quarta-feira, 23 de março de 2016

José – o carpinteiro, esposo de Maria

No limiar da primavera e, este ano, nos umbrais da Semana Santa, a Igreja Católica celebra a solenidade de São José, esposo da Virgem Santa Maria, com a profissão de carpinteiro. Porém, é em torno do facto de ter desposado a mãe de Jesus e agido como pai terreno, mas adotivo, do filho de Maria – que os crentes sabem ter sido concebido pelo poder do Espírito Santo, sem intervenção de varão – que surgem as referências bíblicas a José, da descendência de David.
O pouco que sabemos deste homem justo – vir quadratus, porque sempre igual a si próprio – consta das magras referências bíblicas do Novo Testamento, complementadas por muitos textos apócrifos, de que se destaca o caso da “história de José, o carpinteiro”, escrito em grego e conservado em árabe, siríaco e copta, que fala em especial da sua morte. Não obstante, os poucos dados biográficos do Evangelho são mais que suficientes para podermos aquilatar da relevância do seu papel na economia da Salvação.
Com efeito, é no seio de uma família humana muito modesta que se concretiza a realização do mistério da encarnação do Verbo de Deus. Unido intimamente ao percurso da vida da Virgem-Mãe e ao Salvador, José posiciona-se num patamar muito superior ao dos mais profundos místicos da História da Igreja: amando Jesus, concebido e nascido virginalmente, amava a Deus providente e rico em misericórdia; toda a ternura amorosa com que envolvia a mãe de Jesus constituía um compromisso pessoal com a pureza castíssima da imaculada Mãe de Deus e o exercício no masculino da castidade conjugal vivida de forma invulgar. No entanto, aos olhos do mundo, José e Maria eram um casal revestido da maior normalidade de vida.
Como Abraão, sempre crente, que partiu da terra pátria para uma terra desconhecida e a quem foi pedido o sacrifício do único filho gerado com a mulher livre, também José experimentou a contradição humana exigida pela fé. De facto, foi escolhido para esposo de Maria, sabendo que ela persistiria na consagração da sua donzelia ao Senhor, mas, antes de viverem em comum e sem o perceber, soube da sua gravidez; acompanhou-a no momento de dar à luz no abandono a que foram votados na gruta dos arredores da cidade de Belém, por consequência da observância da obrigação do recenseamento; sobressaltado, sofreu a ordem divina de fuga de Belém para o Egito com o menino e a mãe, bem como a ordem de regresso a Nazaré; acompanhou a mãe na apresentação do menino ao Templo segundo o estilo dos pobres; sofreu o desgosto com a perda do Menino em Jerusalém aos doze anos de idade e o desconforto das palavras de Jesus à Mãe, “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar na casa de meu pai?” (vd Lc 2,49).
Entretanto, é de salientar que José, por desígnio divino, integra a realização do mistério de Deus que vem viver no meio dos homens. Começa logo por tomar uma atitude misericordiosa. Ao não perceber a origem da gravidez da esposa, não a quis infamar, como seria de esperar de um marido que agisse precipitadamente com a Lei. Evitando que ela fosse apontada como adúltera e apedrejada segundo a frieza da Lei mosaica, resolveu abandoná-la secretamente. E o evangelista explicita a razão: porque era um homem justo (cf Mt 1,19). É então que o segredo se lhe revela:
“Eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: ‘José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados’. Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor dissera pelo profeta: A virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus connosco. Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo e recebeu sua esposa. E, sem que antes a tivesse conhecido, ela deu à luz um filho, ao qual ele pôs o nome de Jesus.” (Mt 1,20-25; cf Lc 1,26-38.2.1.21).
E, em Belém, teve o gosto de, enquanto velava por Maria e pelo menino, ouvir o cantar angélico de glória no Céu e paz na Terra, a adoração e as ofertas dos pastores e, mais tarde, a adoração e as ofertas dos magos que vieram de longe (vd Lc 2.1-21; Mt 2,1-12).
Por outro lado, depois da perda e do encontro de Jesus no Templo, o evangelista destaca:
“Depois desceu com eles, voltou para Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração. E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens.” (Lc 2,51-52).
Depois, em Nazaré, Jesus aprende o mister do pai adotivo, o ofício de carpinteiro:
Não é este o filho do carpinteiro? E não se chama sua Mãe Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas?” (Mt 13,55; cf Mc 6,3).
Como se vê, Jesus era conhecido como o filho do carpinteiro. Mateus e Marcos utilizam o termo grego tektōn (τέκτων), passível de várias interpretações e usado para designar os trabalhadores envolvidos em atividades económicas ligadas à construção civil. Outras versões costumam considerar José como sendo um canteiro, ou seja, operário que talhava artisticamente blocos de rocha bruta. O certo é que Jesus, antes do início da sua vida pública, desempenhou a profissão de José. Enquanto Mateus lhe chama o “filho do carpinteiro”, Marcos refere-se a Jesus como “o carpinteiro”, ao relatar uma sua visita a Nazaré, na qual os compatriotas o chamavam ironicamente pela profissão para o desqualificarem como pregador.
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O texto apócrifo acima mencionado refere que “José o Carpinteiro, pai de Jesus”, “abandonou esta vida mortal e viveu 112 anos”; e, quando o Salvador “contou a sua vida aos apóstolos, no monte das Oliveiras, eles escreveram as suas palavras e depois guardaram-nas na biblioteca de Jerusalém e, além disso, deixaram consignado que o dia no qual o santo ancião se apartou do seu corpo fora o dia 26 de Epiphi (20 de julho), na paz do Senhor”.
O mesmo texto dá José como desposado com Maria sendo já viúvo, com idade respeitável e que possuía 6 filhos, 4 homens e 2 mulheres, cujos nomes eram Judá, Justo, Tiago e Simão, e as filhas chamavam-se Lísia e Lídia.
O momento da morte é apresentado com uma grande riqueza de detalhes, estando presente Jesus. Parece que a imaginária do altar de São José na igreja da Senhora da Lapa, na freguesia de Quintela corresponde aos pormenores de tal narrativa
No artigo “Vida (e morte) de José, o Carpinteiro” de Alberto Elli, é referido que José ficara viúvo tendo Maria 12 anos de idade e desde os 3 anos de idade anos que ela vivia no Templo. O apócrifo segue o episódio, relatado por Mateus, do anjo que apareceu em sonhos a José e a história da fuga para o Egito (por 2 anos, de acordo com outras tradições 3 anos e 6 meses), onde permaneceu até à morte de Herodes, o facínora. Regressado a Nazaré, José viveu mais algum tempo. Apesar dos seus 111/112 anos, “não sofria de qualquer doença corporal, a sua visão não vacilou, nem perdeu algum dente; em toda a sua vida, sempre tinha a mente lúcida, em seus afazeres teve sempre um vigor juvenil como o de uma criança, os seus membros estavam sempre intactos e livres de qualquer dor”. Quando José ficou doente, um anjo veio anunciar-lhe a morte dentro de um ano: ficou então possuído de medo e grande perturbação. Por isso, foi a Jerusalém e, no Templo, fez subir orações ao trono de Deus para uma boa morte. Voltou para Nazaré e adoeceu. Na sequência da doença, morreu como é estabelecido para cada homem.
Depois vem um breve relato descritivo da vida de José supostamente contada por Jesus. Aí se refere o período de 40 anos que passou para tomar esposa, com a qual vivera 49 anos. Teria passado um ano na solidão da viuvez. A mãe de Jesus terá passado mais dois anos na sua casa desde que era sua namorada para vir a ser sua esposa, o que lhe foi confiado pelos sacerdotes com a incumbência de ele a guardar até à hora do casamento. Jesus teria 18 anos de idade aquando da morte de José.
Fala-se dum diálogo de José com Jesus no leito da morte de José, em que este revela a ansiedade sentida ao descobrir a gravidez de Maria e como o anjo o advertira em sonho. Jesus sai do quarto, comovido, e é surpreendido pela mãe. O filho convida-a a ir à cabeceira de José. E, quando José expira, Jesus olha ao sul e, vendo a morte seguida, a partir do além-túmulo, do diabo e seus seguidores, ameaça-os; depois, eleva uma oração ao Pai celeste a interceder por José. Terá sido o próprio Jesus a lavar o corpo do velho pai e terá assistido ao sepultamento. O louvor de Jesus a José comparara a sua morte à ascensão de Enoch e de Elias. (cf artigo de Alberto Elli, “Vida e morte de José o Carpinteiro”, in revista terra santa – edição portuguesa – n.º 4, 1992, pág. 31-32, editora Canção Nova).
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À parte as imprecisões e os exageros do texto apócrifo, sobretudo no atinente à idade provecta em excesso, como se diz, para viabilizar aos olhos do mundo “escandalizadiço” a convivência do varão com a mulher sem ferir a castidade feminil da Virgem, importa que nos centremos na sua missão. E esta é essencialmente a cooperação com o mistério, sobretudo na fase da encarnação, a da debilidade da criança e da mãe. Ele é o rosto discreto da misericórdia divina e o guarda da Virgem e do Menino, o facilitador da maternidade, o tutor paternal do sustento e da educação humana e profissional de Jesus e o desbravador e guia dos caminhos difíceis – o real anjo-tutela humano da família. Nele, por isso, a Igreja vê o seu guardião misericordioso e dele colhe a lição de como há de acompanhar, guardar, orientar e proteger pessoas e povos. Não o poderá fazer à espada ou imbuída de triunfalismo, mas na discrição, na eficácia, no serviço.
Como José se finou para o mundo, quando a sua missão ficou cumprida, também a Igreja deve saber estar onde demais ninguém quer estar e ir aonde mais ninguém quer ir, mas ceder a vez e a voz quando os outros são capazes de ser eles próprios os construtores da sua história. E ela deve continuar na proclamação da Palavra, na celebração do Mistério e na luta pela justiça.
José não teve o gosto de ver a pujança benfazeja do seu sucessor como carpinteiro nas suas funções de profeta e mestre, pregador e taumaturgo, compassivo e misericordioso, anunciador do Reino e cordeiro de Deus. José também não sofreu o desgosto da rejeição do seu menino, da sua condenação à morte de cruz nem teve de saltar para o anúncio da ressurreição ou para o apostolado ativo. Ora, nestas duas vertentes é que a Igreja tem de se afastar do destino de José, para inserir na sua pele o trabalho de Jesus, a sua missão de mestre, sacerdote e guia, o testemunho da morte e ressurreição e o discipulado. E, entretanto, convém-lhe implorar de José, seu guia e guardião celeste, a sua intercessão e a proteção divina.
Pela tradição, o sinal de que José foi o eleito para esposo de Maria fora o florescimento da sua vara – o que augurava uma nova era. Que também a vara dos pastores da Igreja e a dos demais cristãos floresçam em primavera pascal com vista a uma era sempre nova e renovada no mundo!

2013.03.22 – Louro de Carvalho 

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