, que pouco antes O aclamara, troca os louvores por um grito de
condenação, preferindo que, em vez d’Ele, seja libertado um assassino. Chega
assim à morte de cruz, a mais dolorosa e vergonhosa, reservada para os
traidores, os escravos e os piores criminosos.”
Mas o
Pontífice sublinha o abandono da parte do Pai, como tantos santos de ontem e de
hoje:
“A solidão, a difamação e o sofrimento não são ainda o ponto culminante do
seu despojamento. Para ser solidário connosco em tudo, na cruz experimenta
também o misterioso abandono do Pai”.
Porém, ao
contrário de muitos de nós, no abandono, “reza e entrega-Se: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”
(Lc 23,46).
E, como no
início da vida pública foi tentado (vd Lc 4,1-13), o Papa sublinha a tentação que sofre agora no alto
da cruz:
“Suspenso no patíbulo, além da zombaria, enfrenta ainda a última tentação:
a provocação para descer da cruz, vencer o mal com a força e mostrar o rosto
dum deus poderoso e invencível. Mas Jesus, precisamente aqui, no ápice da
aniquilação, revela o verdadeiro rosto de Deus, que é misericórdia. Perdoa aos seus algozes, abre as portas do paraíso ao
ladrão arrependido e toca o coração do centurião.”
Frente ao
mistério do mal, que a infinita realidade do Amor suplanta chegando ao sepulcro
e à morada dos mortos, o Senhor assumiu “todo o nosso sofrimento para o
redimir, levando luz às trevas, vida à morte, amor ao ódio”.
E,
contemplando o modo de agir de Deus para nossa salvação, plasmado no mistério
da Cruz e do seu Crucificado, o Papa Francisco aponta o crucifixo como “a cátedra de Deus”, que é preciso
visitar assiduamente para dela aprendermos a vocação e “o caminho do serviço,
da doação, do esquecimento de nós próprios”; para dela aprendermos “o amor
humilde, que salva e dá a vida”, renunciando “ao egoísmo, à busca do poder e da
fama”. E a partir desta cátedra que Deus nos ensina quem é Jesus, o verdadeiro
justo, em quem é preciso acreditar para entrar na Vida eterna.
***
Parece que é
este o caminho que Jesus, com o mistério da sua humilhação, nos convida a
percorrer e a ensinar: “Ide, pois, fazei discípulos em todas as nações” (Mt 28,19).
2016.03.20 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário