domingo, 16 de fevereiro de 2025

Degradação da linguagem e das atitudes na Assembleia da República

 

A Assembleia da República (AR) é um dos órgãos de soberania do nosso Estado de Direito Democrático e o mais representativo, seja por acolher os representantes das principais tendências políticas, seja pelas superiores competências legislativas e fiscalizadoras que a Constituição da República Portuguesa (CRP) lhe confere, seja por não ter responsabilidade “política” perante nenhum outro órgão de soberania (apenas presta contas perante o eleitorado, que pode, através de eleições, alterar a correlação de forças partidárias parlamentares).  

Para ser credível e continuar a ter credibilidade perante o povo, que detém o poder político (a que não renuncia, apenas delega o seu exercício nos seus representantes), teve desfrutar de autoridade política e de autoridade moral, que não devem ser quebradas.

Ao longo de 49 anos de democracia parlamentar (representativa), tem havido alguns deslizes vocabulares e gestuais que, regra geral, são ultrapassados por chamada de atenção do presidente da AR e/ou pelo uso da palavra para defesa da honra pessoal ou da respetiva bancada parlamentar.

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Não tem sido assim nos últimos tempos. E o caso mais recente ocorreu a 13 de fevereiro.

A deputada Diva Ribeiro, do Chega, eleita pelo círculo de Beja, usou da palavra, no plenário, para lamentar que a socialista Ana Sofia Antunes, invisual, “só intervenha em assuntos que envolvem a deficiência”. Algumas bancadas parlamentares falam de “ofensas” para lá do microfone e Hugo Soares, do Partido Social Democrata (PSD), diz que “apartes ultrapassam o bom senso”, na AR.

Ana Sofia Antunes, deputada do Partido Socialista (PS eleita) eleita pelo círculo de Leiria, foi secretária de Estado da Inclusão para Pessoas com Deficiência, entre 2015 e 2024. E poucas pessoas sabiam da sua situação de invisual, tão discreta que foi.

A bancada parlamentar do Chega foi acusada de “ofensas” e de “bullying” à deputada socialista, que falava, no hemiciclo, sobre apoios a pessoas com deficiência, quando se seguiu a intervenção de Diva Ribeiro, a afirmar, com críticas e reações incrédulas: “É curioso que a deputada Ana Antunes só consiga intervir em assuntos que envolvem, infelizmente, a deficiência.

Face a tais declarações, Marina Gonçalves, vice-líder da bancada do PS, pediu a palavra para criticar o que entendeu como “ofensa à honra da bancada parlamentar”. “Aqui, nesta bancada, somos todos iguais, falamos por igual sobre qualquer tema e, por isso, sim, isto é uma defesa da honra da bancada”, atirou.

Em reação, Rita Matias afirmou que a bancada do Chega “não recebe lições de moral do PS, em nenhuma matéria”. “Nós temos cinco anos, os senhores têm 50 anos de roubos, [de] corrupção, [de] escândalos de abusos sexuais de menores. A diferença é que nós limpamos mesmo a nossa bancada, enquanto os senhores branqueiam. Lamento que não tenha conseguido perceber a intervenção da nossa deputada Diva Ribeiro”, retorquiu.  

Também Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda (BE), pediu a palavra, para denunciar “bullying” à deputada invisual, por parte de deputados do Chega, que se ouviram para lá dos microfones. “Desta bancada ouviu-se bem e espero que fique registado o “bullying”, relativamente a uma pessoa com deficiência, e as ofensas que foram feitas por parte da bancada do Chega”, afirmou a bloquista, que espera que, no momento de discussão de projetos sobre apoio a pessoas com deficiência, o partido erga a “bandeira da vergonha”.

Hugo Soares, líder da bancada do PSD, concordou com Joana Mortágua e afirmou que “o que está a acontecer nos apartes regimentais ultrapassa o bom senso, a educação, a urbanidade e a dignidade, que a câmara merece e que o país merece[m]”.

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O debate era sobre estudantes com necessidades educativas específicas, mas os insultos vindos da bancada do Chega fizeram descarrilar o plenário. “A discussão estava a decorrer dentro da normalidade, com picardias que são mais ou menos naturais de um debate político e que, em condições normais, são aceitáveis”, declarou ao Expresso Ana Sofia Antunes

A deputada do PS questionou Diva Ribeiro sobre o projeto que o partido apresentou. Porém, em vez de responder às questões, a deputada do Chega passou ao ataque, atirando: “É curioso também que a deputada Ana Sofia Antunes só consiga intervir em assuntos que envolvem, infelizmente, a deficiência.”

A reação foi instantânea, mas, apesar de a onda de contestações nas bancadas ser audível nas gravações, os microfones não captaram o teor dos apartes da bancada do Chega. “Aberração”, “isto não é uma esquina” e “drogada” foram algumas das palavras gritadas. “A vozearia é constante. No meio da vozearia, há vários insultos, entre eles, o de aberração, que nós nem percebemos a qual das deputadas do Partido Socialista da primeira fila é que se dirigem. Quando a deputada Lia Ferreira [que apresentou o projeto do PS] acabou de falar, Rita Matias continuava a dizer ‘vamos ver se te põem a falar para o mês que vem’”, relatou Joana Mortágua.

O PS pediu a defesa da honra e fez saber que levará o tema à Conferência de Líderes. Ainda no plenário, os outros partidos, nomeadamente, o PSD e o BE, solidarizaram-se. “Num momento em que estamos a discutir projetos de apoio a pessoas com deficiência, a única bandeira que aquela bancada tem a erguer é a bandeira da vergonha”, acusou Joana Mortágua. “Muito mais do que aquilo que se continua a dizer com o microfone aberto, aquilo que está a acontecer, nos apartes regimentais, ultrapassa o bom senso, a educação, a urbanidade e a dignidade que a Câmara exige e o país merece[m]”, acompanhou Hugo Soares, pelo PSD.

Para Ana Sofia Antunes, esta foi “caraterização redutora e diminuidora” de si, enquanto pessoa com deficiência. Porém, a intervenção de Diva Ribeiro é também “objetivamente mentira”. A socialista integrou o governo de António Costa, primeiro com a pasta da inclusão das pessoas com deficiência e, depois, com a tutela de todos os assuntos de ação social. Contudo, na AR, tem estado dedicada a outros temas, sobretudo ligados à segurança e às migrações. “Foi a primeira intervenção que fiz, em onze meses de parlamento, sobre este assunto. Mas isso não é o mais importante. […] Ali não me represento só a mim. Ali represento um conjunto de pessoas muito vasto, que são as pessoas com deficiência, em relação as quais não posso permitir que faltas de respeito e desconsiderações destas passem. Porque passam uma vez e começam a passar sempre e começa a achar-se que é o normal”, vincou, lamentando que, “em nenhum momento, houve um pedido de desculpas por parte da bancada do Chega”.

Entre os membros do Chega mais criticados, está Rita Matias. “O que me chocou não foram os insultos, porque esses são bastante recorrentes e já é costume. […] O que me chocou foi que a deputada Ana Sofia Antunes estava a pedir ao presidente [da Assembleia] a defesa da honra e, como ela estava com a mão levantada há algum tempo, Rita Matias estava na bancada do Chega a gozar, a fazer-lhe gestos para ela baixar a mão, sabendo perfeitamente que ela não consegue perceber que se estão a dirigir a ela, muito menos com gestos”, afirmou Joana Mortágua, frisando que os apartes mais graves do que o dito ao microfone e acusando a bancada do Chega e, mais especificamente, Rita Matias de “bullying”.

A conduta da deputada do Chega eleita por Setúbal é também alvo de críticas pelo PS. Marina Gonçalves (que fez a defesa da honra da bancada, em plenário) considerou que o “mais grave” foi que, a seguir à defesa da honra, Rita Matias tenha feito uma intervenção “ainda mais danosa, de maior difamação e injúria”.

“A vossa bancada, quando quer falar de racismo, chamava a deputada Romualda Fernandes [eleita para a AR em 2019]. Isso parece-me profundamente racista, porque, afinal. era apenas em função de ser negra. Quando quer falar de diferentes orientações sexuais chama as pessoas LGBT”, afirmou a deputada do partido de André Ventura, tendo sido neste contexto que sustentou que o Chega não leva lições de moral do PS, em nenhuma matéria, como já foi referido. 

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O comportamento do Chega não surpreende. “Já presenciei muita coisa, dirigida mais às mulheres”, atesta Ana Sofia Antunes, observando que os comportamentos em on em off são um “bullying permanente para quem ali está”, pelo que “é hora de alguém fazer alguma coisa”, pois “não podemos continuar a fechar os olhos e um dia arrependermo-nos disto”.

E é o que o seu partido vai fazer. “Infelizmente não é nada de novo. Se calhar é de ainda maior gravidade porque se está a ultrapassar os limites e por isso é que queremos levar a questão à Conferência de Líderes”, afirma Marina Gonçalves, do PS, para quem o episódio “é um desrespeito pelo Regimento, pelo Estatuto dos Deputados e pelas pessoas que ali estão”.

“O Chega está desgovernado dentro do Parlamento. Faz o que quer, diz o que quer, ofende quem quer, de acordo com uma lógica de que apenas está a usar a sua liberdade de expressão. Mas não é liberdade de expressão ofender pessoas ou categorizar pessoas, em razão de uma caraterística que a pessoa tem”, reforça Ana Sofia Antunes.

Marina Gonçalves diz que a liberdade de expressão “tem sido o álibi” para não se responsabilizar a presidência da AR por aquele que é um papel do presidente da AR ou de quem está em funções, como foi o caso, liderando a mesa o vice-presidente Rodrigo Saraiva, da Iniciativa Liberal (IL).

Porém, as críticas não são novas e acumulam-se os episódios em que o debate é interrompido para sucessivas defesas da honra. “Este histórico todo faz com que a mesa não tenha uma posição muito mais assertiva de combate e de responsabilização por quem profere este tipo de insultos”, acrescenta a socialista, sustentando que precisamos de uma AR e de uma presidência da AR que se responsabilize e que tire consequências do que não é liberdade de expressão, mas ofensa aos deputados e às “pessoas que estão ali a fazer o seu trabalho”.

A 21 de maio de 2024, em entrevista à Rádio Observador, Isabel Moreira, deputada do PS, acusava os deputados do Chega de criarem “um quotidiano infernal, ingerível” para as mulheres.

A deputada falava de “uma ofensa e uma injúria permanente” dirigida às mulheres, quando estas passam pela bancada do Chega para falarem no plenário. “Já ouvi coisas como ‘vaca’, mugidos, há nomes que, normalmente, se chamam a deputadas que são, assumidamente, lésbicas e que eu não vou repetir aqui em voz alta. […] “Já ouvi, por exemplo, a uma deputada negra, ao meio-dia dizerem: ‘boa noite’, senhora deputada, que é uma coisa normal de se dizer ao meio-dia uma pessoa negra”, contou Isabel Moreira, frisando que os insultos são proferidos com o microfone ligado, o que revela que esses/as deputados/as “têm absoluta noção do que é irresponsabilidade”.

Não obstante, a deputada observa que eles e elas sabem que são irresponsáveis criminalmente, tanto assim que “as piores ofensas, intimidações, etc., que fazem, fazem-nas com o microfone fechado, para não serem ouvidos e para serem só ouvidos pela pessoa que estão a injuriar, quase sempre mulheres, ou nos corredores, quando estamos sozinhas e ninguém está a ouvir”.

A 11 julho de 2024, Margarida Coutinho, do Expresso, dava a palavra a parlamentares que sustentavam que esta sessão legislativa trouxera renovação às bancadas parlamentares, mas que a inexperiência não justificava as ofensas. “Ofender alguém de forma racista ou gozar com as pessoas em função da sua condição corporal ou da sua altura é má educação. Não é uma questão de experiência. Temos deputados que estão, pela primeira vez, a exercer o seu mandato e que são pessoas educadíssimas e esforçadas”, defendia Inês Sousa Real, enquanto Joana Mortágua dizia que o plenário é um sítio com muito pior ambiente do que antes: menos democrático, mais barulhento, menos sério, “menos focado no conteúdo e mais focado no espetáculo”.

A esquerda é unânime, quanto à existência de “degradação parlamentar”. “Noto uma falta de cultura democrática, de respeito pelo outro. […] Os apartes sempre fizeram parte das discussões, mas eram feitos com elegância. Agora o nível baixou muito”, explica Edite Estrela, do PS, para quem uma das preocupações é o “mau exemplo” dado pela AR: “Se estão jovens a assistir [ao debate] e veem usar aquele tipo de linguagem, de comportamento, de falta de respeito, só podem achar que também podem fazer aquilo nas escolas.”

Edite Estrela fala ainda do fenómeno de “contaminação” por parte das restantes bancadas.

Além disso, esta “degradação” traz consequências para o trabalho de criação e de alteração de leis. “Uma coisa seria fazermos um debate apaixonado, do ponto de vista ideológico, outra coisa diferente é procurar apenas o barulho e o soundbite mais fácil para as redes sociais. Perdemos imenso tempo com os apartes, com a interrupção dos trabalhos, por força do ruído, ao invés de encontrar soluções e trazer propostas”, defendeu Inês Sousa Real.

“Quando alguém grita, o outro tem de gritar ainda mais. […] “Noutro dia, só faltou perguntar se queriam ir lá para fora”, apontou Sousa Real, sobre o momento inflamado entre o Chega e a IL no debate sobre forças policiais.

João Almeida, deputado centrista que regressou à AR, onde entrou, pela primeira vez, em 2002, não vendo mudança do ambiente parlamentar, diz que é do tempo em que a esquerda chamava ladrões aos deputados que defendiam o governo de Passos Coelho e que, hoje, há o que já houve, no passado. Admitindo que haja excessos pontuais, rejeita haver novidades, aponta o dedo às bancadas da oposição e recorda que, aquando da visita à AR dos soldados ucranianos a recuperar em Portugal, os deputados comunistas não se levantaram, nem aplaudiram.

Duarte Pacheco, que deixou a bancada do PSD, em 2024, após 33 anos como deputado, referiu que, a seguir ao 25 de Abril, havia a lógica de processo revolucionário, mas, depois, um grande respeito institucional. A partir da intervenção da troika, as coisas começaram a acender-se. No seu último mandato, com o Chega, as coisas degradaram-se ainda mais. Porém, acreditava que o ambiente acalmaria, à medida que os deputados do Chega desenvolverem “relações pessoais” com membros de outras bancadas. Estava enganado. Relações pessoais não há.

Quem chegou à AR, a juntar-se às bancadas da direita, desvaloriza as condições em que decorrem os debates. Por exemplo, Mariana Leitão, líder parlamentar da IL, diz que é confuso, por haver, na AR, muitas forças políticas com opiniões divergentes. Todavia, reconhece que a contante interrupção pelo ruído pode “atrapalhar” e “perturbar” o raciocínio, como sucedeu quando a bancada da IL entrou na mira do Chega, após Rui Rocha ter acusado Ventura de instrumentalizar as reivindicações das forças de segurança.

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A AR é um espaço altamente exposto, que deveria ser modelar. Não obstante, alguns deputados, no caso, os/as do chega parecem estar num recreio de escola a proferir doestos ou a praticar “bullying”, sem que alguém, com autoridade intervenha a pôr cobro a isso e a punir que o merece. Ora, precisamos de uma AR que nos represente nos nossos valores e seja pedagógica em relação aos mais jovens.

2025.02.16 – Louro de Carvalho

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