segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Caprichos, fragilidades e equívocos do poder político

 

A 11 de fevereiro, Pedro Passos Coelho, antigo primeiro-ministro (PM), depôs como testemunha, em tribunal, que sugerira, em maio de 2014, a Ricardo Salgado que negociasse com os credores do Grupo Espírito Santo (GES) uma “falência ordenada” desta entidade e contou que, à data da resolução do Banco Espírito Santo (BES), no verão de 2014, a recomendação fora dada depois de, em reunião com o banqueiro e com outros dois elementos da instituição, estes haverem solicitado que o Estado implementasse um programa de apoio ao GES.

“Essa reunião traduzia o pedido do Dr. Ricardo Salgado de ver o governo, não direi impor, mas dar orientações à Caixa Geral de Depósitos [CGD] e, eventualmente, se isso fosse necessário, dar algum aporte positivo sobre um plano de reestruturação junto de outros bancos [...] para um programa de apoio financeiro ao Grupo Espírito Santo”, afirmou Passos Coelho, ao testemunhar no julgamento do processo principal do colapso do BES/GES, cujo julgamento começou a 30 de outubro de 2024, no Tribunal Central Criminal de Lisboa.

O processo conta com 18 arguidos, incluindo o ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, de 80 anos e diagnosticado com a doença de Alzheimer, que responde por cerca de 60 crimes, incluindo um de associação criminosa e vários de corrupção ativa no setor privado e de burla qualificada. O Ministério Público (MP) estima que os atos alegadamente praticados, entre 2009 e 2014, pelos arguidos, ex-quadros do BES e de outras entidades do GES, tenham causado prejuízos de 11,8 mil milhões de euros ao banco e ao grupo.

Além de apoio financeiro, a administração do BES pretenderia fazer “uma troca de ativos”, de modo a gerir os que poderiam “estar a pressionar a saúde financeira do grupo”. E a reação de Passos Coelho foi, alegadamente, a de que “esse plano não tinha qualquer viabilidade”, pelo que sugerira, para evitar a falência desordenada do GES, que Ricardo Salgado reunisse “os seus credores mais relevantes” e negociasse “com eles uma falência ordenada”.

Passos Coelho recordou que, em abril de 2014, tivera uma primeira reunião com o ex-presidente do BES, que mostrara “desconforto com a forma como o governador do Banco de Portugal [BdP] lidava com o BES”. O BdP estava empenhado, no dizer do deponente, em garantir a substituição da administração do BES, sem ajudar à confusão entre a situação, que era razoavelmente conhecida, do GES e a do banco.

Adriano Squilacce, advogado se defesa do ex-banqueiro lamentou, na sessão do julgamento, não poder, dada a situação clínica, conferenciar com o seu cliente, para melhor exercer o contraditório sobre o sucedido nas duas reuniões relatadas pelo antigo governante, o que se traduz numa “violação das garantias de defesa” do arguido.

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Aludindo à circunstância de, em 15 de janeiro, o depoimento de Passos Coelho ter sido adiado, devido à greve dos oficiais de justiça, desta vez, a juíza disse ao antigo chefe do governo esperar “que se veja livre disto, hoje”. 

E o deponente ironizou: “Pois, passados dez anos. Mas talvez haja mais pessoas que devem estar mais incomodadas do que eu.”

Depois, garantiu ao procurador que fará “tudo para responder com a verdade ao tribunal” e revelou que reuniu com Ricardo Salgado, em 2012 e em 2013. “Uma vez ou outra, o Dr. Ricardo Salgado, como outros, solicitava audiência. E recebi-o. Tal como a outros presidentes de bancos”, explicou, vincando que “houve duas reuniões, em 2014, [em] abril e [em] maio”. Na primeira, Ricardo Salgado mostrou desconforto pela forma como o governador do BdP lidava com o BES e mostrou uma garantia bancária do Banco Angolano (BA), a provar a solidez do BES, mas insistia que “o governador estava a pressionar de mais sobre a situação do BES”. A pressão “era para substituir os membros da família por outros administradores”. E o então PM não foi, nem mandou, verificar a veracidade da garantia bancária.

Já sobre a segunda reunião, Passos Coelho disse que Ricardo Salgado, acompanhado de José Manuel Espírito Santo e de José Honório, “solicitou ajuda do governo para salvar o banco BES” e para, junto da CGD, “haver um plano de apoio financeiro ao GES”. O plano foi apresentado por José Honório, que pediu apoio para dar tempo ao grupo “para recuperar”. 

O antigo PM afirmou que “Salgado alegou que seria a altura do Estado ajudar o grupo de forma a retribuir o que o GES já tinha feito pelo país” e que o “crédito que propuseram seria de dois mil milhões de euros”. Porém, respondeu que o plano não teria intervenção do governo, porque “não faria sentido, nem seria razoável importar um risco para a CGD”. E, como o plano não tinha viabilidade, sugeriu ao Dr. Ricardo Salgado que negociasse com os credores uma falência ordenada, de forma a destruir menos valor e a não ter situação desordenada, no que não foi atendido. E disse ao tribunal que “tinha a real perceção de que o GES estava insolvente”.

Além disso, revelou que o governador do BdP lhe garantiu que “tinha uma equipa, dia e noite, a supervisionar o BES” e que achava que havia uma estratégia do BES para persuadir o supervisor de que era preciso dar mais folga no plano do BdP para salvar o BES. Ficou com a ideia de que o BdP “não tinha alargado o plafond ao BES, nem que houve qualquer exceção. Tem a ideia de Salgado lhe ter mostrado a carta com a garantia do Estado Angolano, mas não a leu. Porém, disse que só soube da garantia, mais tarde e só através do BdP, não tendo razão para desconfiar de que o que lhe transmitiam não era verdade. Penso que deveria ter estado mais atento!

Segundo o antigo PM, Cavaco Silva, Presidente da República ao tempo, escreveu ao homólogo de Angola, para efetivar a garantia, e o chefe do governo falou com o vice-presidente Manuel Vicente para o supervisor angolano diligenciar a “ver como se podia efetivar a garantia”. “Vim, mais tarde, a saber que a garantia era para o BESA [Banco Espírito Santo Angola] e não para o BES”, alegou.

Após as perguntas do MP, o deponente foi interpelado por Nuno Silva Vieira, advogado de mais de duas mil vítimas que são assistentes no processo. Questionado se as perdas do BES se relacionavam com questões de mercado ou de má gestão, respondeu: “Não me compete saber essas questões. Sei que havia um desequilíbrio nas contas e que o BdP ficou muito surpreendido. Parece-me muito claro que a exposição do BES ao GES agravou esse desequilíbrio. […] Convenci-me de que se tratava de um caso de polícia, não me cabe a mim determinar se era ou não era. Acho que o supervisor foi muito corajoso, porque, até ali, ninguém tinha enviado uma carta ao BES a dar ordens para o que quer que fosse. Aliás foi tão inédito que até o presidente do banco se queixou.”

Justificou o seu entendimento com o facto de o BdP, que tinha “uma equipa, dia e noite”, a acompanhar a situação, ter ficado surpreendido com o desequilíbrio da instituição.

À data, o então chefe do governo só “não equacionava” a “nacionalização do banco”, embora admitisse a “recapitalização pública, nos termos da lei”. “Na altura, para mim, era muito claro que seria pouco provável que os acionistas do BES solicitassem essa recapitalização pública, no sentido em que isso equivaleria a perderem o controlo do banco”, vincou, insistindo que, nos meses que antecederam a resolução, que originou o Novo Banco (NB), “era claro que o BES ia mudar de dono”, já que o GES “estava a enfrentar um processo de insolvência [...] não formal”.

No seu depoimento, o antigo PM relatou como, nas vésperas da decisão, tentou sensibilizar o então vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, para a necessidade de o BA responder com celeridade ao BdP sobre as relações entre o BES e o BESA. A subsistência de dúvidas, quanto à transferência de ativos entre as duas instituições obrigaria o regulador angolano a diligências que demorariam. “Era tempo que na altura não existia”, observou.

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Sobre a resolução do BES, o então PM disse ter sabido dela, dois dias depois de Portugal a ter comunicado a Bruxelas, e não ter conhecido a carta enviada pelo governo a Bruxelas, em que foi pedida autorização para ajudas públicas. Ora, o governo pediu autorização à Comissão Europeia para avançar com ajudas públicas, no âmbito da resolução do BES, a 30 de julho de 2014, mas o então primeiro-ministro garante que só teve conhecimento da decisão do BdP de aplicar a medida de resolução ao BES, dois dias depois, a 1 de agosto.

Questionado por Adriano Squilacce sobre o momento em que teve conhecimento da medida de resolução que acabou por ser aplicada ao BES, a 3 de agosto de 2014, Passos Coelho foi claro: “Recebi, no dia 1 de agosto, a comunicação da ministra das Finanças de que o governador do BdP [Carlos Costa] a tinha informado de que iria proceder à resolução do BES. A decisão foi-me comunicada, quando foi tomada.”

Porém, como recordou a defesa de Salgado, dois dias antes, o governo endereçou uma carta à Direcção-Geral da Concorrência a pedir autorização para avançar com ajudas públicas no âmbito da resolução do BES, que seriam utilizadas para capitalizar o Novo Banco (NB), que nasceu neste processo e que ficou com os ativos considerados saudáveis do banco falido. “Eu sei que só tive conhecimento nesse dia 1 de agosto, porque já fui confrontado com esta questão e, na altura, reuni a informação toda, portanto, sei isso. E, tanto quanto sei, a ministra das Finanças também”, respondeu Passos Coelho.

Questionado sobre se o pedido de autorização para auxílio público foi feito sem o conhecimento do então primeiro-ministro, Passos Coelho frisou: “Seguramente.” E, interrogado sobre qual foi o membro do governo responsável pelo envio da carta, disse não fazer ideia, mas que não foi ele. “Tem de perguntar à ministra das Finanças”, acrescentou o deponente.

Confrontado com alterações à legislação, dias antes da resolução (e antes da data em que disse que teve conhecimento da medida) e que visavam o processo de resolução bancária, respondeu: “Houve duas alterações à lei, ambas a pedido do governador do BdP, um pedido expresso, no sentido de clarificar dois aspetos de uma possível resolução que pudesse ser feita. Não havia segurança de que ela fosse feita, mas era um plano de contingência do BdP.”

E rejeitou que isto seja contraditório com a data em que foi informado da resolução.

O BdP, nessa semana, viveu com planos de contingência que envolviam a resolução. Houve um decreto-lei aprovado no Conselho de Ministros de quinta-feira, 31 de julho, em reunião presencial. A segunda alteração foi aprovada num Conselho de Ministros virtual, no domingo, a que o PM deu concordância. Todos os ministros assinaram digitalmente o documento. Tudo foi feito a pedido do BdP, dentro do plano de contingência em que o regulador trabalhava, caso fosse necessária a resolução, algo que o governador esperava que fosse evitado, segundo Passos Coelho.

O então PM, nos meses anteriores à resolução, foi uma das pessoas em cargos de poder que garantiram que a instituição era estável. Transmitiu-o, 23 dias antes da queda do BES, garantindo que o banco tinha “almofada financeira suficiente – mais do que suficiente – para acomodar toda a exposição ao GES. E não foi o único a fazê-lo. Também Aníbal Cavaco Silva, então Presidente da República, respondia, a 21 de julho de 2014, pela solidez da instituição. “O Banco de Portugal tem sido perentório, categórico, a afirmar que os portugueses podem confiar no BES”, disse.

Pedro Passos Coelho desvaloriza a asserção, recusando que possa ter servido de “balão de oxigénio” para o BES, como sugeriu um dos advogados dos assistentes do processo. E considerou que “o ex-Presidente da República dirá aquilo que entender”, pois não tem procuração para falar por ele. Contudo, admite que o que ele queria transmitir era uma indicação alicerçada em informação do regulador. E acrescentou: “Imagine o contrário. Se a uma pergunta do jornalista o primeiro-ministro ou o Presidente da República começasse a gaguejar e a dizer que cada um teria de ser prudente… O banco rebentava no dia seguinte.”

Passos Coelho recordou, ainda, os esforços junto do governo angolano da altura, para que este adotasse uma posição rápida, quanto ao BESA. Houve um pedido expresso do governador do BdP no sentido de o governo português sensibilizar o angolano para a importância de o governador angolano ser diligente. Porém, só mais tarde, percebeu que o que estava em causa era que o Estado angolano iria conceder uma garantia soberana para cobrir créditos duvidosos concedidos pelo BESA. Tal garantia foi concedida ao BESA, no final de 2013, quando a instituição corria o risco de enfrentar perdas na carteira de crédito, por incumprimento dos clientes. E o BES estaria exposto a estas perdas. Com esta garantia, cuja validade o BdP não pôs em causa, não seria necessário, segundo o regulador pedir ao BES que constituísse uma provisão, para fazer face a essa exposição, que seria de três mil milhões de euros.

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É deplorável que um PM haja tido a perceção de que o BES/GES era um caso de polícia e não tenha denunciado ao MP, para investigação, guardando a informação para agora. Por outro lado, para não beliscar a saúde de um banco, declara, explicitamente, que a instituição oferecia garantias de estabilidade. Bastava que declarasse que o governo não se pronunciava sobre a gestão bancária! Porém, foi preferível sacrificar centenas de acionistas e gerar milhares de lesados. O plano do GES era inexequível, mas sugeriu a falência “ordenada”, que sabia os credores não aceitariam e admitia a capitalização pública do BES. Que atitude tão equívoca!

Não retribuiu os benefícios do GES ao país com um apoio financeiro – que não podia ser dado, pois a CGD tinha sido capitalizada pela troika –, mas fê-lo com declarações abonatórias públicas.

Não se percebe que o chefe do governo concorde com alterações legislativas, a pedido do BdP, para efeitos de resolução bancária, sabendo que o BES estava pelas ruas da amargura e tenha conhecimento da resolução e da carta do seu governo para Bruxelas, só depois. Que chefe do governo era este, que não sabia de negócios de tamanha relevância para o Estado?

Ficou demostrado como o país fica em rota de colisão, quando é a banca a mandar.

Por fim, um reparo. A meritíssima juíza, ainda em sessão de audiência, manda desligar os microfones e pergunta ao deponente se é candidato a Presidente da República, ao este responde que “não”. Ora, como foi ajuramentado para dizer a verdade e só a verdade, não posso esperar votar nele, pois não pode faltar ao juramento. Poderia ter dito: “Prefiro não responder.”

Enfim, picardia abusiva da magistrada sobre uma vedeta política, agora fragilizada. O facto de as decisões definitivas dos tribunais prevalecerem sobre as das demais autoridades não legitima que o juiz use a audiência para questões laterais. E o tribunal tem gabinetes e corredores onde tais matérias podem ser abordadas.      

2025.02.17 – Louro de Carvalho

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