A Palavra de Deus proclamada e apresentada para
meditação no VI domingo do Tempo Comum no Ano C propõe a opção acertada para
construir uma vida com sentido. De um lado, apresenta-se-nos o caminho que Deus
propõe; do outro, o caminho apontado pela lógica dos homens. O caminho proposto
por Deus parece improvável, por obrigar a navegar contra a corrente, mas é o
caminho da vida verdadeira.
Deus, falando com o profeta, prevê que o Povo o coloque sobre que pecado cometeram as pessoas contra o Senhor. E o profeta responderá: “Os vossos pais abandonaram-Me e foram atrás de deuses estranhos, para os servir e adorar, e não guardaram a minha lei. Porém, vós fostes mais além no erro: cada um, sem me escutar, segue os maus desejos do seu coração.”
O trecho em apreço vem na sequência de tudo isto. O povo que deixou de confiar em Deus, virou-Lhe as costas e passou a construir a sua História sobre realidades humanas, efémeras.
Para Jeremias, tal desvio espelha-se na política de alianças militares que os reis de Judá procuram celebrar, a fim de se defenderem dos planos imperialistas de potências regionais, como o Egito ou a Babilónia. Assim, Israel confia mais em exércitos estrangeiros do que em Deus. Deus perdeu o seu lugar no coração do Povo. Por isso, em estilo sapiencial, o profeta denuncia o pecado daqueles que “confiam no homem” e “põem na carne toda a sua esperança”. Os que confiam mais em realidades humanas, limitadas e falíveis são “malditos”. As suas apostas estão condenadas ao fracasso, pois não encontrarão, nessas realidades, a vida e a segurança que buscam. São comparáveis a “um cardo na estepe que nem percebe quando chega a felicidade”. Vivem “na aridez do deserto”: as suas vidas raquíticas e áridas estão condenadas a morte precoce. Não conhecerão a vida em plenitude.
Diferente em absoluto é a sorte daqueles que “confiam no Senhor e põem Nele a sua esperança”. São “como árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes para a corrente” e bebe a água revigorante e vivificadora, pois mergulha as raízes bem fundo e encontra vida em plenitude. Não os inquietam os tempos de seca e de aridez (as crises e vicissitudes da vida e da História), porque sabem que Deus não lhes falha; e, com uma confiança e uma esperança que nunca serão desmentidas, continuam a produzir frutos verdadeiros, frutos de vida.
Está aqui um aviso a Judá: se o Povo confiar no Senhor e viver de acordo com as suas indicações, lançará as suas raízes, de forma permanente, na Terra Prometida, onde há vida em abundância; mas, se ignorar Deus, será arrancado da sua terra e conhecerá a experiência dolorosa do exílio.
Lucas inicia este discurso da planície – dirigido aos discípulos de todas as épocas – com quatro bem-aventuranças (em Mateus, as bem-aventuranças são oito). Os referidos como bem-aventurados são os pobres (“ptôckhoí”), os que têm fome (“peinôntes”), os que choram (“klaíontes”), os que são perseguidos (“hótan misêsôsin hoi ántrôpoi, kaì hótan aphorísôsin hymãs kaì oneidísôsin” kaì ekbálôsin tò ónoma hymôn hôs ponêrón”).
O termo grego “ptôkhos” usado por Lucas traduz vários termos hebraicos (“anawim”, “dallim”, “ebionim”) que, no Antigo Testamento, definem uma classe de pessoas privadas de bens e à mercê da prepotência dos ricos e dos poderosos. São desprotegidos, explorados, pequenos, sem vez e sem voz, vítimas da injustiça, despojados dos seus direitos e da sua dignidade pela arbitrariedade dos grandes. Contudo, a palavra não define um âmbito meramente sociológico: os pobres são também os que, privados de tudo, põem a sua confiança em Deus e se entregam nas mãos de Deus. Sustenta-se que aqueles que não têm qualquer segurança humana estão mais disponíveis para acolher os dons de Deus.
“Os que têm fome” são os que não têm o pão de cada dia para si próprios e para as suas famílias, mas são também os que, excluídos e desconsiderados, não têm lugar à mesa do banquete onde os irmãos saciam a sua fome de vida. São os que, de qualquer modo, vivem em situação de carência. Deus oferecer-lhes-á o alimento de que precisam para terem vida em abundância.
“Os que choram” são os que vivem mergulhados numa dor infinda e sem remédio: os doentes incuráveis, as vítimas de todas as injustiças, os magoados pelo egoísmo e pela maldade dos seus irmãos. Deus enxugará as lágrimas amargas que brotam dos seus corações doloridos.
Para os “perseguidos” Lucas utiliza quatro vocábulos para definir o que lhes acontece: são os odiados (“miséô”), os rejeitados (“aphorízô”), os insultados (“oneidízô”), os marcados como infames (“ponêrós”). São vítimas da intolerância e do desprezo dos irmãos, por causa das suas convicções e pelo modo como acolhem o Evangelho da verdade. O seu sofrimento coloca-os na linha dos profetas. Deus fá-los-á triunfar sobre os seus detratores.
A todos os que sofrem Jesus promete que a sua triste situação vai mudar. Conhecerão a felicidade, pois a chegada do Reino de Deus introduzirá um dinamismo novo no Mundo. O sofrimento será vencido. Pela ação de Jesus, Deus proporcionará a todos os seus filhos o encontro com uma vida nova e plenamente realizada. O Deus que libertou o seu Povo do cativeiro egípcio está decidido a continuar a sua obra salvadora em favor dos seus filhos que sofrem.
Do lado oposto estão os ricos, os saciados, os que riem, os elogiados por toda a gente. “Ai de vós” – diz-lhes Jesus. A exclamação “ai” com que começa cada uma das invetivas equivale às lamentações usadas em contexto funerário. É uma exclamação de dor e de pena dita por alguém que contempla uma realidade e lamenta a desgraça que dela resultar. A expressão aparece nas admoestações dos profetas.
Os “ricos” são os que têm dinheiro em abundância e que põem toda a sua esperança e segurança nos bens materiais. Acham que não precisam de Deus, pois o dinheiro oferece-lhes tudo aquilo de que necessitam para uma vida de tranquilidade. São prisioneiros dos bens que endeusaram. Não alcançarão uma vida feliz.
Os “saciados” são os que, além do pão com fartura, têm abundância de todas as coisas boas que a vida pode oferecer. “De barriga cheia”, apostados em gozar a vida, tendem a esquecer-se de Deus e dos seus irmãos. Acham que a fome do Mundo não lhes diz respeito. Chegará a altura em que serão privados do que agora lhes sobra e considerarão que a sua vida perdeu todo o sentido.
“Os que agora riem” são os que vivem, permanentemente, em festa e zombam das lágrimas dos seus irmãos. O verbo usado (“geláô”) pode traduzir a ideia de “troçar da miséria” dos outros. Jesus adverte que esse riso sarcástico lhes desaparecerá dos lábios, quando perceberem que estão fora da comunidade do Reino.
Os “elogiados” por toda a gente, não são os apreciados pela sua bondade e integridade, mas os que fazem tudo para serem populares, muitas vezes, à custa da verdade e da própria dignidade. Trocam os valores consistentes e duradouros por minutos de fama e de aplausos. Constroem a sua vida sobre a areia. Rapidamente, serão abandonados e esquecidos.
No discurso das “bem-aventuranças”, Jesus inverte a escala de valores que predomina no Mundo. Segundo Jesus, os ricos, os que são admirados, os que parecem ter tudo para serem felizes, podem falhar na construção de uma vida com sentido, enquanto os pobres, os pequenos, os que nunca obtêm reconhecimento social, os que o Mundo despreza e cataloga como fracassados, são, aos olhos de Deus, os vencedores, os que terão condições para construir uma vida feliz. A lógica de Deus está infinitamente distante da lógica que comanda o mundo e os homens.
As bem-aventuranças dão-nos a conhecer o coração de Deus. Deus tem sempre um fraquinho pelos pobres e desprezados, não porque serem melhores, mas por necessitarem, mais do que os outros, de ser acompanhados e sustentados pelo amor misericordioso de Deus.
A ressurreição de Cristo – o “Evangelho” que Paulo recebeu da tradição apostólica e que transmitiu aos seus filhos de Corinto – não era contestada pela comunidade cristã. O que causava problemas aos cristãos de Corinto era a ressurreição dos homens.
Paulo, alheio ao dualismo da filosofia grega sobre a realidade do homem, não entra em distinções entre alma e corpo. O seu raciocínio é linear. Se os Coríntios creem na ressurreição de Cristo, têm de crer na ressurreição dos homens. A fé em Cristo ressuscitado desemboca na inquebrantável esperança de que os cristãos ressuscitarão. E o inverso também é verdadeiro: não esperar a ressurreição dos mortos equivale a não crer na ressurreição de Cristo.
O apóstolo passa, então, a enumerar as consequências que adviriam, para a vida cristã, se Cristo não tivesse ressuscitado: a fé que anima a existência cristã, a libertação da escravidão do pecado, a salvação que todos esperam não teriam sentido e os cristãos seriam gente enganada, ridícula, “os mais miseráveis de todos os homens”. Ao invés, Paulo está absolutamente certo de que os cristãos não são um rebanho de gente iludida. A partir da ressurreição de Cristo, podemos crer na vida plena que Deus reserva para todos os que O amam. É essa certeza que dá sentido à caminhada que o cristão faz neste Mundo.
E Paulo detém-se, para lançar um grito jubiloso de fé e de esperança: “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram!” Jesus ressuscitou não como o único, mas como o primeiro de uma longa cadeia da qual fazemos parte. Este “primeiro” não deve ser entendido em sentido cronológico, mas no sentido de que Cristo é o princípio ativo da ressurreição, o que gera a nova Humanidade sobre a qual as forças da morte não têm qualquer poder. Ele arrasta atrás de Si a Humanidade solidária com Ele, até à realização plena, à vida definitiva.
“Jesus proclama as bem-aventuranças diante dos discípulos e de uma multidão de pessoas. Já as ouvimos muitas vezes e, no entanto, não deixam de nos maravilhar: ‘Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque rireis.’ Estas palavras contradizem a lógica do Mundo e convidam-nos a olhar a realidade com olhos novos, com o olhar de Deus, que vê para lá das aparências e reconhece a beleza, até na fragilidade e no sofrimento.
“A segunda parte contém palavras duras e de repreensão: ‘Ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis!’ O contraste entre ‘felizes vós’ e ‘ai de vós’ recorda-nos a importância de discernir onde colocamos a nossa segurança. Vós, artistas e pessoas de cultura, sois chamados a ser testemunhas da visão revolucionária das Bem-Aventuranças. A vossa missão não se limita a criar beleza, mas revela a verdade, a bondade e a beleza escondidas nos recantos da História, a dar voz a quem não tem voz, a transformar a dor em esperança.
“Vivemos numa época de crises complexas, que são económicas e sociais, mas são, antes de mais, crises da alma, crises de sentido. Coloquemo-nos a questão do tempo e a questão do rumo. Somos peregrinos ou errantes? Caminhamos com uma meta ou andamos à deriva, perdidos? O artista é aquele ou aquela que tem a função de ajudar a Humanidade a não se desnortear, a não perder o horizonte da esperança. Mas atenção: não é uma esperança fácil, superficial e desencarnada. Não! A verdadeira esperança entrelaça-se com o drama da existência humana. Não é refúgio confortável, mas fogo que arde e ilumina, como a Palavra de Deus. Por isso, a arte autêntica é sempre encontro com o mistério, com a beleza que nos supera, com a dor que nos interpela, com a verdade que nos chama. Caso contrário, ‘ai [de nós]’! O Senhor é severo no seu apelo.
“Como escreve o poeta Gerard Manley Hopkins, ‘o Mundo está pleno da grandeza de Deus. / Seu fulgor inflama, qual lâmina fulgurante’. Eis a missão do artista: descobrir e revelar essa grandeza escondida, torná-la acessível aos nossos olhos e aos nossos corações. O mesmo poeta ouvia também no Mundo um ‘eco de chumbo’ e um ‘eco de ouro’. O artista é sensível a estas ressonâncias e, com a sua obra, realiza um discernimento e ajuda os outros a discernir no meio dos diferentes ecos dos acontecimentos deste Mundo. Os homens e as mulheres de cultura são chamados a avaliar estes ecos, a explicar-no-los e a iluminar o caminho por onde nos conduzem: se são cantos de sereia que seduzem ou apelos da nossa mais verdadeira humanidade. Pede-se-vos a sabedoria para distinguir o que é ‘como a palha que o vento leva’, do que é sólido ‘como a árvore plantada à beira da água corrente’ e capaz de dar fruto.
“Vejo em vós guardiães da beleza que sabe inclinar-se sobre as feridas do Mundo, que sabe escutar o grito dos pobres, dos sofredores, dos feridos, dos presos, dos perseguidos, dos refugiados. Vejo em vós guardiães das Bem-Aventuranças! Vivemos num tempo em que se erguem novos muros, em que as diferenças se tornam pretexto para a divisão, em vez de serem oportunidade de enriquecimento recíproco. Mas vós, homens e mulheres de cultura, sois chamados a construir pontes, a criar espaços de encontro e diálogo, a iluminar as mentes e a aquecer os corações. Alguns dirão: “Mas para que serve a arte num Mundo ferido? Não há coisas mais urgentes, mais concretas e mais necessárias?”. A arte não é luxo, mas necessidade do espírito. Não é fuga, mas responsabilidade, convite à ação, apelo, grito. Educar para a beleza significa educar para a esperança. E a esperança nunca está separada do drama da existência: ela atravessa a luta quotidiana, as fadigas da vida, os desafios deste nosso tempo.
“Jesus proclama felizes os pobres, os aflitos, os mansos, os perseguidos. É a lógica invertida, a revolução da perspetiva. A arte é chamada a participar nesta revolução. O Mundo precisa de artistas proféticos, de intelectuais corajosos, de criadores de cultura.
“Deixai-vos guiar pelo Evangelho das Bem-Aventuranças e que a vossa arte seja anúncio de um Mundo novo. Que a vossa poesia no-lo mostre! Nunca deixeis de procurar, de interrogar, de arriscar. Porque a verdadeira arte nunca é acomodada; ela oferece a paz da inquietação. E lembrai-vos: a esperança não é ilusão; a beleza não é utopia; o vosso dom não é mero acaso. É uma chamada. Respondei com generosidade, com paixão, com amor.”
***
Na primeira
leitura (Jr 17, 5-8), Jeremias
garante que a aposta em realidades humanas e efémeras a desperdiça a nossa
existência, ao passo que, se pusermos a nossa esperança em Deus e aceitarmos
viver de acordo com as suas indicações, encontraremos vida em abundância.Deus, falando com o profeta, prevê que o Povo o coloque sobre que pecado cometeram as pessoas contra o Senhor. E o profeta responderá: “Os vossos pais abandonaram-Me e foram atrás de deuses estranhos, para os servir e adorar, e não guardaram a minha lei. Porém, vós fostes mais além no erro: cada um, sem me escutar, segue os maus desejos do seu coração.”
O trecho em apreço vem na sequência de tudo isto. O povo que deixou de confiar em Deus, virou-Lhe as costas e passou a construir a sua História sobre realidades humanas, efémeras.
Para Jeremias, tal desvio espelha-se na política de alianças militares que os reis de Judá procuram celebrar, a fim de se defenderem dos planos imperialistas de potências regionais, como o Egito ou a Babilónia. Assim, Israel confia mais em exércitos estrangeiros do que em Deus. Deus perdeu o seu lugar no coração do Povo. Por isso, em estilo sapiencial, o profeta denuncia o pecado daqueles que “confiam no homem” e “põem na carne toda a sua esperança”. Os que confiam mais em realidades humanas, limitadas e falíveis são “malditos”. As suas apostas estão condenadas ao fracasso, pois não encontrarão, nessas realidades, a vida e a segurança que buscam. São comparáveis a “um cardo na estepe que nem percebe quando chega a felicidade”. Vivem “na aridez do deserto”: as suas vidas raquíticas e áridas estão condenadas a morte precoce. Não conhecerão a vida em plenitude.
Diferente em absoluto é a sorte daqueles que “confiam no Senhor e põem Nele a sua esperança”. São “como árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes para a corrente” e bebe a água revigorante e vivificadora, pois mergulha as raízes bem fundo e encontra vida em plenitude. Não os inquietam os tempos de seca e de aridez (as crises e vicissitudes da vida e da História), porque sabem que Deus não lhes falha; e, com uma confiança e uma esperança que nunca serão desmentidas, continuam a produzir frutos verdadeiros, frutos de vida.
Está aqui um aviso a Judá: se o Povo confiar no Senhor e viver de acordo com as suas indicações, lançará as suas raízes, de forma permanente, na Terra Prometida, onde há vida em abundância; mas, se ignorar Deus, será arrancado da sua terra e conhecerá a experiência dolorosa do exílio.
***
No Evangelho
(Lc 6,17.20-26), Jesus mostra aos
discípulos e à multidão como chegar à felicidade. O caminho que aponta – o das
“bem-aventuranças” – contradiz a a lógica humana e inverte a nossa escala de
valores, mas tem o selo de garantia de Deus. De acordo com Jesus, é o caminho
para um Mundo mais humano, mais fraterno e mais feliz.Lucas inicia este discurso da planície – dirigido aos discípulos de todas as épocas – com quatro bem-aventuranças (em Mateus, as bem-aventuranças são oito). Os referidos como bem-aventurados são os pobres (“ptôckhoí”), os que têm fome (“peinôntes”), os que choram (“klaíontes”), os que são perseguidos (“hótan misêsôsin hoi ántrôpoi, kaì hótan aphorísôsin hymãs kaì oneidísôsin” kaì ekbálôsin tò ónoma hymôn hôs ponêrón”).
O termo grego “ptôkhos” usado por Lucas traduz vários termos hebraicos (“anawim”, “dallim”, “ebionim”) que, no Antigo Testamento, definem uma classe de pessoas privadas de bens e à mercê da prepotência dos ricos e dos poderosos. São desprotegidos, explorados, pequenos, sem vez e sem voz, vítimas da injustiça, despojados dos seus direitos e da sua dignidade pela arbitrariedade dos grandes. Contudo, a palavra não define um âmbito meramente sociológico: os pobres são também os que, privados de tudo, põem a sua confiança em Deus e se entregam nas mãos de Deus. Sustenta-se que aqueles que não têm qualquer segurança humana estão mais disponíveis para acolher os dons de Deus.
“Os que têm fome” são os que não têm o pão de cada dia para si próprios e para as suas famílias, mas são também os que, excluídos e desconsiderados, não têm lugar à mesa do banquete onde os irmãos saciam a sua fome de vida. São os que, de qualquer modo, vivem em situação de carência. Deus oferecer-lhes-á o alimento de que precisam para terem vida em abundância.
“Os que choram” são os que vivem mergulhados numa dor infinda e sem remédio: os doentes incuráveis, as vítimas de todas as injustiças, os magoados pelo egoísmo e pela maldade dos seus irmãos. Deus enxugará as lágrimas amargas que brotam dos seus corações doloridos.
Para os “perseguidos” Lucas utiliza quatro vocábulos para definir o que lhes acontece: são os odiados (“miséô”), os rejeitados (“aphorízô”), os insultados (“oneidízô”), os marcados como infames (“ponêrós”). São vítimas da intolerância e do desprezo dos irmãos, por causa das suas convicções e pelo modo como acolhem o Evangelho da verdade. O seu sofrimento coloca-os na linha dos profetas. Deus fá-los-á triunfar sobre os seus detratores.
A todos os que sofrem Jesus promete que a sua triste situação vai mudar. Conhecerão a felicidade, pois a chegada do Reino de Deus introduzirá um dinamismo novo no Mundo. O sofrimento será vencido. Pela ação de Jesus, Deus proporcionará a todos os seus filhos o encontro com uma vida nova e plenamente realizada. O Deus que libertou o seu Povo do cativeiro egípcio está decidido a continuar a sua obra salvadora em favor dos seus filhos que sofrem.
Do lado oposto estão os ricos, os saciados, os que riem, os elogiados por toda a gente. “Ai de vós” – diz-lhes Jesus. A exclamação “ai” com que começa cada uma das invetivas equivale às lamentações usadas em contexto funerário. É uma exclamação de dor e de pena dita por alguém que contempla uma realidade e lamenta a desgraça que dela resultar. A expressão aparece nas admoestações dos profetas.
Os “ricos” são os que têm dinheiro em abundância e que põem toda a sua esperança e segurança nos bens materiais. Acham que não precisam de Deus, pois o dinheiro oferece-lhes tudo aquilo de que necessitam para uma vida de tranquilidade. São prisioneiros dos bens que endeusaram. Não alcançarão uma vida feliz.
Os “saciados” são os que, além do pão com fartura, têm abundância de todas as coisas boas que a vida pode oferecer. “De barriga cheia”, apostados em gozar a vida, tendem a esquecer-se de Deus e dos seus irmãos. Acham que a fome do Mundo não lhes diz respeito. Chegará a altura em que serão privados do que agora lhes sobra e considerarão que a sua vida perdeu todo o sentido.
“Os que agora riem” são os que vivem, permanentemente, em festa e zombam das lágrimas dos seus irmãos. O verbo usado (“geláô”) pode traduzir a ideia de “troçar da miséria” dos outros. Jesus adverte que esse riso sarcástico lhes desaparecerá dos lábios, quando perceberem que estão fora da comunidade do Reino.
Os “elogiados” por toda a gente, não são os apreciados pela sua bondade e integridade, mas os que fazem tudo para serem populares, muitas vezes, à custa da verdade e da própria dignidade. Trocam os valores consistentes e duradouros por minutos de fama e de aplausos. Constroem a sua vida sobre a areia. Rapidamente, serão abandonados e esquecidos.
No discurso das “bem-aventuranças”, Jesus inverte a escala de valores que predomina no Mundo. Segundo Jesus, os ricos, os que são admirados, os que parecem ter tudo para serem felizes, podem falhar na construção de uma vida com sentido, enquanto os pobres, os pequenos, os que nunca obtêm reconhecimento social, os que o Mundo despreza e cataloga como fracassados, são, aos olhos de Deus, os vencedores, os que terão condições para construir uma vida feliz. A lógica de Deus está infinitamente distante da lógica que comanda o mundo e os homens.
As bem-aventuranças dão-nos a conhecer o coração de Deus. Deus tem sempre um fraquinho pelos pobres e desprezados, não porque serem melhores, mas por necessitarem, mais do que os outros, de ser acompanhados e sustentados pelo amor misericordioso de Deus.
***
Na segunda
leitura (1Cor 15,12.16-20)
Paulo, dirigindo-se aos cristãos de Corinto – e a todos nós – insta a crer na
ressurreição e a viver de olhos postos no Mundo que há de vir.A ressurreição de Cristo – o “Evangelho” que Paulo recebeu da tradição apostólica e que transmitiu aos seus filhos de Corinto – não era contestada pela comunidade cristã. O que causava problemas aos cristãos de Corinto era a ressurreição dos homens.
Paulo, alheio ao dualismo da filosofia grega sobre a realidade do homem, não entra em distinções entre alma e corpo. O seu raciocínio é linear. Se os Coríntios creem na ressurreição de Cristo, têm de crer na ressurreição dos homens. A fé em Cristo ressuscitado desemboca na inquebrantável esperança de que os cristãos ressuscitarão. E o inverso também é verdadeiro: não esperar a ressurreição dos mortos equivale a não crer na ressurreição de Cristo.
O apóstolo passa, então, a enumerar as consequências que adviriam, para a vida cristã, se Cristo não tivesse ressuscitado: a fé que anima a existência cristã, a libertação da escravidão do pecado, a salvação que todos esperam não teriam sentido e os cristãos seriam gente enganada, ridícula, “os mais miseráveis de todos os homens”. Ao invés, Paulo está absolutamente certo de que os cristãos não são um rebanho de gente iludida. A partir da ressurreição de Cristo, podemos crer na vida plena que Deus reserva para todos os que O amam. É essa certeza que dá sentido à caminhada que o cristão faz neste Mundo.
E Paulo detém-se, para lançar um grito jubiloso de fé e de esperança: “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram!” Jesus ressuscitou não como o único, mas como o primeiro de uma longa cadeia da qual fazemos parte. Este “primeiro” não deve ser entendido em sentido cronológico, mas no sentido de que Cristo é o princípio ativo da ressurreição, o que gera a nova Humanidade sobre a qual as forças da morte não têm qualquer poder. Ele arrasta atrás de Si a Humanidade solidária com Ele, até à realização plena, à vida definitiva.
***
Por fim, a partir
do dia do Jubileu dos Artistas e do Mundo da Cultura, não será descabido dar a
vez a Francisco, pela voz do cardeal Tolentino de Mendonça, que o substituiu na
Eucaristia jubilar na Basílica de São Pedro (e leu a homilia papal), neste VI
domingo do Tempo Comum:“Jesus proclama as bem-aventuranças diante dos discípulos e de uma multidão de pessoas. Já as ouvimos muitas vezes e, no entanto, não deixam de nos maravilhar: ‘Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque rireis.’ Estas palavras contradizem a lógica do Mundo e convidam-nos a olhar a realidade com olhos novos, com o olhar de Deus, que vê para lá das aparências e reconhece a beleza, até na fragilidade e no sofrimento.
“A segunda parte contém palavras duras e de repreensão: ‘Ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis!’ O contraste entre ‘felizes vós’ e ‘ai de vós’ recorda-nos a importância de discernir onde colocamos a nossa segurança. Vós, artistas e pessoas de cultura, sois chamados a ser testemunhas da visão revolucionária das Bem-Aventuranças. A vossa missão não se limita a criar beleza, mas revela a verdade, a bondade e a beleza escondidas nos recantos da História, a dar voz a quem não tem voz, a transformar a dor em esperança.
“Vivemos numa época de crises complexas, que são económicas e sociais, mas são, antes de mais, crises da alma, crises de sentido. Coloquemo-nos a questão do tempo e a questão do rumo. Somos peregrinos ou errantes? Caminhamos com uma meta ou andamos à deriva, perdidos? O artista é aquele ou aquela que tem a função de ajudar a Humanidade a não se desnortear, a não perder o horizonte da esperança. Mas atenção: não é uma esperança fácil, superficial e desencarnada. Não! A verdadeira esperança entrelaça-se com o drama da existência humana. Não é refúgio confortável, mas fogo que arde e ilumina, como a Palavra de Deus. Por isso, a arte autêntica é sempre encontro com o mistério, com a beleza que nos supera, com a dor que nos interpela, com a verdade que nos chama. Caso contrário, ‘ai [de nós]’! O Senhor é severo no seu apelo.
“Como escreve o poeta Gerard Manley Hopkins, ‘o Mundo está pleno da grandeza de Deus. / Seu fulgor inflama, qual lâmina fulgurante’. Eis a missão do artista: descobrir e revelar essa grandeza escondida, torná-la acessível aos nossos olhos e aos nossos corações. O mesmo poeta ouvia também no Mundo um ‘eco de chumbo’ e um ‘eco de ouro’. O artista é sensível a estas ressonâncias e, com a sua obra, realiza um discernimento e ajuda os outros a discernir no meio dos diferentes ecos dos acontecimentos deste Mundo. Os homens e as mulheres de cultura são chamados a avaliar estes ecos, a explicar-no-los e a iluminar o caminho por onde nos conduzem: se são cantos de sereia que seduzem ou apelos da nossa mais verdadeira humanidade. Pede-se-vos a sabedoria para distinguir o que é ‘como a palha que o vento leva’, do que é sólido ‘como a árvore plantada à beira da água corrente’ e capaz de dar fruto.
“Vejo em vós guardiães da beleza que sabe inclinar-se sobre as feridas do Mundo, que sabe escutar o grito dos pobres, dos sofredores, dos feridos, dos presos, dos perseguidos, dos refugiados. Vejo em vós guardiães das Bem-Aventuranças! Vivemos num tempo em que se erguem novos muros, em que as diferenças se tornam pretexto para a divisão, em vez de serem oportunidade de enriquecimento recíproco. Mas vós, homens e mulheres de cultura, sois chamados a construir pontes, a criar espaços de encontro e diálogo, a iluminar as mentes e a aquecer os corações. Alguns dirão: “Mas para que serve a arte num Mundo ferido? Não há coisas mais urgentes, mais concretas e mais necessárias?”. A arte não é luxo, mas necessidade do espírito. Não é fuga, mas responsabilidade, convite à ação, apelo, grito. Educar para a beleza significa educar para a esperança. E a esperança nunca está separada do drama da existência: ela atravessa a luta quotidiana, as fadigas da vida, os desafios deste nosso tempo.
“Jesus proclama felizes os pobres, os aflitos, os mansos, os perseguidos. É a lógica invertida, a revolução da perspetiva. A arte é chamada a participar nesta revolução. O Mundo precisa de artistas proféticos, de intelectuais corajosos, de criadores de cultura.
“Deixai-vos guiar pelo Evangelho das Bem-Aventuranças e que a vossa arte seja anúncio de um Mundo novo. Que a vossa poesia no-lo mostre! Nunca deixeis de procurar, de interrogar, de arriscar. Porque a verdadeira arte nunca é acomodada; ela oferece a paz da inquietação. E lembrai-vos: a esperança não é ilusão; a beleza não é utopia; o vosso dom não é mero acaso. É uma chamada. Respondei com generosidade, com paixão, com amor.”
2025.02.16 – Louro de Carvalho
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