segunda-feira, 14 de março de 2016

A Constituição da República que o Presidente jura defender

O discurso do PAR (Presidente da Assembleia da República), Eduardo Ferro Rodrigues, na cerimónia da tomada de posse do Presidente da República (PR), merece atenção semelhante à do novel empossado. Para tanto, nada interessa anotar se o PAR é ou não, como o Presidente Marcelo, “à época deputado constituinte e um já reputado jurista”. Interessa, antes olhar o desempenho do cargo, que se mede também pelo conteúdo e forma dos seus discursos.
O ilustre PAR assumiu “a cerimónia de posse do Presidente da República perante a Assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”, a 9 de março, como “um imperativo constitucional” (vd CRP, art.º 127.º e art.º 163.º, alínea a) e com “uma já longa tradição parlamentar”. Com efeito, este ato solene, que se cumpre desde 1976 (há 40 anos), tem-se realizado a 9 de março já desde 1986 (há 30 anos). Por outro lado, se a CRP (Constituição da República Portuguesa) é o elemento fundacional da democracia representativa, sem esquecer a componente popular (vd CRP, art.os 167.º; e 263.º a 265.º), o ato de posse do PR, é “o momento fundador da Presidência de quem representa a República, garante a independência, a unidade do Estado, o regular funcionamento das instituições democráticas e, por inerência, tem o supremo comando das Forças Armadas”, como bem observou o PAR.
E, se os sucessos do novel inquilino de Belém são “os nossos sucessos”, eles inscrevem-se no processo de eleições marcadas pelo “civismo democrático” e “pela forma clara” de que se revestiu o resultado eleitoral, cujo desígnio ora se cumpre. Mas inserem-se, de modo similar, na onda de “coragem cívica” de engrandecimento da “democracia portuguesa”, que pautou a postura dos demais candidatos presentes na cerimónia, bem como na do desempenho dos seus antecessores que se afirmaram, no estilo peculiar de cada um, como “o presidente de todos os portugueses” comandado pelo espírito de “serviço público”.
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A seguir, Ferro Rodrigues evocou o 40.º aniversário da Constituição da República Portuguesa, o facto de ter sido elaborada com “a participação ativa do novo Presidente da República” e a presença de Ramalho Eanes, “precisamente o primeiro Presidente eleito na sequência da aprovação da Constituição de 1976”.
Frisando que, “em 2016 também comemoramos os 40 anos das primeiras eleições diretas verdadeiramente democráticas em Portugal”, parece ter esquecido – não sei porquê – o caráter verdadeiramente democrático e entusiasmante que emoldurou as eleições para a Assembleia Constituinte, cujo 41.º aniversário se vai comemorar, das quais resultou a CRP, e que, tal como as legislativas, também foram a 25 de abril (umas em 1975; outras em 1976).
Asseverou que a Constituição, apesar das várias revisões, “continua a conferir importantes poderes ao Presidente da República” e que “aos poderes formais”, conhecidos de todos, “a legitimidade do voto popular acrescenta-lhe poderes informais não menos importantes: o poder da palavra e o poder da influência”. A este respeito, lembrou as palavras de Almeida Santos, “há 20 anos”, na posse do Presidente Sampaio, que enalteciam a forma inteligente como o Presidente Soares soube fazer “largo uso de importantes poderes implícitos” do PR. E considerou “as primeiras palavras e os primeiros gestos” de Rebelo de Sousa como “um bom prenúncio”. Efetivamente, “um Presidente da República sintonizado com o País pode tornar-se no promotor das convergências estratégicas de que Portugal tanto necessita”. Sabendo “comunicar com o País”, saberá “comunicar com todos os órgãos de soberania, com todos os partidos políticos e com todos os parceiros sociais”.
A quem, “ainda em campanha eleitoral”, se propôs “contribuir para sarar as feridas políticas que se somaram às feridas sociais e económicas do período de ajustamento” reconhece “agora a responsabilidade histórica de ser o homem certo no momento certo”, que é também “uma enorme oportunidade”:
“A oportunidade de contribuir para a resposta nacional aos desafios estratégicos que o ambiente europeu e internacional nos coloca enquanto comunidade; a oportunidade de contribuir para a resposta nacional aos problemas estruturais que enfrentamos e que não desapareceram nem se resolvem no tempo de uma legislatura”.
Depois, recordou os sérios desafios com que está confrontado o mundo em que nos inserimos:
O “aquecimento global” e o “envelhecimento demográfico”, a “crise dos refugiados e das migrações”, da liberdade de circulação e da igualdade de direitos, da sustentabilidade das dívidas e da arquitetura da zona euro, do terrorismo global e das ameaças à segurança nas fronteiras europeias”.
Afirmando que “o País precisa de se voltar a reencontrar” e reconhecendo que, “em democracia são normais e desejáveis as divergências ideológicas e as políticas alternativas”, alertou para a necessidade de nos unimos naquilo que é “estratégico”. Assim:
“Temos de enfrentar, com coesão social, os desafios estratégicos que bloqueiam o nosso crescimento coletivo”: “a aposta na qualificação e na educação”; a “política de investimentos”; e a “de apoio à inovação e à iniciativa, da sustentabilidade dos sistemas de saúde e segurança social, dos incentivos à natalidade e à renovação demográfica, do respeito pelo mundo do trabalho, ou da necessidade de nos concertarmos de novo acerca da Europa”.
É certo que Portugal beneficiou do facto de a Europa ter sido, “durante muitos anos, um fator de estabilidade política e de consolidação democrática”. Todavia, cabe-nos não permitir  partir de hoje “que a União Europeia se transforme num fator de instabilidade política e num motor de fragilização democrática”, levando já às seguintes interrogações:
“Que Europa é esta tão flexível” no essencial e tão rígida no secundário? “Que Europa é esta, rigorosa como lhe compete quanto ao cumprimento das regras orçamentais, mas tão complacente quando, por exemplo, estão em causa princípios fundamentais como a liberdade de imprensa, o direito de asilo, a livre circulação de trabalhadores ou a não discriminação em função da nacionalidade?”
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Sobre a relação dos órgãos de soberania derivados da eleição popular, referiu que PR, Parlamento e Governo “deverão unir-se estrategicamente na luta por uma Europa de valores, de convergências e de coesão”. E o PR “certo no momento certo” será “um Presidente que se enquadra, com autonomia e afirmação, num novo ciclo da vida política democrática”, sendo que a relação entre o Governo e a Assembleia “não dispensa o papel do Presidente”. Porém, a ação deste “não se resume à cooperação com estes órgãos de soberania, mas também não se consolida sem ela”. Pelo que do Presidente “esperamos visão estratégica e independência na ação”, segundo as palavras do 1.º Presidente da I República, Manuel de Arriaga:
O Presidente da República tem de pairar sobre tudo, intangível às paixões partidárias, aos interesses das clientelas políticas; tem de ter uma só aspiração: o bem do País”.
E, preconizando a “lealdade institucional”, a “adesão sem reservas aos valores democráticos” e o “diálogo estratégico” da parte dos diversos órgãos, deu como nota que “o próximo Presidente vai chefiar o Estado Português a caminho dos 50 anos do 25 de abril” e, por outro lado, declarou que os próximos 5 anos constituirão “uma caminhada coletiva” marcada por “uma economia mais rica e partilhada e por uma sociedade mais justa e inclusiva, com mais e melhor emprego”. Para isso – assegura – “temos de reaprender a remar estrategicamente para o mesmo lado”.
Recordou que, há cem anos, a 9 de março, Portugal entrou na I Guerra Mundial, “em que muitos portugueses se bateram e morreram na Europa e em África”. Ora, “o que nos junta aqui hoje” é o que nos juntava então: “o sentido de Pátria e o serviço a Portugal”, convergindo no essencial no “programa de desenvolvimento democrático da Constituição da República Portuguesa”.
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O sentido de quanto Ferro Rodrigues afirma no discurso perpassa a CRP, quer no texto original, quer nos textos das sucessivas revisões, incluindo obviamente o texto atualmente em vigor. No entanto, pergunto-me porque é que o PR faz o seu juramento constitucional sobre o exemplar do texto original (o de 1976), de capa vermelha e dactilografado, depositado na Assembleia da República, quando o que está em vigor é o de 2005 e, nos termos do art.º 286.º:
“1. As alterações da Constituição serão inseridas no lugar próprio, mediante as substituições, as supressões e os aditamentos necessários. 2. A Constituição, no seu novo texto, será publicada conjuntamente com a lei de revisão.”
É certo que institucionalmente há dois elementos fundamentais a ter em conta: o simbólico e o formal. Do ponto de vista simbólico, parece que se impõe o juramento sobre o texto de 1976. Porém, o formalismo parece postular o compromisso presidencial sobre o texto da Lei Fundamental em vigor, porque muito mais próximo do conteúdo material. Ademais, o dado simbólico bem pode ser evocado e celebrado com a presença de todos os quadrantes políticos e dos representantes dos diversos órgãos e estruturas da sociedade, bem como pela menção explícita e formal, pelo PAR, da data fundante da democracia (a evolução abrilina) e do documento fundante da democracia representativa (a CRP, de 1976).  
Ora o Presidente diz, nos termos do n.º 3 do artigo 127.º da CRP:  
Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”.
Mas, no texto de 1976, o estipulado para a posse e juramento vinha enquadrado pelo art.º 130.º e previa que o PR, no caso de a Assembleia se encontrar dissolvida, tomaria posse perante o Supremo Tribunal de Justiça, quando hoje, pela leitura de outras disposições constitucionais, se deduz que seria perante a Comissão Permanente da Assembleia da República.
Além disso, a lealdade institucional e a cooperação com os demais órgãos impõem que o PR se guie pelo atual texto, onde não figura o conselho de Revolução e Comissão Constitucional, mas o Conselho de Estado e o Tribunal Constitucional; onde o desígnio do socialismo e da sociedade sem classes é substituído pela “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (vd art.º 1.º) e “a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa (vd art.º 2.º). Ora isto gera consequências diferentes das opções político-constitucionais diferentes das de 1976, tanto a nível programático como a nível da postura.
Como é óbvio, só o Presidente Eanes teve de se comprometer com o texto de 2 de abril de 1976, mas foi obrigado ao cumprimento da LC n.º 1/82, de 30 de setembro. Os outros, numa linha de coerência política deveriam jurar a CRP em vigor no ato da posse. Como diz o povo, assim não bate o martelo com o cravo.
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Por fim, a Constituição, logo desde 1976, não ostenta o modificador restritivo de “Política”, mas da “República Portuguesa” (mais global) em demarcação da de 1933 e pela relevância dos títulos referentes a aspetos cívicos e económicos, ainda antes da organização do poder político.    

2016.03.14 – Louro de Carvalho

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