sábado, 19 de março de 2016

O beijo de Marcelo ao Papa

Como todos os observadores anotaram, a primeira viagem oficial do novel Presidente da República foi à Santa Sé, tendo-se avistado com o Papa Francisco, com quem entabulou conversa privada durante uns 30 minutos sobre a situação portuguesa e os problemas que afligem o mundo. Encontrou-se também com o cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin e com o Secretário para as Relações com os Estados Monsenhor Paul Richard Gallagher.
Marcelo Rebelo de Sousa recebeu como presentes do Papa a sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, um documento programático do pontificado, e a encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado com o planeta, uma responsabilidade de todos, bem como um medalhão do seu pontificado, que tem dois ramos de oliveira entrelaçados (a oliveira é símbolo da paz e compete aos políticos construir a paz – terá dito o Papa).
Por sua vez, o Presidente deixou a Sua Santidade dois tipos de presentes: um de Estado, constituído por seis casulas de paramento litúrgico, desenhadas pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira (de cores branca, vermelha, verde, roxa, azul e cor-de-rosa – para a celebração da missa em conformidade com os diversos contextos litúrgicos de celebração); e um de cunho pessoal, um registo de Santo António de Lisboa, da coleção de Marcelo.
Como é óbvio, o Chefe de Estado Português posou para fotografia oficial com o Chefe de Estado da Santa Sé ou da cidade do Vaticano.
Porém, o que alguns criticam em Marcelo foi o ter beijado o anel papal – gesto que merece alguma análise a contrapor àquela que os mais críticos fizeram já.
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Dou de barato o comentário da rubrica “Gente”, do último número do Expresso, que raciocina:
“Ou o Presidente da República se deixou levar pela emoção ou não aprendeu bem as regras do beija-mão ao Papa. É que, em vez de se curvar bem para beijar o anel de Francisco, Marcelo levantou a mão do Papa como faz às senhoras.”
Se Marcelo, para beijar a mão de senhoras, lhes levanta a mão, não faz bem; deve curvar-se ao nível da mão quando a senhora lha estende e não ser ele a levantar-lhe a mão. Porém, o redator do Expresso também parece não saber a regra do beija-anel do Papa ou dum bispo. Em bom rigor, o que saúda o Papa deve fletir o joelho direito até ao solo, tomar a mão do Papa com a mão direita e beijar-lhe o anel ao nível da mão quando o Pontífice lha estende, sem lha prender com a sua mão esquerda. Isto, nos tempos atuais, que antigamente era preciso ajoelhar com dos dois joelhos por três vezes durante a aproximação ao Romano Pontífice e beijar-lhe os pés (ritual definitivamente abolido pelo Papa Pio XII).
Sobre a obrigação ou não de beijar o anel ao Papa, é óbvio que Marcelo não tinha essa obrigação. Por outro lado, também a crítica que a AAP (Associação Ateísta Portuguesa) faz do beija-mão de Marcelo ao Papa Francisco me parece descabida, não pela crítica em si, mas pelas razões que a suportam. O beijo na mão papal não tem que agradar aos ateus nem que os irritar.
Dou de barato o chiste brejeiro de quem diga que Marcelo tinha de beijar o anel para rimar. O nome do Presidente é Marcelo e em italiano anel diz-se anello.
Mas vejamos o que aduz a AAT, segundo JN de hoje, dia 19 de março. Classifica esse gesto como “um ato de subserviência”. Carlos Esperança, presidente da associação diz, a este respeito, que “o católico Marcelo Rebelo de Sousa pode beijar a mão de quem quiser, mas o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não pode”.
Não é possível distinguir assim as coisas. O Presidente Marcelo não deixa de ser o cidadão e, pelos vistos, o católico. Nem o cidadão e católico Marcelo deixa de ser o Presidente, pelo menos durante os próximos cinco anos.
Depois, não creio que “o presidente de todos os portugueses” tivesse na ideia qualquer laivo de subserviência do Estado Português ao Vaticano nem entenda que Portugal sirva de protetorado do Vaticano ou se preste a sacristão pontifício.
É certo que a associação ateísta tem o direito de apresentar um protesto formal em Belém, como diz estar a ponderar. Apesar de tudo, eu preferiria que não se perdesse tempo com este género de protestos.
Por outro lado, argumentar com a aconfessionalidade do Estado ou com a índole laica da República parece-me excessivo. A laicidade da República configura o reforço da componente popular do Estado, componente inclusiva de todos como são ou querem ser. E é por isso que o Estado se quer aconfessional, não professando oficialmente uma religião. Daqui não se pode concluir que não deva admitir a liberdade de religiões ao nível do pensamento, da expressão e do culto (a nível privado e público) e mesmo o diálogo e colaboração de e com as religiões existentes. Dificilmente se encontrará uma Constituição tão aconfessional e mesmo laica como a americana. Não obstante, os presidentes americanos não têm qualquer pejo em se apresentarem com a sua religião e recorrentemente, mesmo em cerimónias oficiais, lá vem o voto, “Deus abençoe a América”.
Em Portugal, mesmo em tempos mais difíceis, ninguém teve a veleidade de hostilizar Maria de Lourdes Pintasilgo como Primeira-Ministra (1979) por se identificar publicamente como católica nem Freitas do Amaral por ter beijado o anel ao Papa João Paulo II quando este chegou a Portugal em 12 de maio de 1982. Ou será que a reverência ao Papa Francisco incomoda mais os ateus portugueses que a anterior reverência ao Papa polaco? Será o argentino mais perigoso para a eficiente desmontagem do indiferentismo?
Ora bem. Devo afirmar a minha convicção de que não se deve castrar qualquer candidato antes da eleição presidencial (e depois também não) nem do ponto de vista político nem religioso nem filosófico. Nem sempre apoiei o perfil de Marcelo, mas deixá-lo ser católico! Não gostei de que Soares tivesse depositado o cartão socialista nas mãos do partido, mas apreciei o facto de não ter renunciado ao seu agnosticismo confesso (Será que teria de o calar ou reforçar em nome da laicidade constitucional?). Não gostei de que Sampaio se tivesse proclamado ateu no período eleitoral, mas apreciei o não ter abdicado do cartão socialista. Já Cavaco Silva não renunciou a nada, não proclamou nada e, afirmando-se acima de tudo e de todos, acabou por ficar colado à sua família política sem agrado entusiasta da mesma. Marcelo parece-me ter tentado o princípio sensato, “Em Roma, sê romano”, mas ter-se-á excedido.
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Porém, eu também não acho justo que Marcelo tenha beijado o anel a Sua Santidade. Não contrario o princípio, “Em Roma, sê romano”, não invoco a subserviência do Estado ao Vaticano, não desprezo o facto de a Santa Sé ter sido a primeira entidade a reconhecer a independência do Reino (eram outros tempos…) e não invoco a laicidade da República ou a aconfessionalidade do Estado. Mas há um princípio fundamental: os Estados relacionam-se em pé de igualdade e é neste estatuto que dialogam e cooperam. Depois, o diálogo entre Estados não desnuda os seus representantes das roupagens pessoais. No entanto, estas submetem-se à supremacia, mesmo que meramente simbólica, do Estado.
Marcelo beijou. Não o devia ter feito, só porque representa o Estado Português e, como tal, tem responsabilidades internacionais, que deve gerir em pé de igualdade.
Não obstante, fez bem em juntar aos presentes oficiais o seu presente pessoal. Não faria sentido uma visita oficial para as dádivas oficiais e outra de caráter pessoal para as dádivas pessoais.
Finalmente, deixo uma advertência contra a hipocrisia de tantos. Consideram um ato de subserviência o beijo do anel papal. Mas não reagem àqueles cumprimentos de igualdade – beijos, abraços e pancadas nas costas – na UE e no Euro, enquanto deixam que o diretório financeiro, politicamente representado pela Alemanha, nomeadamente o seu Ministro das Finanças, e outros Estados ricos, esmague os países periféricos e dite deliberadamente normas – e vigie apertadamente a sua observância – que pretendem reduzir à miséria os países pobres da mesma UNIÃO EUROPEIA tão solidária nas palavras, mas criadora, na prática, de tão aviltantes solitariíssimas situações económicas e de luta por vida digna.
Onde estão os protestos?

2016.03.19 – Louro de Carvalho  

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