O
discurso do PAR (Presidente
da Assembleia da República),
Eduardo Ferro Rodrigues, na cerimónia da tomada de posse do Presidente da
República (PR),
merece atenção semelhante à do novel empossado. Para tanto, nada interessa anotar
se o PAR é ou não, como o Presidente Marcelo, “à época deputado constituinte e
um já reputado jurista”. Interessa, antes olhar o desempenho do cargo, que se
mede também pelo conteúdo e forma dos seus discursos.
O
ilustre PAR assumiu “a cerimónia de posse do Presidente da República perante a
Assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”, a 9 de março, como
“um imperativo constitucional” (vd CRP, art.º 127.º e art.º 163.º,
alínea a) e com “uma já longa tradição
parlamentar”. Com efeito, este ato solene, que se cumpre desde 1976 (há
40 anos), tem-se
realizado a 9 de março já desde 1986 (há 30 anos). Por outro lado, se a CRP (Constituição da República
Portuguesa) é o
elemento fundacional da democracia representativa, sem esquecer a componente
popular (vd
CRP, art.os 167.º; e 263.º a 265.º), o ato de posse do PR, é “o momento fundador da
Presidência de quem representa a República, garante a independência, a unidade
do Estado, o regular funcionamento das instituições democráticas e, por
inerência, tem o supremo comando das Forças Armadas”, como bem observou o PAR.
E,
se os sucessos do novel inquilino de Belém são “os nossos sucessos”, eles
inscrevem-se no processo de eleições marcadas pelo “civismo democrático” e “pela
forma clara” de que se revestiu o resultado eleitoral, cujo desígnio ora se
cumpre. Mas inserem-se, de modo similar, na onda de “coragem cívica” de
engrandecimento da “democracia portuguesa”, que pautou a postura dos demais
candidatos presentes na cerimónia, bem como na do desempenho dos seus
antecessores que se afirmaram, no estilo peculiar de cada um, como “o
presidente de todos os portugueses” comandado pelo espírito de “serviço
público”.
***
A
seguir, Ferro Rodrigues evocou o 40.º aniversário da Constituição da República
Portuguesa, o facto de ter sido elaborada com “a participação ativa do novo
Presidente da República” e a presença de Ramalho Eanes, “precisamente o
primeiro Presidente eleito na sequência da aprovação da Constituição de 1976”.
Frisando
que, “em 2016 também comemoramos os 40 anos das primeiras eleições diretas
verdadeiramente democráticas em Portugal”, parece ter esquecido – não sei
porquê – o caráter verdadeiramente democrático e entusiasmante que emoldurou as
eleições para a Assembleia Constituinte, cujo 41.º aniversário se vai
comemorar, das quais resultou a CRP, e que, tal como as legislativas, também
foram a 25 de abril (umas em 1975; outras em 1976).
Asseverou
que a Constituição, apesar das várias revisões, “continua a conferir
importantes poderes ao Presidente da República” e que “aos poderes formais”, conhecidos
de todos, “a legitimidade do voto popular acrescenta-lhe poderes informais não
menos importantes: o poder da palavra e o poder da influência”. A este
respeito, lembrou as palavras de Almeida Santos, “há 20 anos”, na posse do
Presidente Sampaio, que enalteciam a forma inteligente como o Presidente Soares
soube fazer “largo uso de importantes poderes implícitos” do PR. E considerou “as
primeiras palavras e os primeiros gestos” de Rebelo de Sousa como “um bom
prenúncio”. Efetivamente, “um Presidente da República sintonizado com o País
pode tornar-se no promotor das convergências estratégicas de que Portugal tanto
necessita”. Sabendo “comunicar com o País”, saberá “comunicar com todos os
órgãos de soberania, com todos os partidos políticos e com todos os parceiros
sociais”.
A
quem, “ainda em campanha eleitoral”, se propôs “contribuir para sarar as
feridas políticas que se somaram às feridas sociais e económicas do período de
ajustamento” reconhece “agora a responsabilidade histórica de ser o homem certo
no momento certo”, que é também “uma enorme oportunidade”:
“A
oportunidade de contribuir para a resposta nacional aos desafios estratégicos
que o ambiente europeu e internacional nos coloca enquanto comunidade; a
oportunidade de contribuir para a resposta nacional aos problemas estruturais
que enfrentamos e que não desapareceram nem se resolvem no tempo de uma
legislatura”.
Depois,
recordou os sérios desafios com que está confrontado o mundo em que nos
inserimos:
O “aquecimento global” e o “envelhecimento
demográfico”, a “crise dos refugiados e das migrações”, da liberdade de
circulação e da igualdade de direitos, da sustentabilidade das dívidas e da
arquitetura da zona euro, do terrorismo global e das ameaças à segurança nas
fronteiras europeias”.
Afirmando
que “o País precisa de se voltar a reencontrar” e reconhecendo que, “em
democracia são normais e desejáveis as divergências ideológicas e as políticas
alternativas”, alertou para a necessidade de nos unimos naquilo que é
“estratégico”. Assim:
“Temos
de enfrentar, com coesão social, os desafios estratégicos que bloqueiam o nosso
crescimento coletivo”: “a aposta na qualificação e na educação”; a “política de
investimentos”; e a “de apoio à inovação e à iniciativa, da sustentabilidade
dos sistemas de saúde e segurança social, dos incentivos à natalidade e à
renovação demográfica, do respeito pelo mundo do trabalho, ou da necessidade de
nos concertarmos de novo acerca da Europa”.
É
certo que Portugal beneficiou do facto de a Europa ter sido, “durante muitos
anos, um fator de estabilidade política e de consolidação democrática”. Todavia,
cabe-nos não permitir partir de hoje “que
a União Europeia se transforme num fator de instabilidade política e num motor
de fragilização democrática”, levando já às seguintes interrogações:
“Que
Europa é esta tão flexível” no essencial e tão rígida no secundário? “Que
Europa é esta, rigorosa como lhe compete quanto ao cumprimento das regras
orçamentais, mas tão complacente quando, por exemplo, estão em causa princípios
fundamentais como a liberdade de imprensa, o direito de asilo, a livre circulação
de trabalhadores ou a não discriminação em função da nacionalidade?”
***
Sobre
a relação dos órgãos de soberania derivados da eleição popular, referiu que PR,
Parlamento e Governo “deverão unir-se estrategicamente na luta por uma Europa
de valores, de convergências e de coesão”. E o PR “certo no momento certo” será
“um Presidente que se enquadra, com autonomia e afirmação, num novo ciclo da
vida política democrática”, sendo que a relação entre o Governo e a Assembleia “não
dispensa o papel do Presidente”. Porém, a ação deste “não se resume à
cooperação com estes órgãos de soberania, mas também não se consolida sem ela”.
Pelo que do Presidente “esperamos visão estratégica e independência na ação”,
segundo as palavras do 1.º Presidente da I República, Manuel de Arriaga:
“O Presidente da República tem de pairar sobre tudo, intangível às
paixões partidárias, aos interesses das clientelas políticas; tem de ter uma só
aspiração: o bem do País”.
E,
preconizando a “lealdade institucional”, a “adesão sem reservas aos valores
democráticos” e o “diálogo estratégico” da parte dos diversos órgãos, deu como
nota que “o próximo Presidente vai chefiar o Estado Português a caminho dos 50
anos do 25 de abril” e, por outro lado, declarou que os próximos 5 anos
constituirão “uma caminhada coletiva” marcada por “uma economia mais rica e
partilhada e por uma sociedade mais justa e inclusiva, com mais e melhor
emprego”. Para isso – assegura – “temos de reaprender a remar estrategicamente
para o mesmo lado”.
Recordou
que, há cem anos, a 9 de março, Portugal entrou na I Guerra Mundial, “em que
muitos portugueses se bateram e morreram na Europa e em África”. Ora, “o que
nos junta aqui hoje” é o que nos juntava então: “o sentido de Pátria e o
serviço a Portugal”, convergindo no essencial no “programa de desenvolvimento
democrático da Constituição da República Portuguesa”.
***
O sentido
de quanto Ferro Rodrigues afirma no discurso perpassa a CRP, quer no texto
original, quer nos textos das sucessivas revisões, incluindo obviamente o texto
atualmente em vigor. No entanto, pergunto-me porque é que o PR faz o seu
juramento constitucional sobre o exemplar do texto original (o de 1976), de capa vermelha e dactilografado, depositado na
Assembleia da República, quando o que está em vigor é o de 2005 e, nos termos
do art.º 286.º:
“1. As alterações da
Constituição serão inseridas no lugar próprio, mediante as substituições, as supressões
e os aditamentos necessários. 2. A
Constituição, no seu novo texto, será publicada conjuntamente com a lei de
revisão.”
É certo
que institucionalmente há dois elementos fundamentais a ter em conta: o
simbólico e o formal. Do ponto de vista simbólico, parece que se impõe o
juramento sobre o texto de 1976. Porém, o formalismo parece postular o
compromisso presidencial sobre o texto da Lei Fundamental em vigor, porque
muito mais próximo do conteúdo material. Ademais, o dado simbólico bem pode ser
evocado e celebrado com a presença de todos os quadrantes políticos e dos
representantes dos diversos órgãos e estruturas da sociedade, bem como pela
menção explícita e formal, pelo PAR, da data fundante da democracia (a evolução abrilina) e do documento fundante
da democracia representativa (a CRP, de
1976).
Ora o
Presidente diz, nos termos do n.º 3 do artigo 127.º da CRP:
“Juro por minha honra desempenhar fielmente as
funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição
da República Portuguesa”.
Mas, no
texto de 1976, o estipulado para a posse e juramento vinha enquadrado pelo
art.º 130.º e previa que o PR, no caso de a Assembleia se encontrar
dissolvida, tomaria posse perante o Supremo Tribunal de Justiça, quando hoje,
pela leitura de outras disposições constitucionais, se deduz que seria perante
a Comissão Permanente da Assembleia
da República.
Além disso, a lealdade
institucional e a cooperação com os demais órgãos impõem que o PR se guie pelo
atual texto, onde não figura o conselho de Revolução e Comissão Constitucional,
mas o Conselho de Estado e o Tribunal Constitucional; onde o desígnio do socialismo e da sociedade sem classes é substituído pela “construção de uma
sociedade livre, justa e solidária” (vd art.º 1.º) e “a realização da democracia
económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa (vd
art.º 2.º). Ora isto
gera consequências diferentes das opções político-constitucionais diferentes
das de 1976, tanto a nível programático como a nível da postura.
Como é óbvio, só o Presidente
Eanes teve de se comprometer com o texto de 2 de abril de 1976, mas foi
obrigado ao cumprimento da LC n.º 1/82, de 30 de setembro. Os outros, numa
linha de coerência política deveriam jurar a CRP em vigor no ato da posse. Como
diz o povo, assim não bate o martelo com o cravo.
***
Por
fim, a Constituição, logo desde 1976, não ostenta o modificador restritivo de
“Política”, mas da “República Portuguesa” (mais global) em demarcação da de 1933 e pela relevância dos
títulos referentes a aspetos cívicos e económicos, ainda antes da organização
do poder político.
2016.03.14 – Louro de Carvalho
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