quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Magistrados pretendem aceleração dos megaprocessos

 

O grupo de trabalho “Megaprocessos e processo penal: carta para a celeridade e melhor justiça” apresentou, a 18 de fevereiro, conclusões sobre os desafios e soluções para casos complexos.

Está em causa limitar a instrução ao debate instrutório e à decisão, recorrer à inteligência artificial (IA) para elaborar acórdãos, criar o assessor virtual para juízes, dotar juízes dos megaprocessos de assessores técnicos privativos, estabelecer taxas de justiça mais altas para os megaprocessos e multas contra as demoras abusivas dos processos, criar equipas especiais de funcionários judiciais, traduzir, de imediato, testemunhos ou peças processuais não vertidos em Português, distribuir as peças processuais por módulos e apetrechar as salas de audiência com computadores, monitores e adequados sistemas de som.

Estas são as principais propostas do grupo de trabalho, apesar de o estudo ter sido alargado aos processos penais, em geral. A apresentação do relatório, que resulta de um ano de trabalho dedicado à análise das razões para a morosidade dos megaprocessos e à proposta de soluções para tornar a justiça penal mais célere e eficiente, contou com a presença do presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho Superior da Magistratura (CSM). E as conclusões foram apresentadas ao Plenário do CSM e remetidas à ministra da Justiça.

O grupo, que inclui seis juízes e o procurador-geral adjunto Rui Cardoso, diretor do Departamento Central de Investigação a Ação Penal (DCIAP), é coordenado por Helena Susano, juíza de direito no Juízo Central Criminal de Lisboa (JCCL) e responsável pelo julgamento do caso BES/GES, que julga Ricardo Salgado, entre outros.

Todos devem ser chamados, pois, a concorrer para a eficácia e eficiência da Justiça, aportando, objetivamente, ao nível do articulado e do texto, o seu contributo facilitador para o resultado final: a clareza, a transparência e a evidência da sua perspetiva, quanto à matéria a decidir”, lê-se no relatório, segundo o qual “o tempo excessivo é inimigo da aplicação da Justiça”, na linha da acusação e na da defesa de boa-fé, devendo ser promovidos comportamentos que levem o processo, em vez de fio processual linear e escorreito, que compõe a tarefa no seu tempo razoável e útil, a ser um emaranhado de fios que se entrelaçam e enodam, impedindo o julgador, qual tecelão diligente, de cumprir “o desiderato que é a decisão final”.

O grupo alerta para o facto de a fase de instrução servir, não raro, para produzir a contraprova reunida no inquérito, com violação do objetivo inicial para que foi criada, originando, nos processos de excecional complexidade, durações excessivas e alocação de meios humanos e materiais que não lhes deveriam estar afetos. Ora, a instrução, como fase facultativa do processo penal, tem lugar após o encerramento do inquérito, para verificar se a acusação ou o arquivamento se justificam. Pode preceder o julgamento, se houver despacho instrutório de pronúncia, ou fazer terminar o processo, se o despacho for de não pronúncia. Por isso, se propõe a restrição dos atos de instrução ao debate instrutório, com a possibilidade excecional de produção de prova, mas só em situações concretas. Com efeito, como diz o relatório, são variados os procedimentos judiciais que conformaram a instrução “numa fase meramente contraditória à do inquérito, com produção de prova ex novo, cujo escopo é o de contraditar os factos apurados em inquérito, com a perversidade processual que resulta da observância do princípio da imediação, perante o decisor, apenas quanto a essa nova prova”.

Os magistrados defendem que, usada como um pré-julgamento, a instrução distorce a sua finalidade de confirmação da decisão de acusar ou de arquivar, baseada na prova adquirida em inquérito, o que se não consente na estrutura concetual do nosso processo penal.

Nestes termos, consideram:

* A instrução será constituída só pelo debate instrutório, a agendar no despacho que admite o requerimento de abertura da instrução, praticando-se os atos excecionais de produção de prova, se se justificarem. Não é uma fase de contraprova da prova já adquirida, mas, se necessário e na exata medida, a “complementação desta última, para habilitar o julgador a ultrapassar a sua dúvida com vista à boa decisão da causa”. Excecionalmente, será possível, pela natureza do ato ou por outro motivo justificado, tal produção ser prévia ao debate instrutório.

* Prevê-se a possibilidade de o despacho de pronúncia ou de não pronúncia ser notificado aos sujeitos processuais, sem obrigatoriedade de agendar diligência de leitura, o que não obsta a que o juiz a agende, se o entender conveniente, devendo, então, manter a instrução, mas limitando-a à discussão de questões de direito que possam evitar que o arguido vá a julgamento, e bem assim à análise da prova indiciária que sustenta a acusação ou determina o arquivamento.

* O processo pode seguir para julgamento, mesmo no caso de alteração substancial de factos, dando ao arguido um prazo razoável mais dilatado para se defender. Trata-se de verdadeira alteração de factos (embora substancial) e não de objeto processual (verdadeiramente) novo, caso em que só uma investigação do Ministério Público (MP) seria legítima.

As principais propostas de medidas concretas são:

* Com o objetivo de munir o sistema processual penal de mecanismos que permitam contrariar a dedução, na fase de recurso, de requerimentos e incidentes manifestamente infundados, utilizados como estratégia para evitar o cumprimento julgamento ou do trânsito em julgado, importa-se para o processo penal “a figura da defesa contra as demoras abusivas”, consagrada no artigo 670.º do Código de Processo Civil (CPC). Pode, assim, o juiz condenar o visado no pagamento de uma soma entre duas e 100 Unidades de Conta (UC), ou seja, cerca de 200 euros a 100 mil euros. E aumentam-se os limites máximos da taxa de justiça em processo penal, ajustando a tributação ao custo efetivo e às particularidades de cada processo de especial complexidade, devendo manter-se inalterados os limites mínimos.

* É de proceder à afetação de funcionários mais competentes e com mais experiência aos processos de especial complexidade, pela criação de equipas com preparação para o exercício de funções nesse contexto, a servirem o processo em exclusividade, bem como criar um sistema automatizado de tradução de documentos que garanta a produção imediata de traduções, sem a demora e os custos inerentes à contratação de profissionais para o efeito, e implementar a interpretação linguística em tempo real, permitindo que, em audiência ou noutra diligência processual, os participantes se exprimam na sua própria língua, podendo os restantes visualizar a interpretação em tempo real.

* Em termos de assessoria jurídica, os juízes terão um assessor de ciências jurídicas privativo, que deve, sob supervisão do juiz, realizar tarefas de mero expediente e de gestão quotidiana, a fim de libertar o juiz para a sua função jurisdicional; torna-se possível a delegação no assessor jurídico de funções específicas relativas ao agendamento das sessões de julgamento e da inquirição de testemunhas, da organização de ficheiros de prova, de recursos pendentes ou concluídos, de listagens temáticas, bem como da elaboração de projetos de despacho ou da pesquisa da legislação, da jurisprudência e da doutrina necessárias à preparação das decisões judiciais; e deve organizar-se a assessoria de especialistas, a constarem de lista de assessores, podendo o assessor técnico, com previsão expressa no CPC, ser convocado a acompanhar o juiz, pontualmente ou durante a audiência de julgamento.

* Deve ser criada a figura do assistente virtual do juiz, que permita a recolha e agregação da informação relevante para a realização da decisão judicial, sobretudo, em tarefas instrumentais que, atualmente, condicionam o tempo de execução. Em concreto, no quotidiano do juiz, há tarefas que podem ser feitas de forma automatizada, por não requererem as especiais qualificações do magistrado.

* Devem juiz e assessores dispor de ferramentas de pesquisa para, com transparentes sistemas de IA rastreáveis e suscetíveis de controlo, permitindo pesquisas avançadas (não se cingindo à pesquisa por termos, datas ou códigos), pela interpretação dos elementos processuais, pela perceção do respetivo contexto e pelo estabelecimento de relações entre os mesmos.

* Deve promover-se um novo modelo de elaboração e de apresentação de peças processuais de elevada dimensão (acórdãos e decisões instrutórias), que permita a decomposição por módulos, para a simplificar a sua construção, bem como a comunicação ao cidadão.

* Há que valorizar a cultura da síntese e da clareza na redação das peças processuais e nas decisões judiciais.

* As salas de audiência devem estar equipadas com computadores, com monitores, com sistemas de som adequados e com telemóveis capazes de estabelecer ligação com intervenientes processuais. E devem disponibilizar-se computadores ágeis e ecrãs múltiplos aos magistrados, possibilitando a eficiente execução das aplicações informáticas e a consulta de processos em formato digital, com a ligação dos meios de prova.

* É de esclarecer, expressamente, que o MP pode arquivar o inquérito, nos crimes particulares (ponderar a descriminalização da injúria e difamação, com reforço dos meios civis).

* Tem se se garantir ao arguido o direito de se sentar junto do advogado durante o julgamento.

* E há que reforçar o controlo do segredo de justiça, quando seja imposto.

São conclusões alinhadas com as Grandes Opções do Plano para 2024-2028, publicadas em Diário da República, em janeiro, que identificam os megaprocessos como um dos maiores desafios para a justiça penal e reforçam a necessidade de alterações legislativas para acelerar a ação dos tribunais. Também o Programa do Governo vincou a importância de reformar a fase de instrução criminal e de implementar medidas que garantam maior celeridade e eficiência, como a simplificação das notificações e mais eficaz gestão processual. O relatório será enviado à ministra da Justiça, aos grupos parlamentares e ao presidente da Assembleia da República.

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O grupo de trabalho em causa foi criado pelo CSM, em outubro de 2023, para identificar os problemas que atrasam os megaprocessos e propor soluções que “promovam uma justiça penal mais célere, eficaz e acessível”, e para reforçar as “práticas de gestão processual e promoção de uma cultura de eficiência nos tribunais” bem como “a identificação de recursos necessários, como ferramentas tecnológicas, plataformas digitais e equipas de assessoria especializadas”.

O trabalho desenvolvido pelo grupo, que durou pouco mais de um ano, incidiu sobre a análise dos constrangimentos processuais e extraprocessuais.

A duração total de cada megaprocesso até trânsito em julgado, sem possibilidade de recurso, é, em média, de oito anos, sendo a fase de investigação mais demorada do que a de julgamento. 

O estudo foi realizado a partir de 140 processos de criminalidade complexa distribuídos na comarca de Lisboa, desde 2013 até 2023. Na totalidade dos processos analisados, 77% têm uma fase de investigação mais demorada, face à de julgamento. Contudo, os processos mais morosos na fase de inquérito não correspondem aos mais demorados na fase de julgamento.

Entre as causas apontadas para a morosidade nos processos está o número de testemunhas, quando são ouvidas mais do que uma vez ou quando se ouvem menos testemunhas por sessão, o número de sessões de julgamento e a existência de incidentes, como pedido de escusa do juiz, pedido de perícias, recusas do juiz, arguição de nulidades ou conflito negativo de competência.
Entre todas as fases do processo, a duração total até trânsito em julgado na Comarca de Lisboa é, em média, de oito anos e um mês. Ainda assim, 6% dos processos demoram mais de 15 anos até ficarem concluídos. Já nos 57 processos sem trânsito em julgado a decorrer na Comarca de Lisboa, a média é de nove anos e três meses, ou seja, superior aos processos que já transitaram em julgado. O maior número de processos situa-se entre os oito e nove anos (21%). Cerca de 9% dos processos demoram mais de 15 anos.

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O grupo propõe a criação de um tribunal ou juízo vocacionado para o julgamento de processos de elevada complexidade, sem circunscrição a tipos de crimes, mas antes por referência à dimensão do objeto, com natureza homóloga à da Audiencia Nacional Espanhola – um tribunal para megraprocessos. Esta proposta “é para ser estudada para o futuro” e, se for aprovada, provocará uma mudança de paradigma na Justiça portuguesa.

“Em Portugal não há tribunais especializados na área criminal”, explica Nuno Matos, presidente da Associação sindical de Juízes (ASJ), que tem “reservas”, em relação à proposta, alertando: “Tendo em conta o volume processual, um tribunal desses poderia funcionar só com um coletivo de juízes e isso pode provocar a pessoalização das decisões, como já aconteceu no Tribunal Central de Instrução Criminal [TCIC] e que teve de ser corrigido.”

O grupo propõe, ainda, problematizar a relação entre o trânsito em julgado e a execução da decisão condenatória confirmada em 2.ª instância. Ou seja: se um tribunal superior confirmar a decisão da 1.ª instância, a sentença é executada. Além disso, sugere avaliar “a viabilidade da implementação de um sistema de acordos de sentença” e admite a hipótese de julgamentos de processos que vêm dos juízos centrais, mas que não tenham grande gravidade, serem julgados por um tribunal singular, ao invés do coletivo de três juízes.

Os magistrados acentuam que a consagração na nossa ordem jurídica dos acordos de sentença na fase de julgamento e a criação de tribunais especializados para tramitar processos especialmente complexos “demandam uma análise mais alargada, que extravasa o direito adjetivo penal, não compaginável com a limitação de tempo disponível para a elaboração deste trabalho. E, para o imediato, defendem que a fase de instrução seja espartilhada e “composta apenas por um debate instrutório onde decorre, se a ela houver lugar, a produção de prova”. Ao invés do que sucede agora, só serão ouvidas testemunhas em casos excecionais e se o juiz o considerar imprescindível.

A ideia é acabar com os pré-julgamentos e fazer da instrução o que o legislador idealizou: saber se o MP tem ou não indícios suficientes para um julgamento.

Os magistrados, identificando como um dos fatores de lentidão dos megaprocessos o arrastamento da audiência de julgamento e de recursos, propõem que se possa recorrer para o STJ, só em caso de condenações a penas superiores a oito anos, em vez dos cinco atuais. Assim, se a Relação confirmar a decisão da 1.ª instância, só é possível recorrer, se a pena for superior a 12 anos de prisão. No caso de recurso para o Tribunal Constitucional (TC), deve ser possível ao TC, a título excecional, conferir efeito devolutivo ao recurso, isto é, não suspender o processo.

Por fim, pretende-se consagrar uma norma geral sancionatória para comportamentos processuais impertinentes e causadores de atrasos injustificados na marcha do processo penal.

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A terem êxito tais propostas, teremos uma boa pedrada no charco da reforma da Justiça. Porém, tribunais especiais em processo penal, não! Já os tivemos e são de má memória.

2025.02.18 – Louro de Carvalho

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