O grupo de trabalho “Megaprocessos e processo penal: carta para a celeridade
e melhor Justiça”, constituído por seis juízes e por um magistrado do
Ministério Público (MP) e criado, há pouco mais de um ano e meio, pelo Conselho
Superior da Magistratura (CSM) apresentou um relatório com propostas para
acelerar os megaprocessos.
Tais propostas sintetizam-se na redução da instrução ao
debate instrutório, onde só haverá lugar às diligências que o juiz decidir; na
redução dos prazos processuais; na limitação na arguição de
nulidades e irregularidades nos processos bem como dos incidentes de recusa e
limitação dos recursos, só permitindo recurso para o Supremo Tribunal (STJ), em
caso da condenação em pena de prisão superior a 12 anos; na permissão do recurso a inteligência artificial (IA) para elaborar acórdãos;
na criação do assessor virtual para juízes e de assessores técnicos privativos
para juízes; na fixação de taxas de justiça mais altas para os megaprocessos;
na criação de equipas especiais de funcionários judiciais; na distribuição das peças
processuais por módulos; e no apetrechamento de salas de audiência com
computadores, monitores e sistemas de som adequados.
Tais propostas, juntamente com outras conclusões, foram remetidas à
ministra da Justiça, aproveitando o facto de o governo estar a preparar
alterações de fundo ao processo penal.
O grupo de trabalho defende que as manobras dilatórias dos advogados podem
resultar em multas até 10 mil euros e em infrações disciplinares, do que os advogados
discordam.
O grupo, que inclui seis juízes e o procurador-geral adjunto e atualmente
diretor do Departamento Central e Investigação e Ação Penal (DCIAP), é
coordenado por Helena Susano, a magistrada responsável pelo julgamento do caso
BES/GES, mas sem nenhum advogado.
Ora, foi a proposta de aplicação de multas para os expedientes
dilatórios dos advogados dos arguidos – que podem chegar a montante superior a
10 mil euros e com participações disciplinares contra os advogados – que
levou, desde logo, a reações negativas de vários advogados e de Fernanda de
Almeida Pinheiro, bastonária da Ordem dos Advogados (OA), a criticar o
relatório, por considerar que as medidas propostas são “inaceitáveis” e uma
“tentativa intolerável de condicionar o trabalho do advogado”.
Em comunicado de 20 de fevereiro da OA, pode ler-se:
“A bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, considera
que o relatório “Carta para a Celeridade e Melhor Justiça”, publicado pelo
Conselho Superior da Magistratura (CSM), com o objetivo de promover a
celeridade e eficácia do processo penal, apresenta propostas inaceitáveis, que
colocam em causa os direitos, liberdades e garantias dos/as cidadãos/ãs, bem
como as prerrogativas e direitos dos/as advogados/as.
“Entre as medidas propostas […], encontra-se a possibilidade de os/as
próprios/as advogados/as poderem ser condenados/as em multas e alvo de
participação disciplinar, por praticarem atos que possam ser considerados, pelo
juiz do processo, como dilatórios.
“Isto configura uma tentativa intolerável de condicionar o trabalho do/a advogado/a,
que assim vê a sua independência e autonomia profissionais coartadas pelo
receio de poder estar a praticar um ato que possa ser sancionado, o que
representa uma clara violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva,
previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa [CRP].
“A possibilidade de uma restrição da instrução ao debate instrutório também
não é admissível para a OA. A instrução deve ser uma fase efetiva de
verificação da acusação, permitindo a produção de prova, sob pena de violação
dos princípios do contraditório e do direito de defesa e de igualdade
de armas no processo-crime.
“[…] São ainda propostas restrições no regime de recursos, especialmente
para o STJ e para o Tribunal Constitucional [TC]. Esta limitação de recursos
coloca em risco a garantia de uma decisão justa e imparcial, em processos onde
está em causa a liberdade das pessoas e onde deverá haver o máximo cuidado e
escrutínio possíveis.
“O relatório propõe também a revisão da possibilidade de recusa de depoimento
no caso de familiares próximos e cônjuge do arguido, impedindo que essas
testemunhas possam valer-se daquela prerrogativa de recusa, caso tenham
renunciado à mesma numa fase anterior do processo. Isto implica que vítimas de
violência doméstica, por exemplo, sejam obrigadas a depor, mesmo que não o
queiram fazer, podendo originar o reacendimento de um conflito que podia,
entretanto, até já estar pacificado, pondo em causa a própria paz familiar e
social.
“A Ordem dos Advogados lamenta que este grupo de trabalho tenha contado com
a presença de juízes e de um magistrado do MP, mas que não tenha sido integrado
por qualquer advogado/a, o que, certamente, teria contribuído para trazer um
maior equilíbrio às propostas apresentadas. A Advocacia não é nem nunca poderá
ser vista como um entrave à realização da Justiça, como parece resultar de
algumas das propostas apresentadas no relatório em questão.
“Como a Ordem dos Advogados sempre defendeu, a celeridade da justiça terá
de ser alcançada com reforço de meios humanos, e nunca com a limitação de
direitos, liberdades e garantias dos cidadãos/ãs, com obstáculos inconstitucionais
ao trabalho dos/as advogados/as, e com ataques à sua independência e autonomia
profissional.
“Numa altura em que o Conselho da Europa está a finalizar uma Convenção
Europeia para a proteção da profissão de advogado, criada para proteger advogados
perseguidos, não podemos admitir um regime legal que promova o medo na
Advocacia, perseguindo, financeiramente, a Advocacia, no exercício do seu
mandato, que se quer livre e independente, tal como previsto, desde logo, no
artigo 208° da Constituição.”
***
No programa “Justiça Cega”, da Rádio
Observador, Paulo de Sá e Cunha, presidente do Conselho Superior da OA,
defendeu que tais medidas “não surpreendem porque não são inovadoras”. E diz
que “há um pano de fundo que não é bom”, pois gostava de ter visto, no grupo de
trabalho, um advogado, porque os advogados fazem parte do sistema. Por outro lado, sobressai a ideia de que o importante é
combater as manobras dilatórias, quando não as há em muitos processos,
que são, na mesma, lentos. Estas são fruto de casos mediáticos com
protagonistas a chamarem muito as atenções. Porém, não se pode confundir uma
parte restrita com o todo. É sempre mau quando se fazem mudanças legislativas
restritas e exceções a alguns casos. “A maior parte dos advogados não pratica
expedientes dilatórios, por dá cá aquela palha. Essa ideia é uma ideia que
distorce a perspetiva da questão que se levanta”, concluiu o advogado.
Estas medidas levaram o advogado António Garcia Pereira, a
enviar carta aberta à OA – antes de Fernanda de Almeida Pinheiro tomar posição
pública sobre a matéria – defendendo que as propostas “põem em causa os mais
basilares e constitucionalmente consagrados princípios do processo justo e
equitativo e das garantias de defesa”, enquanto, significativamente,
não é apresentada pelo CSM uma única proposta de obrigação ou, sequer, de um
mínimo de compromisso dos juízes (desde logo, no cumprimento de prazos ou na
sua responsabilização, em caso de decisões grosseiramente ilegais), “na pior e
mais bafienta lógica de que, se Justiça não temos, tal apenas se deve aos próprios
cidadãos e aos advogados que os representam”, diz o advogado, exortando a
bastonária a mobilizar a classe “para este basilar combate democrático por uma
Justiça verdadeiramente justa”. E, dizendo que “o primeiro e principal dever
estatuário da OA foi, assim, definitivamente esquecido e enterrado por esta”,
concluiu: “Por mim, e creio que muitos colegas e muitos cidadãos me
acompanharão, não deixarei nunca de defender e de proclamar, parafraseando José
Carlos Ary dos Santos: ‘Advogado castrado’, não!”
José Costa Pinto, candidato a bastonário, questiona se “é possível
discutir uma justiça mais célere e melhor, sem a participação dos advogados”.
Analisando as propostas, a resposta é “não”, como escreveu, em artigo de
opinião publicado no Jornal Económico.
“No entanto, o que emerge deste documento é uma insistente preocupação em
punir alegadas manobras dilatórias – um rótulo, muitas vezes, atribuído ao legítimo
exercício do direito de defesa. Entre as medidas sugeridas, destacam-se multas
por atos considerados manifestamente infundados e até a possibilidade de
processos disciplinares contra advogados, a serem instaurados pela própria
Ordem. A mensagem subliminar é clara: os advogados passaram a ser vistos como
um entrave à celeridade da justiça. Como se não bastasse a crescente inversão
do processo penal, onde se perseguem advogados para investigar os seus
clientes, colocando em causa pilares essenciais da profissão – como o sigilo
profissional e a independência –, agora propõe-se que sejamos penalizados
simplesmente por defender quem tem direito a ser defendido”, concluiu o
advogado.
João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa e candidato a
bastonário, defende que “é bem patente que as medidas anunciadas pretendem
fazer imputar aos advogados tudo aquilo que corre mal na Justiça, os únicos
que, impreterivelmente, cumprem os prazos fixados por lei, sem que uma única
palavra seja proferida, quanto aos atropelos da lei. Atropelos
estes, cometidos, diariamente, por parte dos magistrados, nomeadamente, quando
somos confrontados com os atrasos escandalosos por não cumprirem os prazos
legalmente estabelecidos. Em suma, tais propostas mais não são do que uma
anunciada tentativa de aniquilar a Justiça, que se pretende que exista num
Estado de Direito Democrático”, atirou.
Também António Jaime Martins, candidato ao Conselho
Superior da OA, defende, em artigo de opinião publicado no Diário de Notícias, que “a morosidade judicial continua a
constituir um problema, por vezes, mais empolado do que real”. E sublinha que,
se há pendências acumuladas, falta de meios materiais e humanos e sucessivas
reformas falhadas que tardam em oferecer resultados concretos, “o caminho não
pode, nem deve ser o de restringir direitos fundamentais dos cidadãos, sejam os
da tutela jurisdicional efetiva, seja o próprio direito de defesa dos arguidos”. Com
efeito, no dizer do advogado, aceitar como normal, num Estado de Direito,
anquilosar e constranger o exercício do mandato forense pelos advogados com
sanções patrimoniais e/ou queixas disciplinares por, alegadamente, usarem
expedientes ‘dilatórios’ é, inexoravelmente, grave e deve obrigar-nos, enquanto
comunidade, a refletir, de forma muito séria, como, vividos 50 anos em
democracia, estamos dispostos a aceitar tão rude golpe na democracia”.
Telmo Semião, candidato ao Conselho Regional de Lisboa da OA, sustenta
que “não vale condenar os advogados em multas até 10 mil euros e
em participação disciplinar, quando atuam no exercício do mandato forense”,
pois “não vale limitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos,
pondo em causa o princípio constitucional do direito à tutela jurisdicional
efetiva, previsto no artigo 20.° da CRP”, como “ não vale responsabilizar,
exclusivamente, os arguidos e os seus mandatários pela lentidão na tramitação
dos processos judiciais”.
Vasco Pais Brandão, outro candidato ao mesmo órgão,
sublinha que “as recentes notícias sobre as propostas do CSM de
multar os advogados por litigância de má-fé, de restringir recursos para o Supremo
ou para o TC, constitu[em] mais um (grave) atentado ao
Estado de Direito e à nossa profissão, apenas permitido por efeito do infeliz
estado de permeabilidade e fragilidade que decorre da falta de relevância
das OA, da sua ausência nas matérias mais
importantes, do que se tornou um pequeno peão no tabuleiro de xadrez da Justiça”.
Já
Dirce Rente, sócia da Eversheds Sutherland, em entrevista ao ECO online, sustenta que os megaprocessos não trazem nada de bom à
celeridade da Justiça, mas não são os responsáveis por todo o mal do Mundo. Arrastam-se por anos e todos perdem: os
juízes, a braços com processos ingeríveis; os advogados, sem o dom de se
multiplicarem para estarem presentes em processos que têm marcações de
julgamento, quatro ou até cinco dias, por semana, já não falando do tempo necessário
para a preparação de julgamento, num processo desta dimensão; a sociedade, que
aloca meios e recursos para a gestão de processos cujos resultados se não
materializam em tempo útil, gerando sentimentos de ineficácia, de impunidade e
ineficiência; mas, sobretudo, as pessoas envolvidas: de um lado, os arguidos,
que são, bastas vezes, condenados em praça pública e dificilmente, mesmo quando
absolvidos, conseguem reverter os danos já provocados, nas suas vidas
profissionais e pessoais, e, do outro, as vítimas, que têm o direito de ver os
seus direitos afirmados, de encerrar o tema, de ver justiça feita.
Sobre a fase de instrução, diz ter memória de como a instrução
pode (e deve) funcionar, pelo que tem dificuldade em dizer-lhe que é uma fase
que deve deixar de existir. Continua a crer que submeter alguém a julgamento
criminal deve ser uma medida de última ratio e acredita na função do juiz de instrução
(JIC), enquanto juiz dos Direitos, Liberdades e Garantias. E, por isso, entende que a
instrução pode ter uma função muito importante de retificar situações onde,
manifestamente, se não justifica submeter determinada pessoa a julgamento,
podendo permitir aliviar os tribunais criminais, ao evitar que se aloquem meios
técnicos e humanos a processos que não têm cabimento numa fase de julgamento.
Assim, acredita que a fase de instrução tem lugar no processo penal, tal qual o
mesmo está configurado. Será apenas necessário, para que se lhe devolva
a dignidade e razão de existir, regressando às origens e aos fundamentos que
lhe estão subjacentes.
***
É, de facto,
necessário, mexer nos megaprocessos, mas com cautela. Não vá acontecer que uma
reforma demasiado ousada descaraterize a Justiça e o Estado de Direito Democrático
ou reforme tudo para que tudo ou quase tudo fique na mesma.
Assim, fixar
taxas muito altas, para eliminar manobras dilatórias, não impede que os ricos
as usem, já que têm dinheiro para pagar; multar ou penalizar disciplinarmente o
advogado vai contra a liberdade de um dos relevantes intervenientes na Justiça,
tão importante como a autonomia do MP e como a independência dos juízes; e
reduzir ao mínimo a instrução pode ter efeito perverso, por não retificar as
conclusões do inquérito (muitas vezes, demasiado longo, perdido em milhares de
páginas e pleno de contradições), indo sobrecarregar os juízos criminais.
Talvez seja
de evitar os megaprocessos ou de os desdobrar e ir preparando processos para
julgamento, à medida que seja possível ficar concluído o inquérito sobre determinados
crimes. E, quanto ao mais, eventuais expedientes nitidamente dilatórios devem,
celeremente, ser julgados e punidos no âmbito do respetivo processo, não em
sede disciplinar.
2024.02.24 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário