domingo, 20 de março de 2016

A escola deve trabalhar com todas as crianças. De igual forma?

O JN de ontem, dia 19 de março, dá conta à opinião pública da polémica gerada em torno da realização de cerimónias religiosas em escolas públicas por ocasião da Quaresma e aproximação da Páscoa, nomeadamente celebração de missas e comunhões pascais, referenciando-se sobretudo algumas escolas do Norte do país. O jornal ostenta mesmo uma imagem com pessoas a escrever em painéis encimados com o crucifixo e com a legenda, “Várias escolas organizam atividades religiosas dentro do horário letivo, no âmbito das celebrações da Páscoa”. 
No corpo da notícia, aduz que pais e professores entendem que missas em horário letivo não deviam acontecer e que educação e celebrações religiosas “não devem misturar-se, nem em nome da tradição”, sobretudo, “havendo pelo menos um aluno que não participe”. E o professor secretário-geral da Fenprof sentencia que “é irregular e não é aceitável”, que “escolas são escolas” e “igrejas são igrejas”, devendo cada um “respeitar o espaço que é adequado para cada uma das coisas”. Neste alinhamento também o BE (Bloco de Esquerda) quer saber o que pensa o ME (Ministério da Educação) para garantir a laicidade da escola pública. 
Por seu turno, Jorge Ascensão, da CONFAP, assegura que “a escola tem de responder às necessidades de todas as crianças e com todas trabalhar de forma equitativa”. Porém, o JN seleciona este segmento e coloca-o em subtítulo nos seguintes termos: “Confap diz que a escola deve trabalhar com todas as crianças de igual forma”. É diferente, como se vê.
***
Outros órgãos de informação apontam o dedo ao suposto facto de que “o ensino público exclui os alunos que optam por não participar em cerimónias religiosas organizadas em horário letivo”, a crer no que alega a ARL (Associação República e Laicidade) e que “tanto o Ministério da Educação como as escolas, em especial na região norte, invocam a ‘tradição enraizada’ nas comunidades ‘esmagadoramente católicas’ onde se inserem para justificar a realização das cerimónias católicas”. A este respeito, Ricardo Alves, da ARL, ensina: “A escola é para educar, não é para coagir os alunos que são, desta forma, excluídos por não terem uma religião. O papel da escola devia ser integrar, não excluir”. E acrescenta: “Se é uma tradição, pode ser feita fora da escola. Misturar isso nas atividades letivas é perfeitamente inaceitável”.
Também se aduz que a Constituição estabelece que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, pelo que “o ensino público não será confessional” (vd CRP, art.º 43.º/2 e 3).
Por seu turno, a AAP (A Associação Ateísta Portuguesa) protesta ao DN que “os direitos fundamentais, como o de ter uma religião diferente ou não ter sequer uma, existem para proteger as minorias”. E o seu presidente, Luís Rodrigues, assegura que impor aos outros “uma posição por ser maioritária” é uma postura “absolutamente nazi”. E enfatizando o discurso disserta: “Vivemos num país que é constitucionalmente laico, que tem uma posição neutra sobre a religião, ao contrário do antigo regime”.
Por outro lado, parece haver uma contradição entre o que o Presidente da CONFAP diz umas vezes e o que diz outras vezes, já que, segundo outras fontes noticiosas, “admite realização de missas durante o horário letivo nas escolas públicas, se não prejudicarem as aulas e desde que o ME investigue eventuais discriminações”. E adianta:
“Não há qualquer problema, desde que a comunidade esteja toda de acordo na sua realização e desde que não prejudique a atividade educativa, a principal função da escola”.
E, “a ser verdade que há alunos a serem discriminados”, sem qualquer atividade, o ME deve averiguar e instar à correção:
“O Ministério deve averiguar e corrigir. Temos de ver o que se está a passar ou não. Quanto ao facto de ser uma escola pública e a religião católica, não vejo qualquer problema, sendo que não vejo para a católica nem para outra religião, desde que a comunidade esteja de acordo”.
O ME, citado pelo JN, explicou que, “para que os alunos possam participar na iniciativa, os encarregados de educação têm de assinar uma declaração autorizando tal participação. Os alunos que não participam ficam na escola, que lhes aloca o acompanhamento regular”.
***
Começo por comentar o artigo 43.º da CRP (n.º 2 e n.º 3). Com efeito, “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (n.º 2). Querem, por consequência, garantir-me que, pelo menos, os programas de Português, Filosofia, História, Geografia, Sociologia e Economia estão despidos de qualquer uma das diretrizes estabelecidas constitucionalmente? Dispensem-me da hipocrisia, por gentileza, se não o querem fazer por convicção! E é o Estado que estabelece os currículos e os programas; não é nenhuma ONG como, por exemplo, a SEDES, a Academia Portuguesa das Ciências ou a Fundação Calouste Gulbenkian! E, se calhar, há por lá muita matéria que com que eu e muitos outros não concordaremos e somos obrigados a ensinar ao abrigo do n.º 2 do art.º 35.º do ECD!
O ensino público não será confessional” (n.º 3). Esta asserção quer dizer que o Estado não ensina uma religião, porque, como tal, não professa uma religião: é neutral, não inimigo; dialogante, não excludente. E nada obsta a que na linha do conhecimento e da História das Religiões, a liberdade de aprender e de ensinar (vd n.º 1) possa ficar coarctada. Até se aprende, por exemplo, a religião e a mitologia greco-romana sem consequência confessional.
Por outro lado, o n.º 5 do art.º 41.º estabelece a garantia da “liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respetiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades”. Ora, esse ensino deve ser feito nos locais aonde as pessoas vão e onde elas vivem. E as crianças, adolescentes e jovens passam muito do seu tempo na escola (E com a escola a tempo inteiro…), que nos dizem que tem de ser plural, contextualizada, inclusiva – e não exclusivista e negativista.
Além disso, o Estado – que não quer, a partir da revolução abrilina, ter a questão religiosa e o isolamento da I República – vincula-se aos tratados internacionais que livremente assume. E a concordata com a Santa Sé prevê o ensino da religião nas escolas, sendo que este ensino, como o de outras disciplinas deve ter, além da componente teórica, a componente prática com visibilidade. O que, a legitimar-se a celebração litúrgica numa escola, a autorização escrita para os alunos participarem é exigível, do meu ponto de vista, para os alunos que não estão inscritos na disciplina (alguns não estão inscritos não pela falta de convicção religiosa, mas por outros motivos organizativos e familiares).
Ora, a vantagem da concordata, bem como a experiência da sua aplicação, originou a lei das confissões religiosas, segundo a qual, desde que haja em escola, hospital, aquartelamento militar um número mínimo de membros de outras religiões, que não a católica, deve ser garantida a assistência religiosa e, na escola, o ensino respetivo – a cargo de ministro da respetiva religião ou de quem as suas vezes fizer legitimamente.
E os que não professam religião nenhuma? Devem ter o acompanhamento adequado em biblioteca ou centro de recursos e/ou estudos. E pergunto-me por que motivo não se deu seguimento à disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, da reforma de Roberto Carneiro para quem a preferisse à Educação Moral e Religiosa.
A não ser assim, porque é que nos hão de continuar a metralhar com as finalidades educacionais do desenvolvimento integral do “eu” do aluno (Será apenas técnico, científico, físico…?), da resposta aos desafios da sociedade e da participação ativa na vida pública?
As celebrações litúrgicas deveriam ser preferencialmente num templo? Talvez. Porém, não vejo inconveniente em que o sejam também em escola, como em quartel ou em hospital – onde estão as pessoas. Além disso, é mais difícil garantir a segurança das pessoas – crianças, adolescentes e jovens – se as igrejas ou capelas estiverem fisicamente longe das escolas.
Em qualquer dos casos, alunos que não adiram devem ter o conveniente acompanhamento. Mas devem respeitar-se as opções dos grupos sejam eles maioritários (por resposta à vontade maioritária), sejam minoritários (por respeito pelas minorias). Em tempo de aulas? Porque não, se o Plano Anual de Atividades devidamente aprovado, admite outras atividades através das quais também se aprende? Ou será que todas as demais atividades são da necessidade ou do agrado ou da vontade de todos os alunos? E os outros ficam sempre devidamente acompanhados?
Quero dizer à AAP ou à ARL que laicidade e aconfessionalidade não podem significar mais do que separação. Insisto em declarar que a laicidade da República configura o reforço da componente popular do Estado, componente inclusiva de todos como são ou querem ser. E tão grave é obrigar a uma atividade quem não a quer como privar dela aqueles que a querem.
Por outro lado, a inclusão implica o “não” ao negativismo. O negativismo é perigoso pelo vazio em que deixa pessoas e sociedades. Será legítimo privar as crianças e adolescentes da celebração do dia do Pai na escola porque há crianças crescidas em famílias monoparentais e crianças crescidas entre cônjuges do mesmo sexo? Não será mais útil fazer a pedagogia da diferença legítima? O mesmo se diga da proibição da celebração do Natal para não ofender suscetibilidades de muçulmanos e alguns refugiados. Será legítimo privar as sociedades da cristandade do presépio e intoxicá-las com o Pai Natal e com os sinos, as árvores de bolas e luzes? Não será infâmia histórica querer o Natal e a Páscoa só para usufruir dumas férias, duns feriados, dumas jantaradas e mandar às malvas o sentido dos que se proclamam cristãos?
Também é de corrigir a asserção de quem refere que obrigar alguns a uma iniciativa da maioria é nazismo. Que eu saiba, o nazismo não configurava o pensamento e a opção da maioria, muito embora o líder tenha subido ao poder por via eleitoral, mas sem abrir o jogo todo.
***
A escola deve trabalhar com todos de forma equânime, isto é, colocando-os nos patamares da igualdade possível e respondendo às necessidades e aos legítimos anseios das pessoas e da comunidade. Quando não, lamentaremos para onde vai a escola, para onde vai a sociedade.

2016.03.20 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário