quinta-feira, 10 de março de 2016

Da polémica sobre “Alentejo prometido”, de Henrique Raposo

Não tive ainda oportunidade de ler o livro em referência, editado pela Bertrand e patrocinado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, pelo que não disponho ainda de elementos para um juízo fundamentado e objetivo. No entanto, a polémica que em torno da publicação se gerou merece desde já um comentário, estribado no modo de ver pessoal e no conhecimento que se tem do capítulo da pré-publicação.
A opinião pública está colocada ante uma situação dilemática: por um lado, está em causa a liberdade de expressão e o direito de escolha da forma como essa liberdade de expressão se concretiza; por outro lado, postula-se o dever de preservar a imagem a que as pessoas e as comunidades têm direito. E, se é certo que as pessoas erram e as comunidades registam situações, casos e mentalidades não plausíveis, é necessário evitar qualquer impulso que leve à generalização, até porque as pessoas têm direito ao bom nome e as comunidades, por princípio, têm direito ao respeito pelo seu modus vivendi, que, no caso de dever passar por significativa alteração, tem de ser objeto de compreensão pelo contexto, pedagogia na ação e diálogo com as pessoas. Depois, não podem esquecer-se as verdadeiras causas dos malefícios existentes e aquilo que eventualmente tenha passado a constituir para diversas mentalidades algo de deplorável, mas natural.
Dizem alguns que, se o livro constituísse uma narrativa novelística ou romanesca, com personagens e ambientes ficcionados, não haveria motivo para críticas e manifestações de indisposição. Não sei se é bem assim. O leitor tende a confundir as coisas e atribuir foros de realidade à narrativa ficcional. Lembro que, se Camilo Castelo Branco não gostava do ambiente vivido pela burguesia portuense, chamando ao Porto o palheiro, também o Porto não apreciava Camilo. Bem sabemos como este escritor, com a sua linguagem genuinamente vernácula e castiça, deu um notável contributo à robustez e maleabilidade da língua portuguesa e, com a recriação de ambientes e construção de personagens e tramas, enditou a lusa literatura. E Aquilino Ribeiro, apesar de a maior parte dos seus escritos constituírem obra ficcionada, bem desgostou alguns setores da sociedade beiroa, nomeadamente de pessoas ligadas ao clero (embora muitos padres fossem seus amigos e colaborassem com ele); e os episódios e títulos, nomeadamente a designação de “terras do Demo” valeram-lhe algumas críticas, algumas bem despudoradas. Talvez tivessem sido mais vastas e duras se a massa crítica fosse mais abundante e alicerçada. Porém, a Assembleia Nacional fez-lhe aquilo que o povo da região não conseguiu ou não quis fazer. Em tudo se via positivismo e anticlericalismo ou política subversiva. E muitos peritos na crítica literária o quiseram reduzir ao estatuto de escritor regionalista.
***
Voltando ao Alentejo e a Henrique Raposo, veja-se o que refere a sinopse do livro:
 “Alentejo Prometido” é um road movie familiar. O autor conta-nos uma história do Alentejo através de histórias familiares e memórias pessoais. O cenário é a região do Alentejo Litoral, sobretudo o concelho de Santiago de Cacém. Entre cidades e aldeias, o road movie lá vai descobrindo segredos familiares enquanto tenta lançar uma nova e implacável luz sobre uma região que se afoga há décadas em lugares-comuns. A ligar todos os quilómetros desta viagem, encontramos três temas: as mulheres, o suicídio e o complexo do desenraizado. O autor é filho de alentejanos que migraram para a Grande Lisboa nos anos 60 e sempre assumiu que encontraria a sua identidade perdida numa viagem deste estilo pelo Alentejo. Será que esse velho sonho resistiu à realidade?”
Ora, como se pode ver, não se trata de obra de ficção, nem de trabalho de investigação e análise de cariz sociológico ou antropológico. Se no primeiro caso, poderíamos considerar a obra despida de intenção ou realização de cores negras, no segundo caso, postularíamos, por um lado, o rigor científico e, por outro, a possibilidade do contraditório. Ao invés, o livro configura em sistema autobiográfico uma espécie de narrativa de memórias pessoais e familiares, um modo pessoal de ver, uma perspetiva reduzida e redutora. O próprio autor o assume como “um filme de estrada” em que tece a narrativa da história da sua família alentejana e formula considerações sobre temas que considera intrínsecos ao modo de vida daquela região portuguesa, falando, entre outros temas, de eutanásia, suicídio, incesto ou da violência sobre as mulheres.
A melhor resposta foi, do meu ponto de vista, a intervenção do grupo Cantadores do Desassossego, de Beja, que executou, a seguir à intervenção de Rentes de Carvalho, o cante Alentejo, Alentejo (Alentejo, terra sagrada) na cerimónia de lançamento do livro, deixando vagos os respetivos lugares na plateia, sem terem respondido expressamente “ao que Henrique Raposo fez” à “dignidade” do Alentejo “com o seu livro”, como referiu o líder do referido grupo, o mestre Francisco Torrão, já no exterior da livraria Bertrand de Picoas.
Para Francisco Torrão o cante alentejano “encerra em si todo um fator psicológico, emocional, de amor às famílias, contrastando com o livro” e “com a forma como descreve a região”.
De resto, parece-me excessiva a polémica instalada nas redes sociais e na imprensa (sobretudo a petição via Internet contra a venda do livro ou a queima de alguns dos seus 6000 exemplares), apesar de o autor fazer um retrato “desajustado do Alentejo e de quem lá vive”, retrato que, pouco tendo a ver com a realidade, pecará pela generalização, ao partir do que será a história da sua família.
No lançamento, reagendado para dia o passado dia 8 de março, na Livraria Bertrand do Picoas Plaza, em Lisboa, estiveram discretamente agentes da PSP e seguranças privados, em virtude das ameaças anónimas que Henrique Raposo começou a receber depois de ter falado sobre o livro no programa Irritações, da SIC Radical, conduzido por Pedro Boucherie Mendes e de o capítulo dedicado ao suicídio ter sido pré-publicado pelo jornal online “Observador”.
De facto, desde a participação do autor naquele programa da SIC Radical – cujo apresentador, como Francisco José Viegas, José Diogo Quintela, Bruno Vieira Amaral, Pedro Mexia ou Alexandre Soares dos Santos, esteve na sala do lançamento do livro – cresceram as críticas na Internet. O vídeo da entrevista foi partilhado na conta de Facebook da SIC Radical no dia 22 de fevereiro. E, desde então, foi visto mais de 800 mil vezes.
No predito programa televisivo, Raposo abordou alguns dos temas do livro, entre os quais o da naturalidade com que, a seu ver, os alentejanos encaram o suicídio e o das mulheres que durante décadas foram alvo de abusos vários, inclusive violações, sem nunca os denunciarem, já que o abuso consistia em ele se aproximar dela e a facto suceder.
***
Em Alentejo Prometido, volume de 107 páginas publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Raposo cruza, na 1.ª pessoa, dados pessoais com a pretensa história da região, elencando números e factos que corroboram a sua visão do território assente nas suas raízes, mas que sempre viu de fora (desenraizado), apesar das visitas no Natal e férias grandes. Trata-se duma viagem no tempo cuja escrita começa no verão de 2015, com o regresso à aldeia dos avós, Foros de Pouca Sorte, Santiago de Cacém, no litoral, a propósito do casamento dum primo.
O livro, na ótica de António Araújo, diretor de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos, cumpre uma “trajetória autobiográfica”, sem quaisquer ambições científicas:
“É claro que muitos poderão discordar da visão que Henrique Raposo tem do Alentejo, estão no seu pleno direito, mas não devem esquecer que essa é uma visão pessoal, que parte de um percurso. Este livro não é um ensaio… É um conjunto de histórias que fazem parte da memória do autor, não têm outra pretensão, não são antropologia”.
Assegurando que as opiniões do cronista do Expresso em Alentejo Prometido não vinculam a fundação, como aliás as demais publicações, Araújo defende que o nível da discussão instalada não tem dimensão para que se possa chamar uma polémica. E admite que na coleção “Retratos”, em que se insere o livro, há outros títulos sobre o Alentejo que focam realidades que poderiam suscitar debate, como Terra Firme, de José Navarro de Andrade, que acompanha na vida de uma grande propriedade agrícola durante um ano, e Escola, que visa um programa de combate ao insucesso escolar em Portalegre, com crianças de um meio social descrito como pobre e inculto. São dois livros com o registo de reportagem que não se encontra em Alentejo Prometido e nenhum deles “foi objeto deste tipo de críticas”.
***
A apresentação de Alentejo Prometido constituiu um como que corolário da polémica sobre identidades regionais, redes sociais e liberdade de expressão. E um número de Cante Alentejano, como se disse, interrompeu o evento e as palmas foram convenientemente distribuídas pelos cantores e pelo autor. Henrique Raposo garantiu que este livro e os livros que vai escrever “provocarão sempre atrito”, porque – diz – “eu tenho um olhar camiliano sobre os portugueses”, distinguindo entre a visão do país queirosiana de “olhar cínico, mole e brando” (não sei se é), de Eça de Queirós, e “o olhar trágico, duro” (nem sempre), de Camilo Castelo Branco.
Bem me parece que a sua autoapreciação raia um certo narcisismo. Nem estamos perante um Alentejo do século XIX nem o escritor tem a pena fina e contundente de Camilo.
Rentes de Carvalho, um dos intervenientes na sessão, criticava o facto de Alentejo Prometido se ter transformado “num caso, acendendo paixões que não deviam ter lugar numa sociedade civilizada e democrática” e refletia sobre as origens (as suas, transmontanas, as de Raposo, alentejanas) e sobre o livro que o “perturbou”. Com efeito o veterano escritor, adepto da “liberdade da palavra”, pediu ao autor “que grite contra o Alentejo, que o encare, que lhe faça um manguito”. E mesmo assim, “o Alentejo lhe sorrirá”. Enfatizou assim a importância de se ler antes de se comentar e ironizou sobre a “furiosa maneira” como Henrique Raposo “desanca na sua terra e na sua gente”, e sobre como sustenta que o “suicídio alentejano não é um ato individual, é uma prática coletiva” (o que me parece excessivo e irreal) – um dos temas mais comentados pelos críticos.
E Raposo, a propósito desta modalidade de escrita, que admira, declarou que, num tempo em que “falamos demais e lemos de pouco”, para se falar de um livro, “é preciso lê-lo”, mesmo “numa época de bullshit, de relativismo, de engraçadismo onde não se pode ter um discurso remotamente sincero sobre nada senão cai o Carmo e a Trindade”.
***
Enfim, exercício de liberdade e consequências – excesso de liberdade e de consequências. É a vida! Porém, dizer que o suicídio é natural e/ou coletivo não lembrava ao careca. E falar da inconsciência da violação lembra-me o sequestrador de mulher a quem infligiu os mais duros e reiterados golpes, mas, como não a violou, comentavam: Sós e não lhe fez mal nenhum!

2016.03.10 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário