Na
sua homilia da celebração eucarística matinal do passado dia 15 de março, em
Santa Marta, o Papa Francisco abordou a teologia do crucifixo, começando por
advertir que, se nós queremos conhecer “a história de amor” que Deus tem connosco,
é necessário olhar o Crucifixo, sobre
o qual está um Deus que se autoesvaziou da divindade” e se “sujou” de pecado
para salvar os homens. A
Cruz é o instrumento, é o locativo
pelo qual o Deus encarnado, conhecedor das nossas ínfimas misérias e profundos
anseios, consuma a obra da nossa redenção. E é à sombra da árvore-cruz, florida
em ressurreição primaveril, que assenta a missão evangelizadora até aos confins
do mundo. Assim, o Santo Padre advertiu:
“O
Crucifixo não é um ornamento, não é uma obra de arte, com tantas pedras
preciosas, como se vê por aí: o Crucifixo é o Mistério do ‘aniquilamento’ de
Deus, por amor”.
***
É
óbvio que o Papa tem razão. Em abono da razão papal e para a explicitar,
apraz-me proceder a uma digressão em torno das palavras “crucifixo” e “cruz” e
correspondentes gregas e latinas.
Crucifixo é uma palavra (nome) do vocabulário português que
remonta ao composto latino de crux,
crucis com o particípio passado fixus,
do verbo figere (pregar,
cravar, espetar, suspender)
– devendo significar “pregado na cruz”, “agarrado à cruz” ou “suspenso na
cruz”.
Nestes
termos, deveríamos distinguir entre cruz,
Cristo e crucifixo. Cruz é a
figura constituída por duas hastes ou traços que se atravessam um sobre o outro
formando 4 ângulos (usualmente ângulos retos) ou o instrumento com esse
formato em que se procede à crucifixão; Cristo
é o homem-Deus ou a sua imagem independentemente de ser ou não crucificado; e crucifixo deveria ser o (homem) crucificado ou cravado na cruz.
Entretanto, por sinédoque e restrição semântica, os dicionários referem o nome crucifixo como a imagem ou a representação
de Cristo na cruz. E a liturgia de sexta-feira santa apresenta o “madeiro da
cruz no qual esteve suspensa a Salvação do Mundo” (antonomásia
por Salvador).
No
cristianismo dos primeiros séculos, embora o Cristo crucificado integrasse o
núcleo do Kérigma da Boa Nova, a cruz não era o identificador do cristão, mas o
peixe (ἸΧΘΫΣ), por em grego a palavra ser
constituída por letras iniciais da expressão “Jesus Cristo filho de Deus
salvador”. É a partir do édito de Milão (ano de 313) que os cristãos, podendo
declarar-se publicamente como tal, passam a usar a cruz como emblema seu, com o
aval de Constantino a quem terá aparecido no céu junto do Pons Milvius a cruz com a
legenda “In hoc signo vinces”.
Como
em tudo, a generalização vulgariza e até desvirtua. Assim, a arte, que eleva a
dimensão estética do homem, quando atinge a joalharia e a ourivesaria, passa a
valer sobretudo como objeto de adorno, não sendo de estranhar que apareçam
cruzes com Cristo ou cruzes sem Cristo e até já vi Cristo (em
formato de crucificado)
sem a cruz e até suspenso da parede.
Do
ponto de vista da vivência, bem me agradava que o Cristo não tivesse cruz ou
que esta não caísse sobre mim. Mas isto não é possível. O discípulo deve seguir
o Cristo com a cruz e não vale a pena querer a cruz sem Cristo, a qual se
tornaria inútil. Serve a arte, mas a arte é a ciência do inútil, segundo
alguns, mas que deve ser cultivada e assumida como arte.
Bosquejando
um dicionário de latim, encontramos os vocábulos: crux, nome (instrumento de suplício; cruz, forca,
estaca, patíbulo; tortura, tormento, dor, flagelo; quem atormenta: antigamente,
a palavra era masculina);
cruciabilis e excruciabilis, adjetivos
(cruel;
que atormenta; digno de ser atormentado: o segundo adjetivo); cruciabilitas, nome (tormento; aflição); cruciabiliter, advérbio (cruelmente, no meio de
tormentos); cruciabundus, adjetivo (cheio de tormentos); cruciamen, nome (tormento); cruciamentum, nome (tormento, sofrimento); crucians, particípio presente de cruciare (posto na cruz; sofredor, paciente); cruciare e excruciare,
verbos (pregar
na cruz; torturar, atormentar, submeter à tortura; afligir, causar grande dor); cruciarius, adjetivo (da cruz); cruciarius, nome (o crucificado); cruciarium, nome (a crucifixão); cruciatio e excruciatio,
nomes (tormentos;
tormento, tortura, martírio);
cruciator e excruciator, nomes (algoz, carrasco, o que tortura); cruciatorius, adjetivo (cruel, de tormento, de
tortura); cruciatus e excruciatus, particípios passados de cruciare e excruciare (atormentado,
torturado, arrancado pela tortura; manuseado, folheado – falando de livro); cruciatus, nome (tormento, suplício, tortura); crucifer, adjetivo (que leva a cruz); crucifigere, verbo (pregar na cruz; mortificar,
torturar); crucifixio, nome (crucifixão
ou crucificação; mortificação);
crucius, adjetivo (que
atormenta; que tem mau sabor – falando do vinho); e percruciare,
verbo (atormentar
cruelmente e/ou por muito tempo).
Já
os dicionários de grego registam: stauros
(σταυρός), nome, a significar “pau”, “madeiro”,
“paliçada”, “patíbulo”, “instrumento de suplício” e, no grego do Novo
Testamento, “cruz”, “crucifixo”; mégas staurós
(μέγας σταυρός), adjetivo + nome, a significar
“cruzeiro”, “grande cruz”; stauróo e anastauróo (σταυρόω
e ανασταυρόω), verbos,
com os significados de “levantar uma paliçada”, “proteger com uma paliçada” e,
no grego do Novo Testamento, “crucificar”, “empalar”; stáuroma (σταύρωμα), nome, a significar “paliçada”, “construção com
paliçadas”; stáurosis e anastáurosis (σταύρωσις
e ανασταύρωσις),
nomes, com o significado de “crucifixão”. Porém, para “cruz” no sentido de
“cruzamento” ou disposição em cruz, o grego tem quiasmós (χιασμός) e os verbos quiázo
e quiázomai (χιάζω
e χιάζομαι), a significar
“dispor-se em cruz”.
Como
se pode depreender da análise vocabular, habitualmente o sofrimento de cruz e
as suas aplicações referem-se à componente física, mas, dadas as repercussões
psíquicas e morais, estes dados aplicam-se frequentemente, por transferência de
sentido, à componente psíquica, moral e espiritual. Assim, repetidas vezes se
afirma que cada um passa a sua cruz na vida. Por outro lado, sabe-se que Jesus
está longe de ser o único condenado à morte de cruz. Muitos bandidos,
salteadores, assassinos e escravos – ou tidos como tal – sofreram e ainda sofrem
o patíbulo da cruz. Porém, em Cristo e para os seus discípulos, a cruz deixa de
ser o símbolo da escravidão e da maldição e passa a “insígnia triunfal, honrosa
e santa, chave do céu, penhor de eterna glória” (de
hino litúrgico) e sinal
de bênção. Tal é o sentido que os termos gregos e latinos conferem à crucifixão
de Cristo enquanto glorificação do filho pelo Pai e rampa de Ressurreição.
No
Português, cruz e palavras afins do
ponto de vista lexical e/ou semântico mantêm o significado latino, com exceção
do adjetivo “crucial”, que significa essencial,
decisivo – por se encontrar no cruzamento de linhas importantes – e cruzar, cruzeiro e cruzamento, que
também se aplicam à miscigenação de raças e ao sulcar dos mares.
***
Francisco
refere que a história de salvação tem a ver com o primeiro animal nomeado no
Génesis e no Apocalipse: a serpente (Gn 3,1-5.13.14-15; Ap 12,9). Este animal é, na Escritura, símbolo poderoso de
condenação e misteriosamente de redenção.
A documentar
a sua asserção, o Santo Padre menciona o livro dos Números (Nm 21,4-9) e o Evangelho de João (Jo 3,14-15). No primeiro, lê-se a passagem do
povo de Israel que, cansado do deserto com pouca comida, jura contra Deus e
Moisés. Também aqui o protagonismo vai para as serpentes. Enviadas do céu contra
o povo, semeiam medo e morte até que as pessoas implorem perdão. Mas, quando
Deus mandou que Moisés fizesse uma serpente de bronze e a colocasse num poste,
quem fosse mordido por um daqueles répteis e olhasse para a serpente de bronze
levantada no poste ficaria vivo. O Papa anota que o Senhor não mata a serpente,
deixa-a livre. Mas, “se uma delas prejudica uma pessoa, basta olhar para a
serpente de bronze para ficar curada”. É, pois, necessário “elevar a serpente” –
diz o orador da cátedra de Pedro.
É assim que o
verbo “elevar” está no centro do duro debate entre Cristo e os fariseus
descrito no Evangelho. A certo momento, Jesus declara: “Quando tiverdes elevado
o Filho do homem, então conhecereis quem eu sou” (Jo 8,28).
Por outro
lado, o Santo Padre relaciona este “Eu Sou” de Cristo com o nome que Deus se
tinha dado para que Moisés o comunicasse aos israelitas. Ora, a ordem do Senhor,
“Elevai o Filho do homem…”, visa o conhecimento
de Deus, acreditar no filho e alcançar a vida eterna.
Nestes termos,
para o Bispo de Roma, a serpente começa por ser o símbolo do pecado. É “a
serpente que mata”. Depois, é o sinal de salvação e vida: é “a serpente que
salva”. Nisto consiste “o mistério do Cristo”: assumir a nossa condição de pecado
para se elevar à nossa vista e nos elevar consigo.
O Papa recordou
que Paulo, falando do Mistério, diz que Jesus se esvaziou a si mesmo,
humilhou-se, aniquilou-se para nos salvar. Mais: fez-se pecado. Por isso, “o
Filho do homem como uma serpente, é tornado pecado, é elevado para nos salvar”.
Por isso,
conclui Francisco que esta “é a história da nossa redenção, esta é a história
do amor de Deus”. E, se quisermos conhecer o amor de Deus, temos de olhar o
Crucifixo: “um homem torturado”, um Deus, “esvaziado de divindade”, “sujado”
pelo pecado (vd Fl 2,6ss;
2Cor 5,21). Porém, é um
Deus que, aniquilando-se, destrói para sempre o verdadeiro nome do mal, o que o
Apocalipse chama de “a velha serpente”. É certo que “o pecado é a obra de Satanás”, mas Jesus vence Satanás ‘tornando-se pecado’ e assim eleva a todos
nós.
O crucifixo
não é, pois, uma simples obra de arte, mesmo com muitas pedras preciosas como
se vê tantas vezes: “o Crucifixo é o mistério do ‘aniquilamento’ de Deus, por
amor; e, como essa serpente que profetiza no deserto a salvação, é elevado da
terra a abraçar o mundo. E quem olhar para ele é curado. E isto não surge por
magia de um Deus taumaturgo, que faz as coisas mirabolantes. Isto é obra do “sofrimento
do Filho do homem”, do “sofrimento de Jesus Cristo”.
No contexto da
elevação de Cristo na cruz na solidão do calvário
como a da serpente de bronze no poste, no abandono e isolamento do deserto, o Mestre garante a Nicodemos:
“Tal como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim é necessário que o
Filho do Homem seja erguido ao alto, para que todo o que nele crê tenha a
vida eterna. Tanto amou Deus o mundo que lhe entregou o seu Filho Unigénito, para
que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna. De facto,
Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o
mundo seja salvo por Ele.” (Jo 3,14-17).
Nunca é
excessiva a meditação do mistério.
2016.03.18 – Louro de Carvalho
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