segunda-feira, 21 de março de 2016

Se eles se calarem, gritarão as pedras (Lc 19,40)



Esta é a frase sentenciosa proferida por Jesus face à tentativa dos fariseus de impedirem as crianças, os discípulos e a multidão de aclamarem o Senhor que entrava triunfalmente na sua Jerusalém, a cidade do grande Rei. É com o relato desta solene ovação a Jesus Mestre e Senhor, o Rei que vem em nome do Senhor, aquando da sua entrada em Jerusalém montando num jumentinho, que se inicia a Semana Santa. É o domingo de Ramos ou da Paixão.
É domingo de Ramos, porque à passagem do Senhor o povo estendia as suas capas no caminho para o Rei passar, as pessoas cortavam ramos de oliveira e de outras árvores e lançavam-nos no solo enquanto aclamavam o Senhor, clamando: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor, Paz no Céu e glória nas alturas” (Lc 19,38); “Hossana! Bendito O que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino que vem, o Reino do nosso pai David! Hossana nas alturas!” (Mc 11,9-10).
É domingo da Paixão, porque esta entrada solene, mas humilde, não de poder, mas de serviço, é prenúncio do supremo martírio do Gólgota. Esta apoteose é o encaminhamento para a morte voluntária de Jesus, a entrega amorosa pela salvação da humanidade – entrega cujo instrumento é a resolução sinedrita estranhamente homologada por Pôncio Pilatos. É assim que em Domingo de Ramos se proclama na Missa o relato da Paixão de Cristo segundo os evangélicos sinóticos (Mateus, no ano A; Marcos no ano B; e Lucas, no ano C), sendo Sexta-feira Santa o momento central da Paixão, pelo que se proclamará, nesse dia, o relato da Paixão de Cristo segundo João.
Porém, se este domingo de Ramos e da Paixão constitui a inauguração da caminhada para morte de Cristo, é consequentemente o rasgar dos Céus para o milagre da Ressurreição e para a descida do Espírito Paráclito como dom total de Deus ao Homem a corroborar a ação redentora do Filho de Deus em prol de cada um dos homens pecadores, que doravante se alimentam da Eucaristia, renovação incruenta do Sacrifício e Sacramento do amor divino e fraternal. 
Hoje, domingo da Paixão e 20 de março, a proclamação da Paixão (Lc 22,14 – 23,56) é precedida da leitura de Isaías (Is 50-4-7), a perícopa do Servo sofrente, que se oferece como vítima pelos irmãos; do canto meditado do Salmo 22 (21), o do aparente abandono do servo por Deus – que se lamenta: “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?” (M7,27,46; Mc 15,34) –, mas que há de proclamar o nome de Deus na assembleia para que todos O glorifiquem; e da leitura da carta de Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11), a da auto-humilhação do Filho de Deus. Porém, na sexta-feira, a Paixão do Redentor segundo o relato do discípulo predileto (Jo 18,1 – 19,42) culmina a Liturgia da Palavra, a preceder a oração universal, a que se segue a exaltação e adoração da Santa Cruz e a Sagrada Comunhão a partir da reserva eucarística de quinta-feira Santa. A proclamação da Paixão é antecedida da leitura da profecia de Isaías (Is 52,13 – 53,12), a perícopa do Servo que realiza o resgate do povo na humilhação e de cuja morte nascerá um novo Povo de Deus, a Igreja; do canto meditado do Salmo 32 (31) sob o mote, “Pai em Tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46), o canto da esperança no Senhor e apelo à coragem e animação de todos os que esperam em Deus; e da leitura da carta aos Hebreus (Hb 4,15-16.5,7-9), do Sumo Sacerdote que, pelo seu sacrifício até à morte, movido pela obediência e confiança, duma só vez, resgatou a humanidade e lhe restituiu a graça e a misericórdia, tornando-se causa da nossa salvação.
Da morte de Cristo na cruz evidencia-se o perdão de Deus, implorado pelo próprio Filho (cf Lc 23,34), a promessa do paraíso para os desapegados do pecado (cf Lc 23,42.43), a exaltação da inocência do Cordeiro de Deus (cf Jo 1,29) e o nascimento da Igreja do lado aberto e adormecido de Cristo (cf Jo 19,21-37), a qual assenta o seu discipulado na companhia de Maria (cf Jo 19,25-27), a mãe e o protótipo da Igreja (cf At 1,14; Ap 12,1-6.13-14).    
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Na sua homilia da celebração eucarística da Paixão, o Santo Padre recordou que só Jesus nos salva dos laços do pecado, da morte, do medo e da tristeza.
Apesar de partir de texto pré-escrito, Francisco improvisou algumas palavras para chamar a atenção sobre a situação dos migrantes e refugiados em cuja situação se espelha no hoje o drama da Paixão de Cristo nas vertentes de abandono, exploração das pessoas, tráfico de pessoas e órgãos, construção de muros, tortura, separação forçada das famílias, êxodo das suas terras, miséria e morte aos poucos e aos pedaços. São as consequências da guerra que gera destruição, penúria e morte – e tudo movido pela luta de interesses, frustração negocial e diplomática, indústria e comércio de armas e outros equipamentos militares.
Dizia o Papa que a multidão gritava em festa, “Bendito seja o que vem em nome do Senhor» (cf Lc 19,38). E reconheceu que os peregrinos que acorreram à Praça de São Pedro, sobretudo os jovens da 31.ª Jornada Mundial da Juventude, que terá o seu ápice em Cracóvia no próximo verão, fizeram seu aquele entusiasmo de há dois mil anos. Agitaram ramos de palmeira e de oliveira, exprimiram com o Papa o louvor, a alegria e o desejo de receber Jesus que vem a nós, que deseja entrar em nossas vidas, em nossas aldeias e cidades. Já não vem montado num jumentinho, mas vem até nós com a mesma humildade, vem “em nome do Senhor” com” a força do seu amor divino”, a perdoar “os nossos pecados” e a reconciliar-nos “com o Pai e com nós mesmos”. Também hoje fica contente com a manifestação de afeto da multidão quando novos fariseus O convidam a calar as crianças e os outros que o aclamam, sentenciando que “se eles se calarem, gritarão as pedras” (Lc 19,40). Nada nem ninguém travará o entusiasmo pela vinda de Jesus. Como disse ao Presidente de Portugal, a oliveira simboliza a paz. Ora a paz é dom que Jesus dá e deixa aos discípulos e cuja construção constitui tarefa de todos. Mais: Ele próprio é a Paz: “só Jesus nos salva das amarras do pecado, da morte, do medo e da tristeza”.
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Mas Francisco adverte que “o Senhor não nos salvou com uma entrada triunfal nem por meio de milagres prestigiosos”. Atém-se ao resumo da economia da Salvação que o apóstolo Paulo faz na sua carta aos Filipenses em torno de duas formas verbais: “aniquilou-Se” e “humilhou-Se” a Si mesmo (Flp 2,7.8). Aniquilando-se a Si mesmo, Jesus renunciou à glória de Filho de Deus e tornou-Se Filho do homem, solidarizando-Se em tudo connosco. “Ele que é sem pecado” fez-Se pecado por nós, pagou por nós, que somos os pecadores. Como diz o Papa, “viveu entre nós numa condição de servo (Fl 2,7), não de rei, nem de príncipe, mas de servo”. E, para tal, humilhou-Se”. E é o abismo da sua humilhação – abismo que parece sem fundo – que a Semana Santa nos apresenta.
Antes da Paixão propriamente dita, depois da Ceia pascal com os discípulos, Jesus faz um gesto simbólico do seu grande amor, sem limites – o lava-pés: “O Senhor e o Mestre” (Jo13,14) abaixa-Se aos pés dos discípulos, como os servos faziam, para nos ensinar que “temos necessidade de ser alcançados pelo seu amor, que se inclina sobre nós” e que “não podemos amar” e servir “sem antes nos deixarmos amar por Ele, sem experimentar a sua ternura surpreendente e sem aceitar que o verdadeiro amor consiste no serviço concreto”, afetivo e efetivo.
Porém, a humilhação de Jesus torna-se extrema na Paixão: sofre a traição com a venda por 30 moedas de prata seguida do beijo hipócrita de um discípulo que escolhera e tomara por amigo; sofre pela fuga e abandono dos restantes discípulos; sofre a tríplice negação de Pedro; sofre as zombarias, insultos e escarros; sofre no corpo violências atrozes como as cacetadas, a flagelação e a coroa de espinhos, que O desfiguram e O tornam irreconhecível; sofre a infâmia e a iníqua condenação das autoridades, religiosas e políticas, enfim, é feito pecado e reconhecido injusto.
Pilatos remete-O a Herodes, que O devolve ao governador romano. Sofre a negação de toda a justiça; sente na própria pele a indiferença de ninguém querer assumir a responsabilidade do seu destino. E é aqui que Francisco faz uma das referências lancinantes às situações de hoje:
“Penso em tantas pessoas, tantos marginalizados, tantos deslocados, tantos refugiados, de cujo destino muitos não querem assumir a responsabilidade”.
E, voltando à história da Paixão, recorda:
“A multidão, que pouco antes O aclamara, troca os louvores por um grito de condenação, preferindo que, em vez d’Ele, seja libertado um assassino. Chega assim à morte de cruz, a mais dolorosa e vergonhosa, reservada para os traidores, os escravos e os piores criminosos.”
Mas o Pontífice sublinha o abandono da parte do Pai, como tantos santos de ontem e de hoje:
“A solidão, a difamação e o sofrimento não são ainda o ponto culminante do seu despojamento. Para ser solidário connosco em tudo, na cruz experimenta também o misterioso abandono do Pai”.
Porém, ao contrário de muitos de nós, no abandono, “reza e entrega-Se: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
E, como no início da vida pública foi tentado (vd Lc 4,1-13), o Papa sublinha a tentação que sofre agora no alto da cruz:
“Suspenso no patíbulo, além da zombaria, enfrenta ainda a última tentação: a provocação para descer da cruz, vencer o mal com a força e mostrar o rosto dum deus poderoso e invencível. Mas Jesus, precisamente aqui, no ápice da aniquilação, revela o verdadeiro rosto de Deus, que é misericórdia. Perdoa aos seus algozes, abre as portas do paraíso ao ladrão arrependido e toca o coração do centurião.”
Frente ao mistério do mal, que a infinita realidade do Amor suplanta chegando ao sepulcro e à morada dos mortos, o Senhor assumiu “todo o nosso sofrimento para o redimir, levando luz às trevas, vida à morte, amor ao ódio”.
E, contemplando o modo de agir de Deus para nossa salvação, plasmado no mistério da Cruz e do seu Crucificado, o Papa Francisco aponta o crucifixo como “a cátedra de Deus”, que é preciso visitar assiduamente para dela aprendermos a vocação e “o caminho do serviço, da doação, do esquecimento de nós próprios”; para dela aprendermos “o amor humilde, que salva e dá a vida”, renunciando “ao egoísmo, à busca do poder e da fama”. E a partir desta cátedra que Deus nos ensina quem é Jesus, o verdadeiro justo, em quem é preciso acreditar para entrar na Vida eterna.
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Parece que é este o caminho que Jesus, com o mistério da sua humilhação, nos convida a percorrer e a ensinar: “Ide, pois, fazei discípulos em todas as nações” (Mt 28,19).

2016.03.20 – Louro de Carvalho

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