A
11 de fevereiro, Pedro Passos Coelho, antigo primeiro-ministro (PM), depôs como
testemunha, em tribunal, que sugerira, em maio de 2014, a Ricardo Salgado que
negociasse com os credores do Grupo Espírito Santo (GES) uma “falência
ordenada” desta entidade e contou que, à data da resolução do Banco Espírito
Santo (BES), no verão de 2014, a recomendação fora dada depois de, em reunião
com o banqueiro e com outros dois elementos da instituição, estes haverem
solicitado que o Estado implementasse um programa de apoio ao GES.
“Essa reunião traduzia o pedido do Dr.
Ricardo Salgado de ver o governo, não direi impor, mas dar orientações à Caixa
Geral de Depósitos [CGD] e, eventualmente, se isso fosse necessário, dar algum
aporte positivo sobre um plano de reestruturação junto de outros bancos [...]
para um programa de apoio financeiro ao Grupo Espírito Santo”, afirmou Passos
Coelho, ao testemunhar no julgamento do processo principal do colapso do
BES/GES, cujo julgamento
começou a 30 de outubro de 2024, no Tribunal Central Criminal de Lisboa.
O processo conta com 18 arguidos,
incluindo o ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, de 80 anos e diagnosticado
com a doença de Alzheimer, que responde por cerca de 60 crimes, incluindo um de
associação criminosa e vários de corrupção ativa no setor privado e de burla
qualificada. O Ministério Público (MP) estima que os atos
alegadamente praticados, entre 2009 e 2014, pelos arguidos, ex-quadros do BES e
de outras entidades do GES, tenham causado prejuízos de 11,8 mil milhões de
euros ao banco e ao grupo.
Além de apoio financeiro, a administração do BES pretenderia fazer “uma
troca de ativos”, de modo a gerir os que poderiam “estar a pressionar a saúde
financeira do grupo”. E a reação de Passos Coelho foi, alegadamente, a de que “esse
plano não tinha qualquer viabilidade”, pelo que sugerira, para evitar a
falência desordenada do GES, que Ricardo Salgado reunisse “os seus credores
mais relevantes” e negociasse “com eles uma falência ordenada”.
Passos
Coelho recordou que, em abril de 2014, tivera uma primeira reunião com o
ex-presidente do BES, que mostrara “desconforto com a forma como o governador
do Banco de Portugal [BdP] lidava com o BES”. O BdP estava empenhado, no dizer
do deponente, em garantir a substituição da administração do BES, sem ajudar à
confusão entre a situação, que era razoavelmente conhecida, do GES e a do
banco.
Adriano Squilacce, advogado se defesa
do ex-banqueiro lamentou, na sessão do julgamento, não poder, dada a situação
clínica, conferenciar com o seu cliente, para melhor exercer o contraditório
sobre o sucedido nas duas reuniões relatadas pelo antigo governante, o que se
traduz numa “violação das garantias de defesa” do arguido.
***
Aludindo à
circunstância de, em 15 de janeiro, o depoimento de Passos Coelho ter sido
adiado, devido à greve dos oficiais de justiça, desta vez, a juíza disse ao
antigo chefe do governo esperar “que se veja livre disto, hoje”.
E o
deponente ironizou: “Pois, passados dez anos. Mas talvez haja mais pessoas
que devem estar mais incomodadas do que eu.”
Depois,
garantiu ao procurador que fará “tudo para responder com a verdade ao tribunal”
e revelou que reuniu com Ricardo Salgado, em 2012 e em 2013. “Uma vez ou outra,
o Dr. Ricardo Salgado, como outros, solicitava audiência. E recebi-o. Tal como
a outros presidentes de bancos”, explicou, vincando que “houve duas reuniões,
em 2014, [em] abril e [em] maio”. Na primeira, Ricardo Salgado mostrou
desconforto pela forma como o governador do BdP lidava com o BES e mostrou uma
garantia bancária do Banco Angolano (BA), a provar a solidez do BES,
mas insistia que “o governador estava a pressionar de mais sobre a
situação do BES”. A pressão “era para substituir os membros da família por
outros administradores”. E o então PM não foi, nem mandou, verificar a veracidade
da garantia bancária.
Já sobre a
segunda reunião, Passos Coelho disse que Ricardo Salgado, acompanhado de José
Manuel Espírito Santo e de José Honório, “solicitou ajuda do governo para
salvar o banco BES” e para, junto da CGD, “haver um plano de apoio financeiro
ao GES”. O plano foi apresentado por José Honório, que pediu apoio para dar
tempo ao grupo “para recuperar”.
O antigo PM
afirmou que “Salgado alegou que seria a altura do Estado ajudar o grupo de
forma a retribuir o que o GES já tinha feito pelo país” e que o “crédito que
propuseram seria de dois mil milhões de euros”. Porém, respondeu que o plano
não teria intervenção do governo, porque “não faria sentido, nem seria razoável
importar um risco para a CGD”. E, como o plano não tinha viabilidade,
sugeriu ao Dr. Ricardo Salgado que negociasse com os credores uma falência
ordenada, de forma a destruir menos valor e a não ter situação desordenada, no
que não foi atendido. E disse ao tribunal que “tinha a real perceção de que o
GES estava insolvente”.
Além disso,
revelou que o governador do BdP lhe garantiu que “tinha uma equipa, dia e noite,
a supervisionar o BES” e que achava que havia uma estratégia do BES para
persuadir o supervisor de que era preciso dar mais folga no plano do BdP para
salvar o BES. Ficou com a ideia de que o BdP “não tinha alargado o plafond ao BES, nem que houve qualquer
exceção. Tem a ideia de Salgado lhe ter mostrado a carta com a garantia do
Estado Angolano, mas não a leu. Porém, disse que só soube da garantia, mais
tarde e só através do BdP, não tendo razão para desconfiar de que o que lhe
transmitiam não era verdade. Penso que deveria ter estado mais atento!
Segundo o
antigo PM, Cavaco Silva, Presidente da República ao tempo, escreveu ao homólogo
de Angola, para efetivar a garantia, e o chefe do governo falou com o
vice-presidente Manuel Vicente para o supervisor angolano diligenciar a “ver como
se podia efetivar a garantia”. “Vim, mais tarde, a saber que a garantia era
para o BESA [Banco Espírito Santo Angola] e não para o BES”, alegou.
Após as
perguntas do MP, o deponente foi interpelado por Nuno Silva Vieira, advogado de
mais de duas mil vítimas que são assistentes no processo. Questionado se as perdas
do BES se relacionavam com questões de mercado ou de má gestão, respondeu: “Não
me compete saber essas questões. Sei que havia um desequilíbrio nas contas
e que o BdP ficou muito surpreendido. Parece-me muito claro que a exposição
do BES ao GES agravou esse desequilíbrio. […] Convenci-me de que se tratava de
um caso de polícia, não me cabe a mim determinar se era ou não era. Acho que o
supervisor foi muito corajoso, porque, até ali, ninguém tinha enviado uma carta
ao BES a dar ordens para o que quer que fosse. Aliás foi tão inédito que até o
presidente do banco se queixou.”
Justificou o
seu entendimento com o facto de o BdP, que tinha “uma equipa, dia e noite”, a
acompanhar a situação, ter ficado surpreendido com o desequilíbrio da
instituição.
À data, o
então chefe do governo só “não equacionava” a “nacionalização do banco”, embora
admitisse a “recapitalização pública, nos termos da lei”. “Na altura, para mim,
era muito claro que seria pouco provável que os acionistas do BES solicitassem
essa recapitalização pública, no sentido em que isso equivaleria a perderem o
controlo do banco”, vincou, insistindo que, nos meses que antecederam a
resolução, que originou o Novo Banco (NB), “era claro que o BES ia mudar de
dono”, já que o GES “estava a enfrentar um processo de insolvência [...] não
formal”.
No seu depoimento,
o antigo PM relatou como, nas vésperas da decisão, tentou sensibilizar o então
vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, para a necessidade de o BA responder
com celeridade ao BdP sobre as relações entre o BES e o BESA. A subsistência de
dúvidas, quanto à transferência de ativos entre as duas instituições obrigaria
o regulador angolano a diligências que demorariam. “Era tempo que na altura não
existia”, observou.
***
Sobre
a resolução do BES, o então PM disse ter sabido dela, dois dias depois de
Portugal a ter comunicado a Bruxelas, e não ter conhecido a carta enviada pelo
governo a Bruxelas, em que foi pedida autorização para ajudas públicas. Ora, o governo
pediu autorização à Comissão Europeia para avançar com ajudas públicas, no
âmbito da resolução do BES, a 30 de julho de 2014, mas o então
primeiro-ministro garante que só teve conhecimento da decisão do BdP de aplicar
a medida de resolução ao BES, dois dias depois, a 1 de agosto.
Questionado
por Adriano Squilacce sobre o momento em que teve conhecimento da medida de
resolução que acabou por ser aplicada ao BES, a 3 de agosto de 2014, Passos
Coelho foi claro: “Recebi, no dia 1 de agosto, a comunicação da ministra das
Finanças de que o governador do BdP [Carlos Costa] a tinha informado de que
iria proceder à resolução do BES. A decisão foi-me comunicada, quando foi
tomada.”
Porém,
como recordou a defesa de Salgado, dois dias antes, o governo endereçou uma
carta à Direcção-Geral da Concorrência a pedir autorização para avançar com
ajudas públicas no âmbito da resolução do BES, que seriam utilizadas para
capitalizar o Novo Banco (NB), que nasceu neste processo e que ficou com os
ativos considerados saudáveis do banco falido. “Eu sei que só tive conhecimento
nesse dia 1 de agosto, porque já fui confrontado com esta questão e, na altura,
reuni a informação toda, portanto, sei isso. E, tanto quanto sei, a ministra
das Finanças também”, respondeu Passos Coelho.
Questionado
sobre se o pedido de autorização para auxílio público foi feito sem o
conhecimento do então primeiro-ministro, Passos Coelho frisou: “Seguramente.”
E, interrogado sobre qual foi o membro do governo responsável pelo envio da
carta, disse não fazer ideia, mas que não foi ele. “Tem de perguntar à ministra
das Finanças”, acrescentou o deponente.
Confrontado
com alterações à legislação, dias antes da resolução (e antes da data em que disse
que teve conhecimento da medida) e que visavam o processo de resolução bancária,
respondeu: “Houve duas alterações à lei, ambas a pedido do governador do BdP,
um pedido expresso, no sentido de clarificar dois aspetos de uma possível
resolução que pudesse ser feita. Não havia segurança de que ela fosse feita,
mas era um plano de contingência do BdP.”
E
rejeitou que isto seja contraditório com a data em que foi informado da
resolução.
O
BdP, nessa semana, viveu com planos de contingência que envolviam a resolução.
Houve um decreto-lei aprovado no Conselho de Ministros de quinta-feira, 31 de
julho, em reunião presencial. A segunda alteração foi aprovada num Conselho de
Ministros virtual, no domingo, a que o PM deu concordância. Todos os ministros
assinaram digitalmente o documento. Tudo foi feito a pedido do BdP, dentro do
plano de contingência em que o regulador trabalhava, caso fosse necessária a
resolução, algo que o governador esperava que fosse evitado, segundo Passos
Coelho.
O
então PM, nos meses anteriores à resolução, foi uma das pessoas em cargos de
poder que garantiram que a instituição era estável. Transmitiu-o, 23 dias antes
da queda do BES, garantindo que o banco tinha “almofada financeira suficiente –
mais do que suficiente – para acomodar toda a exposição ao GES. E não foi o
único a fazê-lo. Também Aníbal Cavaco Silva, então Presidente da República,
respondia, a 21 de julho de 2014, pela solidez da instituição. “O Banco de
Portugal tem sido perentório, categórico, a afirmar que os portugueses podem
confiar no BES”, disse.
Pedro
Passos Coelho desvaloriza a asserção, recusando que possa ter servido de “balão
de oxigénio” para o BES, como sugeriu um dos advogados dos assistentes do
processo. E considerou que “o ex-Presidente da República dirá aquilo que
entender”, pois não tem procuração para falar por ele. Contudo, admite que o
que ele queria transmitir era uma indicação alicerçada em informação do
regulador. E acrescentou: “Imagine o contrário. Se a uma pergunta do jornalista
o primeiro-ministro ou o Presidente da República começasse a gaguejar e a dizer
que cada um teria de ser prudente… O banco rebentava no dia seguinte.”
Passos
Coelho recordou, ainda, os esforços junto do governo angolano da altura, para
que este adotasse uma posição rápida, quanto ao BESA. Houve um pedido expresso
do governador do BdP no sentido de o governo português sensibilizar o angolano
para a importância de o governador angolano ser diligente. Porém, só mais
tarde, percebeu que o que estava em causa era que o Estado angolano iria
conceder uma garantia soberana para cobrir créditos duvidosos concedidos pelo
BESA. Tal garantia foi concedida ao BESA, no final de 2013, quando a
instituição corria o risco de enfrentar perdas na carteira de crédito, por
incumprimento dos clientes. E o BES estaria exposto a estas perdas. Com esta
garantia, cuja validade o BdP não pôs em causa, não seria necessário, segundo o
regulador pedir ao BES que constituísse uma provisão, para fazer face a essa
exposição, que seria de três mil milhões de euros.
***
É
deplorável que um PM haja tido a perceção de que o BES/GES era um caso de polícia e
não tenha denunciado ao MP, para investigação, guardando a informação para
agora. Por outro lado, para não beliscar a saúde de um banco, declara,
explicitamente, que a instituição oferecia garantias de estabilidade. Bastava
que declarasse que o governo não se pronunciava sobre a gestão bancária! Porém,
foi preferível sacrificar centenas de acionistas e gerar milhares de lesados. O
plano do GES era inexequível, mas sugeriu a falência “ordenada”, que sabia os
credores não aceitariam e admitia a capitalização pública do BES. Que atitude tão
equívoca!
Não
retribuiu os benefícios do GES ao país com um apoio financeiro – que não podia
ser dado, pois a CGD tinha sido capitalizada pela troika –, mas fê-lo com declarações abonatórias públicas.
Não
se percebe que o chefe do governo concorde com alterações legislativas, a pedido
do BdP, para efeitos de resolução bancária, sabendo que o BES estava pelas ruas
da amargura e tenha conhecimento da resolução e da carta do seu governo para
Bruxelas, só depois. Que chefe do governo era este, que não sabia de negócios
de tamanha relevância para o Estado?
Ficou
demostrado como o país fica em rota de colisão, quando é a banca a mandar.
Por
fim, um reparo. A meritíssima juíza, ainda em sessão de audiência, manda
desligar os microfones e pergunta ao deponente se é candidato a Presidente da República,
ao este responde que “não”. Ora, como foi ajuramentado para dizer a verdade e
só a verdade, não posso esperar votar nele, pois não pode faltar ao juramento.
Poderia ter dito: “Prefiro não responder.”
Enfim,
picardia abusiva da magistrada sobre uma vedeta política, agora fragilizada. O
facto de as decisões definitivas dos tribunais prevalecerem sobre as das demais
autoridades não legitima que o juiz use a audiência para questões laterais. E o
tribunal tem gabinetes e corredores onde tais matérias podem ser abordadas.
2025.02.17 – Louro de Carvalho
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