sábado, 1 de fevereiro de 2025

“Da Nascente à Foz do Amazonas – Uma Viagem Fantástica”

 

O enunciado em epígrafe é o título da 1.ª edição de um livro de Alfredo Nascimento, natural de Vila da Ponte, no concelho de Sernancelhe, falecido, com 72 anos de idade, a 28 de maio de 2016, nas piscinas interiores do complexo desportivo do município de Aguiar da Beira, em cuja vila residia, ultimamente.

O interesse por este livro, que a crítica, no Brasil, considerou um “roteiro turístico, apresentando descrição de viagem da nascente à foz do Rio Amazonas” realizada por Alfredo Nascimento, de quem fui amigo pessoal, embora com divergências sobre alguns temas, reavivou-se com a leitura da peça jornalística de Paula Sofia Luz (texto) e Adriano Miranda (fotografia), publicada no caderno “Fugas”, do jornal Público, de 1 de fevereiro, sob o título “José Luís Jorge – pelo rio acima: um português a (re) descobrir o Amazonas”. 

Segundo o texto do Público, o fotógrafo José Luís Jorge, quando sai de Leiria, tem o “mantra” da aventura “em qualquer parte do Mundo”, que “está todo descoberto e todo por descobrir”. Desta feita, o homem experiente em contar a vida em imagens, escolheu o Amazonas, para o que necessitou de “tempo”, de “disponibilidade (financeira, também)” e de “muita preparação. E, assim, conseguiu empreender tal viagem entre novembro e dezembro de 2024, também pelo rio abaixo. “Pelo rio acima” entender-se-á, na ótica do acompanhamento do crescimento do caudal do permagno curso de água e dos riscos inerentes.  

A coragem de que sempre se revestiu tinha, agora, de ser enorme, dada a orografia selvagem dos Andes – de montes alcantilados e ravinas profundas, por meio de estradas estreitas, com ruínas de 500 a 600 metros, de um lado, e com paredes verticais, do outro lado. O perigo de vida é grande, tanto assim que há uma cruz de cem em cem metros, sinal de que alguém ali morreu.

Por outro lado, apesar de os geógrafos divergirem sobre o local da nascente (o Nevado Misme, no Sul do Peru, é o mais consensual) e sobre o ponto exato da foz, no Atlântico – daí, a diversidade de números de quilómetros do comprimento do rio –, o viajante sabia que iria palmilhar o rio de maior caudal do Mundo e o segundo mais extenso (a seguir ao Nilo), com os riscos inerentes.

O viajante conta que, para chegar à nascente, de que tinha conhecimento pelos mapas, contratou um guia que o levou a um vulcão extinto, com 5597 metros, aonde subiu com muita dificuldade e onde se sentiu rodeado de uma “paisagem grandiosa, austera e lunar”, contrastante com a da Praia do Céu, na ilha de Marajó, no Brasil, que o havia de encantar mais tarde. 

Fez a viagem de dois modos: entre o Nevado e a cidade de Atalaya, a par com o rio, ao longo de dois mil quilómetros; e, de Atalaya ao Atlântico, a navegar o rio, por cerca de 5500 quilómetros.

Na viagem noturna entre a cidade de Cusco e a de Ayacucho, os passageiros do autocarro, entre os quais se contava José Luís Jorge, foram impedidos, durante algum tempo, de prosseguirem viagem por autóctones, munidos de chicotes, que barricavam a estrada, reivindicando uma universidade. Todavia, ao longo do percurso, o viajante – sempre munido de máquina fotográfica (fez 75 mil fotografias), de dois mapas de papel (sempre acessíveis, ao invés dos editados em suporte digital, que funcionam, apenas se houver Internet) e de canivete suíço com lupa (permite cortar comida, abrir latas de conserva ou garrafas de vinho e ler as letras pequenas do mapa) – encontrou todo o tipo de pessoas, incluindo Walter Saxer (produtor do filme “Fizcarraldo”, sobre a Amazónia) e Jaime Mourão (lusodescendente, que trabalhou com o realizador do mesmo filme).

No Museu da Imagem e do Som, na cidade de Manaus, conheceu a obra pioneira, pouco conhecida em Portugal, de “Silvino Santos (1886-1970), o cineasta natural de Cernache do Bonjardim, no concelho da Sertã, que emigrou para o Brasil, quando era adolescente”. Dele refere: “Dedicou-se à fotografia e ao cinema, sendo que a sua atividade no cinema foi pioneira, na Amazónia, e como tal ficou conhecido por ‘O Cineasta da Selva’.”     

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Alfredo Nascimento, que foi diretor e proprietário do jornal Douro e Beira, começou, aos 17 anos de idade, como repórter e trabalhou na Europa, na África e nas Américas, tendo algumas das suas reportagens sido publicadas, praticamente, em todo o Mundo, que ele conhecia, pois vivera entre dois rios: o Távora, da sua infância, e o Amazonas, da sua paixão, que percorreu, por duas vezes, grande parte do trajeto em canoa, desde a nascente, ainda no Peru, a Belém do Pará, no Brasil.

A primeira viagem ocorreu entre agosto de 1979 e fevereiro de 1980. Dela fez memória textual e fotográfica no livro acima referido, sob o título “Da Nascente à Foz do Amazonas – Uma Viagem Fantástica”, sobre a aventura que viveu, em sete meses, pelo Amazonas. A ideia surgiu no Rio de Janeiro, ao decidir “arriscar tudo e seguir a realidade em corpo inteiro” (Leonor Xavier).

A segunda incursão pelo Amazonas decorreu quase 20 anos depois, durante quatro meses, em 1999. Dessa nova incursão resultou uma segunda edição do livro, com título ligeiramente alterado, “Amazonas – Viagem Fantástica”, e com mensagens algo diferentes da primeira edição, pois, como refere o editor, o Mundo tinha mudado e “a Amazónia é o lugar onde mais se percebe essa mudança”. Por isso, “muitas das denúncias, revelações e críticas”, apontadas antes, estavam “ultrapassadas, devido à maior consciência de que o homem, ao tornar-se agente destruidor do equilíbrio dos ecossistemas põe em risco a sua própria existência”. Todavia, como todos sabemos e como o dá a entender o novo viajante pelo Amazonas, “um pulmão do Mundo”, estão à vista os efeitos da agricultura intensiva, da desflorestação, da desmineralização e dos incêndios florestais.

Escreveu Alfredo Nascimento – e disse-mo – que, 20 anos depois da sua primeira viagem pelo rio, fora “tempo demasiado para os que travam, diariamente, uma verdadeira luta pela sobrevivência”, tendo alguns perdido o combate, “partindo para sempre”, sem ele lhes poder render o preito do agradecimento. Entre eles, “havia verdadeiros heróis, os quais cometeram atos de grande bravura e de uma dimensão para lá dos limites humanos, como foi o caso de Lázaro Ardilles”. O próprio Alfredo Nascimento, também exímio fotógrafo, foi resgatado “das garras do perigo” por eles e “envolvido numa onda de solidariedade” que o fez “acreditar que o ser humano é ilimitado na sua capacidade de entrega”. A introdução de novos textos e o aumento do número de gravuras na segunda edição fazem sobressair “uma ideia mais exata da exuberante fauna e flora da Amazónia” e constituem uma ajuda maior “na descoberta dos seus segredos, desde os seres microscópicos aos grandes quadrúpedes ou às frondosas árvores”. De um total aproximado de cem milhões, apenas estavam catalogados, em 1999, cerca de dois milhões de espécies. E, a nível humano, ainda na Cordilheira dos Andes – onde “nascem os primeiros fios de água do maior rio do Mundo” e se assiste “à luta que o habitante isolado trava com o puma”, o mais feroz dos animais daquela cadeia montanhosa –, há tempo e espaço para o convívio com os autóctones, “gente criativa e generosa”, descendente dos edificadores do Império Inca, sobrevivendo alguns dos seus marcos arquitetónicos, como Cusco, Sacsayhuaman e Machu Pichu.              

Da nascente (convencional e de onde partiu), diz o autor: “Na Cordilheira dos Andes, entre Cusco e Puno, situa-se o agrupamento montanhoso com o nome de Nó da Vilcanota, que, no idioma quéchua, quer dizer Willkamayu [‘Rio do Sol’, rio sagrado: há, ali, muitos edifícios dedicados ao Sol]. Das suas encostas escarpadas descem múltiplos fios de água, formando, a seguir, um riacho no sentido nascente-poente. A cerca de setecentos metros da sua origem, o pequeno curso de água divide-se em dias correntes opostas: a que vai para o Sul, com o nome de Pucarã, desagua no Lago Titicaca; a que segue no sentido Norte toma o nome do lugar onde nasce (Vilcanota) e irá desaguar no Oceano Atlântico.”

Do termo da viagem, na foz, diz o viajante vilapontense: “O verdadeiro final deste grandioso espetáculo está, pois, no delta de 50 quilómetros, por onde se esparrama esta massa líquida (um quinto de todo o volume de água doce do planeta). Naquele delta, é impossível definir os limites entre a água doce que brota do Amazonas, incontavelmente, e as águas do Oceano Atlântico. Há ocasiões em que o mar vence e penetra dentro do estuário, fazendo um estrondo catastrófico e outras [em que], o caudal amazónico subjuga o Oceano Atlântico e mantém-no afastado uns 150 quilómetros da costa.”

E, em termos mais subjetivos, sustenta: “Ali, ante aquela imensidão de água, já nada se parece [com aquele] riacho da Cordilheira dos Andes. Por muito que me tenha esforçado [por] descrever bem a minha experiência, nunca chegarei a aproximar-me da realidade que é o rio Amazonas. O Amazonas tem de viver-se e [de] sentir-se de perto, como se fosse um organismo vivo. […] Conhecer o Amazonas é uma experiência única, que acrescenta e enriquece.”  

Alfredo Nascimento, que, além de notas geográficas, deixa alguns apontamentos históricos e etnológicos, contou-me, depois da segunda viagem, obviamente, em consonância com o teor do livro, algumas peripécias por que passou, a nível das tempestades tropicais, encurralado entre montanhas acantiladas, da iminência da aproximação de feras ou de répteis venenosos, de alguma inamistosidade da parte de alguns autóctones, bem como de mostras de bom acolhimento e de boa cooperação, e das tiradas irregulares do grande rio.   

Tivemos longas conversas, sobretudo, após a segunda viagem amazónica. Contudo, o seu nome soou-me ao ouvido e impressionou-me o olhar, quando a Junta de Freguesia de Vila da Ponte me solicitou a leitura, na missa paroquial de um domingo, em 1980 (estava a gerir a paróquia, ainda havia poucos meses) de um texto de homenagem ao conterrâneo e de congratulação pela sua bem-sucedida aventura. E, num dos anos seguintes, o mesmo órgão autárquico prestou-lhe homenagem presencial, em sessão solene, no salão da Casa do Povo.      

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Foi, pois, com natural consternação que soube do seu falecimento em maio de 2016. A notícia foi-me dada por telefone, já eu residia em São João de Ver. E, a 2 de junho, o Caruspinus, jornal de Carapito, do concelho de Aguiar da Beira, noticiava que “um homem com 72 anos, natural de Vila da Ponte – Sernancelhe, residente em Aguiar da Beira, morreu no passado sábado [28 de maio], ao que tudo indica, depois de se ter sentido mal”.

Citando a TVI, sustentava que a vítima estava “sozinha na piscina municipal, quando tudo aconteceu, tendo sido encontrada inconsciente por um outro utente” e retirada, pouco depois, pelos Bombeiros Voluntários de Aguiar da Beira, em colaboração com os de Moimenta da Beira, “ainda com alguns sinais vitais”, mas acabando por “chegar já sem vida” ao hospital de Viseu, apesar de o transporte ter sido acompanhado de “manobras de reanimação”.

Segundo fonte do comando territorial da Guarda Nacional Republicana (GNR) da Guarda, a vítima “terá morrido de causas naturais”, não se sabendo, ainda, se estava sozinha “no interior das piscinas”. De acordo com informação do médico do hospital, que recebeu a ocorrência, a uma irmã da vítima, “as primeiras indicações apontavam para morte por afogamento”. E a família adiantou que, nos últimos meses, Alfredo Nascimento tinha problemas de saúde, mas apontou várias falhas ao funcionamento das piscinas.

A Câmara Municipal, que rejeitou a falta de vigilância na piscina, abriu um inquérito interno para apurar as circunstâncias em que decorreu o óbito, que foi participado ao Ministério Público (MP). Em dias subsequentes, no Portugal em Direto, da RTP 1, o então presidente da autarquia aguiarense clamava que a vítima era conhecida e frequentava, assiduamente, aquele equipamento municipal, mas que as piscinas tinham sempre funcionários de serviço. Todavia, questionado sobre que tipo de funcionários, falava de rececionista, de pessoal de limpeza, etc., mas não de qualquer monitor ou assistente de natação, muito menos de câmaras de vigilância.  

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E assim se finou o protagonista da “grande aventura em que as chances de sobrevivência eram de sete por cento, uma viagem de 7149 km de perigos, enfrentando o inferno verde e a morte”. Outros se lhe seguiram e seguirão – para lá dos investigadores e cultores de ciência (Botânica, Zoologia, Mineralogia, Geologia e Petrologia) –, como é o caso do leiriense José Luís Jorge, que se deixam encantar pela beleza da região amazónica e do gigante de água doce, em crescendo contínuo até se oscular com o Atlântico, ora de forma suave, ora de forma revolvente e voluptuosa.  

2025.02.01 – Louro de Carvalho

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