Não tive ainda oportunidade de ler o
livro em referência, editado pela Bertrand e patrocinado pela Fundação
Francisco Manuel dos Santos, pelo que não disponho ainda de elementos para um
juízo fundamentado e objetivo. No entanto, a polémica que em torno da
publicação se gerou merece desde já um comentário, estribado no modo de ver
pessoal e no conhecimento que se tem do capítulo da pré-publicação.
A opinião pública está colocada ante
uma situação dilemática: por um lado, está em causa a liberdade de expressão e o
direito de escolha da forma como essa liberdade de expressão se concretiza; por
outro lado, postula-se o dever de preservar a imagem a que as pessoas e as
comunidades têm direito. E, se é certo que as pessoas erram e as comunidades
registam situações, casos e mentalidades não plausíveis, é necessário evitar
qualquer impulso que leve à generalização, até porque as pessoas têm direito ao
bom nome e as comunidades, por princípio, têm direito ao respeito pelo seu modus vivendi, que, no caso de dever
passar por significativa alteração, tem de ser objeto de compreensão pelo contexto,
pedagogia na ação e diálogo com as pessoas. Depois, não podem esquecer-se as
verdadeiras causas dos malefícios existentes e aquilo que eventualmente tenha
passado a constituir para diversas mentalidades algo de deplorável, mas
natural.
Dizem alguns que, se o livro
constituísse uma narrativa novelística ou romanesca, com personagens e
ambientes ficcionados, não haveria motivo para críticas e manifestações de
indisposição. Não sei se é bem assim. O leitor tende a confundir as coisas e
atribuir foros de realidade à narrativa ficcional. Lembro que, se Camilo
Castelo Branco não gostava do ambiente vivido pela burguesia portuense,
chamando ao Porto o palheiro, também o
Porto não apreciava Camilo. Bem sabemos como este escritor, com a sua linguagem
genuinamente vernácula e castiça, deu um notável contributo à robustez e
maleabilidade da língua portuguesa e, com a recriação de ambientes e construção
de personagens e tramas, enditou a lusa literatura. E Aquilino Ribeiro, apesar
de a maior parte dos seus escritos constituírem obra ficcionada, bem desgostou
alguns setores da sociedade beiroa, nomeadamente de pessoas ligadas ao clero (embora
muitos padres fossem seus amigos e colaborassem com ele); e os episódios e títulos, nomeadamente a designação
de “terras do Demo” valeram-lhe algumas críticas, algumas bem despudoradas.
Talvez tivessem sido mais vastas e duras se a massa crítica fosse mais
abundante e alicerçada. Porém, a Assembleia Nacional fez-lhe aquilo que o povo da
região não conseguiu ou não quis fazer. Em tudo se via positivismo e
anticlericalismo ou política subversiva. E muitos peritos na crítica literária
o quiseram reduzir ao estatuto de escritor regionalista.
***
Voltando ao Alentejo e a Henrique
Raposo, veja-se o que refere a sinopse do livro:
“Alentejo
Prometido” é um road movie
familiar. O autor conta-nos uma história do Alentejo através de histórias
familiares e memórias pessoais. O cenário é a região do Alentejo Litoral,
sobretudo o concelho de Santiago de Cacém. Entre cidades e aldeias, o road movie lá vai descobrindo segredos
familiares enquanto tenta lançar uma nova e implacável luz sobre uma região que
se afoga há décadas em lugares-comuns. A ligar todos os quilómetros desta
viagem, encontramos três temas: as mulheres, o suicídio e o complexo do
desenraizado. O autor é filho de alentejanos que migraram para a Grande Lisboa
nos anos 60 e sempre assumiu que encontraria a sua identidade perdida numa
viagem deste estilo pelo Alentejo. Será que esse velho sonho resistiu à
realidade?”
Ora,
como se pode ver, não se trata de obra de ficção, nem de trabalho de
investigação e análise de cariz sociológico ou antropológico. Se no primeiro
caso, poderíamos considerar a obra despida de intenção ou realização de cores
negras, no segundo caso, postularíamos, por um lado, o rigor científico e, por
outro, a possibilidade do contraditório. Ao invés, o livro configura em sistema
autobiográfico uma espécie de narrativa de memórias pessoais e familiares, um
modo pessoal de ver, uma perspetiva reduzida e redutora. O próprio autor o
assume como “um filme de estrada” em que tece a narrativa da história da sua
família alentejana e formula considerações sobre temas que considera
intrínsecos ao modo de vida daquela região portuguesa, falando, entre outros
temas, de eutanásia, suicídio, incesto ou da violência sobre as mulheres.
A
melhor resposta foi, do meu ponto de vista, a intervenção do grupo Cantadores do Desassossego, de Beja, que
executou, a seguir à intervenção de Rentes de Carvalho, o cante Alentejo, Alentejo (Alentejo,
terra sagrada) na cerimónia de lançamento do
livro, deixando vagos os respetivos lugares na plateia, sem terem respondido
expressamente “ao que Henrique
Raposo fez” à “dignidade” do Alentejo “com o seu livro”, como referiu o líder
do referido grupo, o mestre Francisco Torrão, já no exterior da livraria
Bertrand de Picoas.
Para
Francisco Torrão o cante alentejano “encerra em si todo um fator psicológico,
emocional, de amor às famílias, contrastando com o livro” e “com a forma como
descreve a região”.
De
resto, parece-me excessiva a polémica instalada nas redes sociais e na imprensa (sobretudo
a petição via Internet contra a venda do livro ou a queima de alguns dos seus
6000 exemplares), apesar de o autor fazer um retrato “desajustado do
Alentejo e de quem lá vive”, retrato que, pouco tendo a ver com a realidade,
pecará pela generalização, ao partir do que será a história da sua família.
No
lançamento, reagendado para dia o passado dia 8 de março, na Livraria Bertrand
do Picoas Plaza, em Lisboa, estiveram discretamente agentes da PSP e seguranças
privados, em virtude das ameaças anónimas que Henrique Raposo começou a receber
depois de ter falado sobre o livro no programa Irritações, da SIC
Radical, conduzido por Pedro
Boucherie Mendes e de o capítulo dedicado ao suicídio ter sido pré-publicado
pelo jornal online “Observador”.
De facto, desde a participação do autor naquele
programa da SIC Radical – cujo apresentador, como Francisco José Viegas, José Diogo
Quintela, Bruno Vieira Amaral, Pedro Mexia ou Alexandre Soares dos Santos, esteve
na sala do lançamento do livro – cresceram as críticas na Internet. O vídeo da
entrevista foi partilhado na conta de Facebook da SIC Radical no dia 22 de
fevereiro. E, desde então, foi visto mais de 800 mil vezes.
No predito
programa televisivo, Raposo abordou alguns dos temas do livro, entre os quais o
da naturalidade com que, a seu ver, os alentejanos encaram o suicídio e o das
mulheres que durante décadas foram alvo de abusos vários, inclusive violações,
sem nunca os denunciarem, já que o abuso consistia em ele se aproximar dela e a
facto suceder.
***
Em Alentejo Prometido, volume de
107 páginas publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Raposo cruza,
na 1.ª pessoa, dados pessoais com a pretensa história da região, elencando
números e factos que corroboram a sua visão do território assente nas suas
raízes, mas que sempre viu de fora (desenraizado), apesar das visitas no Natal e férias grandes. Trata-se duma viagem no
tempo cuja escrita começa no verão de 2015, com o regresso à aldeia dos avós,
Foros de Pouca Sorte, Santiago de Cacém, no litoral, a propósito do casamento dum
primo.
O livro, na
ótica de António Araújo, diretor de publicações da Fundação Francisco Manuel
dos Santos, cumpre uma “trajetória autobiográfica”, sem quaisquer ambições
científicas:
“É claro que muitos poderão discordar
da visão que Henrique Raposo tem do Alentejo, estão no seu pleno direito, mas
não devem esquecer que essa é uma visão pessoal, que parte de um percurso. Este
livro não é um ensaio… É um conjunto de histórias que fazem parte da memória do
autor, não têm outra pretensão, não são antropologia”.
Assegurando
que as opiniões do cronista do Expresso em Alentejo
Prometido não vinculam a
fundação, como aliás as demais publicações, Araújo defende que o nível da discussão
instalada não tem dimensão para que se possa chamar uma polémica. E admite que
na coleção “Retratos”, em que se insere o livro, há outros títulos sobre o
Alentejo que focam realidades que poderiam suscitar debate, como Terra Firme, de José Navarro de
Andrade, que acompanha na vida de uma grande propriedade agrícola durante um
ano, e Escola, que visa um
programa de combate ao insucesso escolar em Portalegre, com crianças de um meio
social descrito como pobre e inculto. São dois livros com o registo de
reportagem que não se encontra em Alentejo
Prometido e nenhum deles “foi objeto deste tipo de críticas”.
***
A apresentação de Alentejo Prometido constituiu um como que corolário da
polémica sobre identidades regionais, redes sociais e liberdade de expressão. E
um número de Cante Alentejano, como se disse, interrompeu o evento e as palmas foram
convenientemente distribuídas pelos cantores e pelo autor. Henrique Raposo garantiu que este
livro e os livros que vai escrever “provocarão sempre atrito”, porque – diz – “eu
tenho um olhar camiliano sobre os portugueses”, distinguindo entre a visão do
país queirosiana de “olhar cínico, mole e brando” (não
sei se é), de Eça de
Queirós, e “o olhar trágico, duro” (nem sempre), de Camilo Castelo Branco.
Bem me parece
que a sua autoapreciação raia um certo narcisismo. Nem estamos perante um
Alentejo do século XIX nem o escritor tem a pena fina e contundente de Camilo.
Rentes de
Carvalho, um dos intervenientes na sessão, criticava o facto de Alentejo
Prometido se ter
transformado “num caso, acendendo paixões que não deviam ter lugar numa
sociedade civilizada e democrática” e refletia sobre as origens (as suas, transmontanas, as de Raposo,
alentejanas) e sobre o
livro que o “perturbou”. Com efeito o veterano escritor, adepto da “liberdade
da palavra”, pediu ao autor “que grite contra o Alentejo, que o encare, que lhe
faça um manguito”. E mesmo assim, “o Alentejo lhe sorrirá”. Enfatizou assim a
importância de se ler antes de se comentar e ironizou sobre a “furiosa maneira”
como Henrique Raposo “desanca na sua terra e na sua gente”, e sobre como
sustenta que o “suicídio alentejano não é um ato individual, é uma prática coletiva”
(o que me parece
excessivo e irreal) – um
dos temas mais comentados pelos críticos.
E Raposo, a
propósito desta modalidade de escrita, que admira, declarou que, num tempo em
que “falamos demais e lemos de pouco”, para se falar de um livro, “é preciso
lê-lo”, mesmo “numa época de bullshit,
de relativismo, de engraçadismo onde não se pode ter um discurso remotamente
sincero sobre nada senão cai o Carmo e a Trindade”.
***
Enfim, exercício
de liberdade e consequências – excesso de liberdade e de consequências. É a
vida! Porém, dizer que o suicídio é natural e/ou coletivo não lembrava ao
careca. E falar da inconsciência da violação lembra-me o sequestrador de mulher
a quem infligiu os mais duros e reiterados golpes, mas, como não a violou, comentavam:
Sós e não lhe fez mal nenhum!
2016.03.10 – Louro de Carvalho
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