quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Operação Tutti Frutti: 60 acusados, mas ilibados os políticos de proa

 

Foram precisos oito anos para que o processo da Operação “Tutti Frutti” tenha dado frutos. Efetivamente, a 4 de fevereiro, segundo avançou a CNN Portugal e confirmou o ECO, o Ministério Público (MP) acusou 60 pessoas, entre as quais autarcas das mais importantes juntas de freguesia de Lisboa, funcionários e empresários. Em causa estão, segundo a acusação, crimes de branqueamento de capitais, de corrupção, de prevaricação, de abuso de poder, de tráfico de influência e de participação económica em negócio.

Na operação “Tutti Frutti”, foram investigados, desde 2016, alegados favorecimentos a militantes do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD) – sendo a maioria do PSD –, através de avenças e de contratos públicos.  

O MP acusou, formalmente, Luís Newton e Ângelo Pereira, respetivamente, líderes comissão da concelhia e comissão distrital de Lisboa do PSD, tendo deixado de fora o ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e ex-ministro das Finanças, Fernando Medina (suspeito de corrupção passiva), e o seu vice-presidente e ex-ministro do Ambiente e Ação Climática, Duarte Cordeiro (indiciado de prevaricação), cujas suspeitas, enquanto responsáveis da Câmara Municipal de Lisboa, foram arquivadas.

“Da prova recolhida nos autos, não é possível extrair que Fernando Medina, acedendo às insistências de Sérgio Azevedo e acabando por resolver a situação de encontro aos [aliás, devia estar escrito: “…ao encontro dos…”] interesses da XV – Associação Amigos do Rugby de Belém que lhe chegaram representados por este, o tivesse feito com o propósito inequívoco de os beneficiar por via de uma atuação conscientemente contrária ao direito”, diz a acusação. “A factualidade descrita revela comportamentos, incluindo de Fernando Medina, que se desviam e atropelam as normas que enquadram o exercício das funções públicas, e, por isso, ilícitos, reveladora de um modo de gestão e funcionamento da res publica merecedor de um juízo de censura. Porém, não sendo o crime em causa punido a título de negligência, mas de dolo, in casu até específico, sendo evidente que existia uma vontade de todos de que o resultado ocorresse, como ocorreu, não existe, contudo, a prova de uma intenção de desvirtuar as normas jurídicas e afastá-las para benefício dos mesmos”, acrescenta o despacho, de 1325 páginas, do MP.

Fernando Medina prestou declarações, dizendo “que não teve intervenção no procedimento conducente à atribuição do apoio financeiro, o qual competia aos serviços da Câmara Municipal de Lisboa, ao vereador responsável pelo pelouro do desporto e ao executivo camarário, não tendo sequer estado presente na reunião de executivo na qual foi deliberada a respetiva atribuição”, dizem os magistrados. “Referiu, ainda, que agendou a reunião a pedido de Sérgio Azevedo, desconhecendo os interesses que o mesmo pudesse ter na atividade da XV, e que, nessa reunião ouviu os interessados, na presença do vereador do Desporto, e que o que daí saiu foi que a Câmara Municipal de Lisboa apoiaria a construção do campo, o que o próprio, intimamente, apenas admitiria na circunstância de estarem reunidos os pressupostos legais para o efeito. Negou ter comprometido o município com a sua atuação e ter interferido no procedimento, acrescentando que o município apoia financeiramente outros clubes na cidade e que, inclusivamente, Lisboa preparava-se para ser Cidade Europeia do Desporto, considerando que o apoio concedido era, também por isso, de interesse para a cidade”, explicita o despacho do MP.

Entre os arguidos acusados, estão o presidente da Junta de Freguesia da Estrela, Luís Newton, o deputado do PSD Carlos Eduardo Reis, e o ex-deputado social-democrata Sérgio Azevedo. Em autoria estão em causa três crimes de corrupção passiva (um agravado), dois de corrupção ativa, sete de branqueamento, dois de tráfico de influência. Além dos crimes imputados aos arguidos, o MP pediu a perda de mandato para os que foram eleitos para cargos autárquicos.

“Os arguidos Sérgio Azevedo, Rodrigo Gonçalves, Vasco Morgado, Nuno Firmo, Luís Newton, Ângelo Pereira, Fernando Braamcamp, Ameetkumar Subhaschandra, Patrícia Brito Leitão, Rodolfo de Castro Pimenta, Ana Sofia Oliveira Dias, Inês de Drummond e José Guilherme Aguiar praticaram, alegadamente, os factos de que vêm acusados no exercício de mandato autárquico, valendo-se dos respetivos cargos, para satisfazerem interesses de natureza privada, em prejuízo do interesse público, em grave violação dos deveres inerentes às suas funções de autarcas”, escreve o MP, nas 1325 páginas do seu despacho.

O Ministério Público (MP) pede, ainda, que seja declarada, em caso de condenação, a perda de mandato e a futura inelegibilidade, para cargos políticos de natureza eletiva, de 13 autarcas, entre presidentes, ex-presidentes e membros de executivos de juntas de freguesia e de câmaras municipais. “Os arguidos […] praticaram os factos de que vêm acusados no exercício de mandato autárquico, valendo-se dos respetivos cargos, para satisfazer interesses de natureza privada, em prejuízo do interesse público, em grave violação dos deveres inerentes às suas funções de autarcas”, lê-se na acusação.

Ao mesmo tempo, o MP quer recuperar para o Estado mais de 580 mil euros, resultantes da prática dos crimes imputados a 29 dos acusados. “Os arguidos obtiveram vantagens patrimoniais indevidas, para si e para terceiros, à custa do erário público, diretamente resultantes da prática dos crimes […]. Tais quantias deverão reverter a favor do Estado”, defende o MP, na acusação, no ponto sobre perda das vantagens do crime, no âmbito do qual quer ver restituídos aos cofres do Estado 588135,10 euros, exigidos a 29 arguidos particulares e empresas”.

Além disso, o MP quer também ver declarados perdidas a favor do Estado as quantias apreendidas a três arguidos: dois mil euros apreendidos a Nuno Firmo, 1640 euros a Pedro Rodrigues, jurista, militante do PSD e ex-presidente da JSD, e 6680 euros a Paulo Quadrado, militante do PSD, ex-membro do seu Conselho Nacional, ex-presidente da Junta de Freguesia da Graça e assessor da vereação PSD na CML e do grupo municipal do partido na Assembleia Municipal de Lisboa.

***

Fernando Medina anunciou, a 29 de julho de 2024, em comunicado, que o MP solicitou a sua audição na qualidade de arguido no processo “Tutti Frutti”, acrescentando, na altura, ter solicitado à Assembleia da República (AR) o levantamento da imunidade parlamentar, “com a maior brevidade possível”, para ter, “pela primeira vez, em tantos anos, a oportunidade de esclarecer, em sede própria, as dúvidas que o MP tem”. No mesmo comunicado, esclareceu ser suspeito da “prática de um alegado crime de prevaricação”.

Em causa está a atribuição alegadamente indevida, “por mim, enquanto Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, em 23 de março de 2017, de um apoio financeiro no valor de duzentos mil euros – a realizar em dois anos – à XV – Associação Amigos do Rugby de Belém, no âmbito do apoio ao associativismo desportivo”, explicou então Fernando Medina. O deputado disse ter visto, “com perplexidade, que a fundamentação do MP assenta num erro grosseiro e inexplicável”, recusando qualquer ilegalidade. E salientou que já decorreram mais de sete anos, desde o início do inquérito, e que se manifestara, há muito tempo, disponível para prestar declarações.

Entretanto, o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, lamenta demora “preocupante”. Assim, questionado pelo facto de as imputações relativas a Fernando Medina terem sido arquivadas, salientou que é “boa notícia”, e criticou que “as pessoas que tiveram o seu nome na praça pública envolvido neste caso tivessem de esperar oito a nove anos pelo arquivamento do processo”. “Isso, sim, é preocupante e deve-nos fazer pensar a todos. Porque estes processos têm impacto na vida das pessoas e, por isso, os processos têm de ser mais céleres, para protegermos a nossa democracia e o Estado de direito. Portanto, a notícia boa é a do arquivamento, [ao passo que] a notícia má é [a] do tempo que demorou até ao arquivamento”, concretizou o líder socialista, em declarações aos jornalistas, transmitidas pela RTP3.

Duarte Cordeiro, igualmente ilibado neste processo, recorreu às redes sociais, para assinalar que fica “finalmente livre”, após “anos a lidar com especulação e suspeita”. “Ficou clarificado o que sempre disse. Não há nada que surpreenda, no que me diz respeito, e só lamento o tempo que demoram estes processos a concluírem as suas investigações. Relembro que nunca fui sequer ouvido”, escreveu no Instagram.

Fernando Medina, a 4 de fevereiro, considerou natural a decisão do MP de arquivar as suspeitas que lhe foram imputadas, mas lamentou oito anos de processo com “calúnias”. “Recebi, hoje, a notícia de que o processo que me envolvia no caso Tutti Frutti foi arquivado, na sua totalidade, na parte que me diz respeito. Recebi esta notícia com satisfação, mas também com naturalidade”, declarou o ex-ministro das Finanças e atual deputado do PS, mas completando: “Foram passadas nas televisões 48 horas ininterruptas de notícias que envolveram o meu nome, com calúnias, [com] insinuações, com acusações, com maldade muitas vezes.”

Segundo o ex-ministro e ex-autarca, “procurou criar-se, na opinião pública, durante todos estes anos, uma imagem de mim muito diferente da realidade”. “Lamento que oito anos foi o tempo que a justiça demorou. Apenas há três meses, fui constituído arguido e, pela primeira vez, fui ouvido neste processo. Três meses depois de ser ouvido, o processo foi arquivado pelo próprio Ministério Público”, assinalou.

É de recordar que a Procuradora-Geral da República (PGR), em junho de 2023, criou a superequipa de cinco magistrados do MP e de cinco inspetores da Polícia Judiciária (PJ), para concluir a investigação da Operação Tutti-Frutti, tendo ficado todos em regime de exclusividade.

Só em novembro de 2024, oito anos depois da investigação ter começado (em 2016), o socialista Fernando Medina foi constituído arguido por suspeitas de prevaricação.

Em declarações à SIC, o advogado Paulo de Sá e Cunha adiantou, então, que não foram apresentadas provas e que as declarações em sede de inquérito foram feitas por Medina, a pedido do próprio. “Quando há suspeitas sobre determinada pessoa, necessariamente tem de ser constituída como arguido. E pode também remeter-se ao silêncio, se assim o entender. O estatuto de arguido é também para exercer os direitos de defesa”, disse o advogado, adiantando que este processo é de 2016 e que “tem uma duração algo inusitada”.

O facto de ter sido constituído arguido só então, é “porque a investigação entende quando deve ser constituído arguido”. Relativizando o facto de ter sido sujeito à medida de coação de termo de identidade e residência (TIR), disse que é “a mais leve de todas, é um mero formalismo”. Porém, esperando que o inquérito terminasse com o despacho de arquivamento, deixou o recado: “Este processo investiga vários factos e vários agentes políticos da órbita das autarquias. […] Desde setembro, nada de novo se passou.”

Segundo o advogado, “o que está em causa é um ato do executivo camarário e não do Dr. Fernando Medina, que nem tomou parte nessa deliberação porque nem estava em Portugal”.

***

É mais um caso de justiça-espetáculo, a contento da ambição ribaltista de elementos do MP. De facto, num processo em que foram investigadas tantas pessoas e empresas, o que veio para as pantalhas foram as suspeitas de dois governantes e ex-autarcas. Mais: a partir do momento em que recaem suspeitas de ilícito criminal sobre um cidadão, deve ser constituído arguido, para se poder defender ou remeter-se ao silêncio, e ser ouvido, logo que possível. Ora, um destes cidadãos foi constituído arguido, depois de ter sido julgado na praça pública, e ouvido tarde e a instâncias suas; o outro nem sequer foi constituído arguido, muito menos ouvido.  

Depois, o MP não é promotor nem juiz da moralidade, pelo que é de questionar porque, tendo deixado cair a indiciação de crimes de Fernando Medina, mantém, no despacho de acusação, o segmento discursivo que atribui ao ex-presidente da CML comportamentos que “atropelam as normas que enquadram o exercício das funções públicas”. Ora, não havendo provas de ilícito criminal, de ilícito administrativo (cujo escrutínio cabe à justiça administrativa) ou de dano civil (cujo escrutínio cabe ao juízo cível), imputa-se ao cidadão o quê? É caso para dizer que o MP tem mau perder e tem dificuldade em renunciar à conduta persecutória, sacrificando o bom nome e o sucesso profissional e social de alguns cidadãos. E, por fim, estala a castanha na boca!

2025.02.05 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário