O grupo de trabalho “Megaprocessos e processo
penal: carta para a celeridade e melhor justiça” apresentou, a 18 de fevereiro,
conclusões sobre os desafios e soluções para casos complexos.
Está em causa limitar a instrução ao debate instrutório e à decisão, recorrer à inteligência artificial (IA) para elaborar acórdãos, criar o
assessor virtual para juízes, dotar juízes dos
megaprocessos de assessores técnicos privativos, estabelecer taxas de justiça
mais altas para os megaprocessos e multas contra as demoras abusivas dos
processos, criar equipas especiais de funcionários judiciais, traduzir, de
imediato, testemunhos ou peças processuais não vertidos em Português, distribuir as peças processuais por módulos e
apetrechar as salas de audiência com computadores, monitores e adequados sistemas
de som.
Estas são as principais propostas do grupo de trabalho, apesar de o estudo ter sido alargado aos processos penais, em
geral. A apresentação do relatório, que resulta de um ano de
trabalho dedicado à análise das razões para a morosidade dos megaprocessos e à
proposta de soluções para tornar a justiça penal mais célere e eficiente,
contou com a presença do presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do
Conselho Superior da Magistratura (CSM). E as conclusões foram apresentadas ao
Plenário do CSM e remetidas à ministra da Justiça.
O grupo, que inclui seis juízes e o procurador-geral adjunto Rui Cardoso,
diretor do Departamento Central de Investigação a Ação Penal (DCIAP), é
coordenado por Helena Susano, juíza de direito no Juízo Central Criminal de
Lisboa (JCCL) e responsável pelo julgamento do caso BES/GES, que julga Ricardo
Salgado, entre outros.
“Todos devem ser chamados, pois, a concorrer para a eficácia e
eficiência da Justiça, aportando, objetivamente, ao nível do articulado e do
texto, o seu contributo facilitador para o resultado final: a clareza, a
transparência e a evidência da sua perspetiva, quanto à matéria a decidir”,
lê-se no relatório, segundo o qual “o tempo excessivo é inimigo da aplicação da
Justiça”, na linha da acusação e na da defesa de boa-fé, devendo ser promovidos
comportamentos que levem o processo, em vez de fio processual linear e
escorreito, que compõe a tarefa no seu tempo razoável e útil, a ser um
emaranhado de fios que se entrelaçam e enodam, impedindo o julgador, qual
tecelão diligente, de cumprir “o desiderato que é a decisão final”.
O grupo alerta para o facto de a fase de instrução servir, não
raro, para produzir a contraprova reunida no inquérito, com violação do
objetivo inicial para que foi criada, originando, nos processos de
excecional complexidade, durações excessivas e alocação de meios humanos e
materiais que não lhes deveriam estar afetos. Ora, a instrução, como fase facultativa
do processo penal, tem lugar após o encerramento do inquérito, para verificar se a acusação ou o arquivamento se justificam.
Pode preceder o julgamento, se houver despacho instrutório de pronúncia, ou
fazer terminar o processo, se o despacho for de não pronúncia. Por isso, se propõe a restrição dos atos de
instrução ao debate instrutório, com a possibilidade excecional de
produção de prova, mas só em situações concretas. Com efeito, como diz o
relatório, são variados os procedimentos judiciais que conformaram a instrução “numa
fase meramente contraditória à do inquérito, com produção de prova ex novo, cujo escopo é o de contraditar os factos
apurados em inquérito, com a perversidade processual que resulta da observância
do princípio da imediação, perante o decisor, apenas quanto a essa nova prova”.
Os magistrados defendem que, usada como um pré-julgamento, a instrução distorce
a sua finalidade de confirmação da decisão de acusar ou de arquivar, baseada na
prova adquirida em inquérito, o que se não consente na estrutura concetual do
nosso processo penal.
Nestes termos, consideram:
* A instrução será constituída só pelo debate instrutório, a
agendar no despacho que admite o requerimento de abertura da instrução,
praticando-se os atos excecionais de produção de prova, se se justificarem. Não é uma fase de contraprova da prova já adquirida, mas,
se necessário e na exata medida, a “complementação desta última, para habilitar
o julgador a ultrapassar a sua dúvida com vista à boa decisão da causa”. Excecionalmente,
será possível, pela natureza do ato ou por outro motivo justificado, tal produção ser prévia ao debate instrutório.
* Prevê-se a possibilidade de o despacho de pronúncia ou de não pronúncia
ser notificado aos sujeitos processuais, sem obrigatoriedade de agendar
diligência de leitura, o que não obsta a que o juiz a agende, se o
entender conveniente, devendo, então, manter a instrução, mas limitando-a à discussão de questões de direito que possam evitar que o arguido
vá a julgamento, e bem assim à análise da prova indiciária que
sustenta a acusação ou determina o arquivamento.
* O processo pode seguir para julgamento, mesmo no caso de alteração substancial de factos, dando ao arguido um prazo
razoável mais dilatado para se defender. Trata-se de verdadeira alteração de
factos (embora substancial) e não de objeto processual (verdadeiramente) novo,
caso em que só uma investigação do Ministério Público (MP) seria legítima.
As principais propostas de medidas concretas são:
* Com o objetivo de munir o sistema processual penal de mecanismos que permitam
contrariar a dedução, na fase de recurso, de requerimentos e incidentes
manifestamente infundados, utilizados como estratégia para evitar o
cumprimento julgamento ou do trânsito em julgado, importa-se para o processo
penal “a figura da defesa contra as demoras abusivas”, consagrada no artigo
670.º do Código de Processo Civil (CPC). Pode, assim, o juiz condenar o visado no pagamento de uma soma entre duas e 100 Unidades
de Conta (UC), ou seja, cerca de 200 euros a 100 mil euros. E aumentam-se os limites máximos da taxa de justiça em
processo penal, ajustando a tributação ao custo efetivo e às particularidades de cada processo de especial
complexidade, devendo manter-se inalterados os limites mínimos.
* É de proceder à afetação de funcionários mais competentes e
com mais experiência aos processos de especial complexidade, pela
criação de equipas com preparação para o exercício de funções nesse contexto, a
servirem o processo em exclusividade, bem como criar um sistema automatizado de
tradução de documentos que garanta a produção imediata de traduções,
sem a demora e os custos inerentes à contratação de profissionais para o efeito,
e implementar a interpretação linguística em tempo real, permitindo que, em audiência ou noutra diligência
processual, os participantes se exprimam na sua própria língua, podendo os
restantes visualizar a interpretação em tempo real.
* Em termos de assessoria jurídica, os juízes terão um
assessor de ciências jurídicas privativo, que deve, sob supervisão
do juiz, realizar tarefas de mero expediente e de gestão
quotidiana, a fim de libertar o juiz para a sua função jurisdicional; torna-se
possível a delegação no assessor jurídico de funções específicas relativas ao
agendamento das sessões de julgamento e da inquirição de testemunhas, da
organização de ficheiros de prova, de recursos pendentes ou concluídos, de
listagens temáticas, bem como da elaboração de projetos de despacho ou da
pesquisa da legislação, da jurisprudência e da doutrina necessárias à
preparação das decisões judiciais; e deve organizar-se a assessoria de especialistas, a constarem de lista de
assessores, podendo o assessor técnico, com previsão expressa no CPC, ser
convocado a acompanhar o juiz, pontualmente ou durante a audiência de
julgamento.
* Deve ser criada a figura do assistente virtual do juiz,
que permita a recolha e agregação da informação relevante para a realização da
decisão judicial, sobretudo, em tarefas instrumentais que, atualmente,
condicionam o tempo de execução. Em concreto, no quotidiano
do juiz, há tarefas que podem ser feitas de forma automatizada, por
não requererem as especiais qualificações do magistrado.
* Devem juiz e assessores dispor de ferramentas de
pesquisa para, com transparentes sistemas de IA rastreáveis e suscetíveis de controlo,
permitindo pesquisas avançadas (não se cingindo à pesquisa por termos, datas ou
códigos), pela interpretação dos elementos processuais, pela perceção do
respetivo contexto e pelo estabelecimento de relações entre os mesmos.
* Deve promover-se um novo modelo de elaboração e de
apresentação de peças processuais de elevada dimensão (acórdãos e
decisões instrutórias), que permita a decomposição por módulos, para a
simplificar a sua construção, bem como a comunicação ao cidadão.
* Há que valorizar a cultura da síntese e da clareza na
redação das peças processuais e nas decisões judiciais.
* As salas de audiência devem estar equipadas com computadores, com monitores, com sistemas de som adequados
e com telemóveis capazes de estabelecer ligação com intervenientes processuais.
E devem disponibilizar-se computadores ágeis e ecrãs
múltiplos aos magistrados, possibilitando a eficiente execução das
aplicações informáticas e a consulta de processos em formato digital, com a
ligação dos meios de prova.
* É de esclarecer, expressamente, que o MP pode arquivar o
inquérito, nos crimes particulares (ponderar a descriminalização da
injúria e difamação, com reforço dos meios civis).
* Tem se se garantir ao arguido o direito de se sentar
junto do advogado durante o julgamento.
* E há que reforçar o controlo do segredo de
justiça, quando seja imposto.
São conclusões alinhadas com as Grandes Opções do Plano para 2024-2028,
publicadas em Diário da República, em
janeiro, que identificam os megaprocessos como um dos
maiores desafios para a justiça penal e reforçam a necessidade de alterações
legislativas para acelerar a ação dos tribunais. Também o Programa do
Governo vincou a importância de reformar a fase de instrução criminal e de implementar
medidas que garantam maior celeridade e eficiência, como a simplificação das
notificações e mais eficaz gestão processual. O relatório será enviado à
ministra da Justiça, aos grupos parlamentares e ao presidente da Assembleia da
República.
***
O grupo
de trabalho em causa foi criado
pelo CSM, em outubro de 2023, para identificar os problemas que atrasam os
megaprocessos e propor soluções que “promovam uma justiça
penal mais célere, eficaz e acessível”, e para reforçar as “práticas
de gestão processual e promoção de uma cultura de eficiência nos
tribunais” bem como “a identificação de recursos
necessários, como ferramentas tecnológicas, plataformas digitais e equipas de assessoria especializadas”.
O trabalho desenvolvido pelo
grupo, que durou pouco mais de um ano, incidiu sobre a análise dos
constrangimentos processuais e extraprocessuais.
A
duração total de cada megaprocesso até trânsito em julgado, sem possibilidade
de recurso, é, em média, de oito anos, sendo a fase
de investigação mais demorada do que a de julgamento.
O estudo
foi realizado a partir de 140 processos de criminalidade
complexa distribuídos na comarca de Lisboa, desde 2013 até 2023. Na
totalidade dos processos analisados, 77% têm uma fase de
investigação mais demorada, face à de julgamento. Contudo, os processos mais
morosos na fase de inquérito não correspondem aos mais demorados na fase de
julgamento.
Entre
as causas apontadas para a morosidade nos processos está o número de testemunhas, quando são ouvidas mais do que uma
vez ou quando se ouvem menos testemunhas por sessão, o número de sessões de
julgamento e a existência de incidentes, como pedido de escusa do juiz, pedido
de perícias, recusas do juiz, arguição de nulidades ou conflito negativo de
competência.
Entre todas as fases do processo, a duração total até trânsito em julgado na
Comarca de Lisboa é, em média, de oito anos e um mês. Ainda assim, 6% dos
processos demoram mais de 15 anos até ficarem concluídos. Já nos 57 processos
sem trânsito em julgado a decorrer na Comarca de Lisboa, a média é de nove anos
e três meses, ou seja, superior aos processos que já transitaram em julgado. O
maior número de processos situa-se entre os oito e nove anos (21%). Cerca de 9%
dos processos demoram mais de 15 anos.
***
O grupo propõe a criação de um tribunal ou juízo vocacionado para
o julgamento de processos de elevada complexidade, sem circunscrição a tipos de
crimes, mas antes por referência à dimensão do objeto, com natureza homóloga à da
Audiencia Nacional Espanhola – um tribunal para megraprocessos. Esta proposta “é para ser
estudada para o futuro” e, se for aprovada, provocará uma mudança de paradigma
na Justiça portuguesa.
“Em Portugal não há tribunais especializados na área criminal”,
explica Nuno Matos, presidente da Associação sindical de Juízes (ASJ), que tem
“reservas”, em relação à proposta, alertando: “Tendo em conta o volume
processual, um tribunal desses poderia funcionar só com um coletivo de juízes e
isso pode provocar a pessoalização das decisões, como já aconteceu no Tribunal
Central de Instrução Criminal [TCIC] e que teve de ser corrigido.”
O grupo propõe, ainda, problematizar a relação entre o trânsito em
julgado e a execução da decisão condenatória confirmada em 2.ª instância. Ou
seja: se um tribunal superior confirmar a decisão da 1.ª instância, a sentença
é executada. Além disso, sugere avaliar “a viabilidade da implementação de um
sistema de acordos de sentença” e admite a hipótese de julgamentos de processos
que vêm dos juízos centrais, mas que não tenham grande gravidade, serem
julgados por um tribunal singular, ao invés do coletivo de três juízes.
Os magistrados acentuam que a consagração na nossa ordem
jurídica dos acordos de sentença na fase de julgamento e a criação de tribunais
especializados para tramitar processos especialmente complexos “demandam uma
análise mais alargada, que extravasa o direito adjetivo penal, não compaginável
com a limitação de tempo disponível para a elaboração deste trabalho. E, para o
imediato, defendem que a fase de instrução seja espartilhada e “composta
apenas por um debate instrutório onde decorre, se a ela houver lugar, a produção
de prova”. Ao invés do que sucede agora, só serão ouvidas testemunhas em casos
excecionais e se o juiz o considerar imprescindível.
A ideia é acabar com os pré-julgamentos e fazer da instrução o que
o legislador idealizou: saber se o MP tem ou não indícios suficientes para um
julgamento.
Os magistrados, identificando como um dos fatores de lentidão dos
megaprocessos o arrastamento da audiência de julgamento e de recursos, propõem
que se possa recorrer para o STJ, só em caso de condenações a penas superiores
a oito anos, em vez dos cinco atuais. Assim, se a Relação confirmar a decisão
da 1.ª instância, só é possível recorrer, se a pena for superior a 12 anos de
prisão. No caso de recurso para o Tribunal Constitucional (TC), deve ser possível
ao TC, a título excecional, conferir efeito devolutivo ao recurso, isto é, não
suspender o processo.
Por fim, pretende-se consagrar uma norma geral sancionatória para
comportamentos processuais impertinentes e causadores de atrasos injustificados
na marcha do processo penal.
***
A terem êxito tais propostas, teremos uma boa pedrada no charco da
reforma da Justiça. Porém, tribunais especiais em processo penal, não! Já os tivemos
e são de má memória.
2025.02.18
– Louro de Carvalho
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