segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Deus conta connosco para concretizar o seu desígnio de salvação

 
A liturgia do 5.º domingo do Tempo Comum no Ano C privilegia a questão do chamamento de Deus, que postula generosa resposta para cooperar com Deus na salvação da Humanidade.
primeira leitura (Is 6,1-2a.3-8) relata o chamamento do profeta Isaías, o qual, enquanto dialoga com Deus, percebe que Deus tem planos para ele. E apesar de frágil e indigno, abraça o convite de Deus e responde, convictamente: “Eis-me aqui: podes enviar-me”. Tal resposta é o protótipo da resposta do homem ou da mulher ao Deus que chama.
Isaías, de origem nobre e culto, nasceu por volta do ano 760 a. C., no tempo do rei Ozias, e viveu em Jerusalém. Sentiu-se chamado por Deus à vocação profética, quando tinha cerca de 20 anos. Entretanto casou e teve filhos. Desconhece-se o nome da esposa, mencionada como “a profetiza”. Por seu turno, os filhos receberam nomes simbólicos: Sear Yasub (“um resto voltará”) e Maher Salal Hash Baz (“toma despojos, apanha velozmente a presa”). Neste pormenor, Isaías identifica-se com Oseias: toda a sua vida, inclusive a familiar, está ao serviço da mensagem de Deus.
O caráter de Isaías pode conhecer-se através da sua obra: é homem decidido, sem falsa modéstia, que se oferece voluntariamente a Deus, aquando do chamamento vocacional; participa nas decisões relativas ao Reino, falando com autoridade aos altos funcionários e mesmo aos reis; é enérgico, sem nunca desanimar; é inimigo da anarquia, mas sem apoiar as classes altas.
Como é normal no profeta, os maiores ataques são dirigidos aos grupos dominantes: autoridades, juízes, latifundiários, políticos. É duro e irónico com as mulheres da classe alta de Jerusalém. Defende com paixão os oprimidos, os órfãos, as viúvas, o povo explorado e desencaminhado pelos governantes.
O trecho em apreço narra o momento em que Deus chama Isaías à vocação profética. O cenário é o templo de Jerusalém, construído por Salomão no séc. X a.C., o lugar onde Deus residia no meio do Povo e onde o Povo ia encontrar-se com Deus. Essa experiência vocacional sintetiza-se em quatro itens: a consciência da santidade de Deus; a verificação de que a vida de Judá é de pecado (pessoal e coletivo); o reconhecimento da necessidade do castigo; e a afirmação da esperança na salvação de Deus. E são temas recorrentes na pregação de Isaías.
O trecho de Is 6,1-8 é uma reflexão sobre o mistério, pessoal e sempre íntimo, da vocação. Isaías descreve a sua experiência do chamamento de Deus, através de imagens que traduzem o que sentiu, ao perceber que Deus contava com ele para a profecia.
Isaías estava no templo de Jerusalém, quando ouviu o chamamento de Deus. Os elementos com que Isaías orna a descrição refletem a sua compreensão da grandeza, da omnipotência, da santidade e da transcendência de Deus. Deus está sentado num trono elevado, como rei que governa o Mundo e preside à História dos homens. É tal a sua grandeza que a fímbria do seu manto enche todo aquele espaço sagrado. À volta de Deus, fazendo parte da sua corte, estão os anjos (os “serafins”) que aclamam a sua santidade, a sua realeza universal, a sua glória. O “fumo” que enche o templo e o tremor que agita os gonzos das portas quando se ouve a voz de Deus, são elementos veterotestamentários para compor o cenário das manifestações de Deus. Foi esse Deus santo, majestoso, Senhor do Mundo e da História que, por insondáveis e incompreensíveis desígnios para o homem, escolheu e chamou Isaías para a missão profética.
Ante a grandeza e a santidade de Deus, Isaías sente-se frágil e, sobretudo, indigno. Porém, Deus tem uma missão para ele; a fragilidade e a indignidade daquele homem que Deus quer para o seu serviço não são obstáculo para o Deus que tudo pode. Portanto, Deus capacita Isaías para a missão que lhe vai entregar: um dos anjos que estava junto de Deus vem ao encontro de Isaías com um carvão ardente tirado do altar, toca-lhe com ele os lábios, purificando-o e tornando-o apto para ser profeta. De lábios purificados, Isaías já pode ser palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens. O profeta pode aceitar a missão. Apesar dos seus limites humanos, tem a autoridade de Deus para fazer ouvir, no Mundo, a Palavra de Deus.
Depois, rendido ao Deus santo e poderoso que o chama, Isaías responde: “Eis-me aqui: podes enviar-me”. Entrega-se nas mãos de Deus e põe-se, incondicionalmente, ao serviço de Deus.
Embora a vocação seja sempre experiência única e pessoal, nunca diverge dos traços aqui definidos: o caminho vocacional trilhado por Isaías é o que qualquer pessoa chamada por Deus tem de percorrer.
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O Evangelho (Lc 5,1-11) oferece-nos uma imagem do “barco de Simão Pedro”, metáfora da comunidade cristã. Jesus está sentado a ensinar os que se dispõem a escutá-Lo. Os que viajam no barco devem orientar-se pela Palavra e pelas indicações de Jesus. O Mestre quer entregar-lhes uma missão: a de “pescadores de homens”. São, assim, chamados a trabalhar com Ele na libertação de todos os homens e mulheres afogados no sofrimento sem sentido.
Jesus encontra-Se nas margens do Mar da Galileia (“lago de Tiberíades” ou “lago de Kineret”), rodeado por grande multidão que viera “para escutar a palavra de Deus”. Trata-se de um lago de água doce, rico em peixe, com cerca de 11 quilómetros de largura e 21 quilómetros de comprimento máximo, e cuja principal fonte de alimentação era o rio Jordão.
Nas margens do Mar da Galileia situavam-se diversas cidades, como Tiberíades ou Cafarnaum. Cafarnaum, onde Pedro e o seu irmão André residiam, era uma cidade estratégica, pois estava ao lado da Via Maris, importante via de comunicação a ligar o Egito à Síria e ao Líbano, passando por Cesareia Marítima (onde residia habitualmente o prefeito romano da Judeia). Jesus, depois de ter estado algum tempo com João Batista, no deserto de Judá, estabelecera-se em Cafarnaum.
Segundo o esquema teológico de Lucas, Jesus começara, há pouco, o seu ministério na Galileia. Na sinagoga de Nazaré apresentara o seu programa: anunciar a “Boa Nova” aos pobres, libertar os cativos, iluminar os caminhos de quem vivia na escuridão, proclamar a chegada do tempo novo de graça e de paz; e, logo depois, na sinagoga de Cafarnaum, deixara toda a gente maravilhada com o seu ensino e com os seus gestos poderosos.
Até agora, Jesus tinha estado sozinho na tarefa de anunciar o Reino de Deus. Na secção que começa neste capítulo e que vai até 6,16, Jesus começa a rodear-se de discípulos. Algumas pessoas respondem ao anúncio e aceitam colaborar com Jesus na missão.
A atuação de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, no sábado anterior, tinha atraído sobre Ele a atenção das gentes. Rodeiam-no muitas pessoas, curiosas sobre aquele profeta itinerante, mas intuindo que vem de Deus e com uma mensagem de Deus. Ali perto estão alguns pescadores a limpar as redes, depois de uma noite de pesca sem qualquer resultado. Muitos dos que habitavam nas margens do Mar da Galileia viviam da pesca.
Em pé junto da linha de água, rodeado pela multidão, Jesus apenas é escutado por alguns que estão mesmo ao seu lado. Subiu, então, para o barco de Simão Pedro, pescador que Jesus conhece bem e pede-lhe que afaste um pouco o barco da margem. Senta-se no barco e começa a falar às pessoas que O escutam a partir da margem. Agora, está na posição de rabi, sentado na cátedra, a instruir os discípulos.
Quando acaba de falar, a multidão afasta-se lentamente. Jesus, ainda no barco, dirige-se a Simão e convida-o a lançar as redes. Do ensino, passa à ação. Precisa da colaboração dos pescadores que estão com Ele no barco. Porém, Simão objeta à pretensão de Jesus: ele e os companheiros estão cansados depois de uma noite de trabalho; a manhã não é a melhor altura do dia para pescar; ali não há peixe, pois passaram toda a noite a tentar e não apanharam nada. Apesar de tudo, Simão acolhe a sugestão de Jesus. Interna-se no lago e, com a colaboração de outros, lança as redes. Essa confiança na palavra de Jesus é recompensada: as redes enchem-se de tal quantidade de peixes que ameaçam romper-se. Simão faz sinal a alguns companheiros (Tiago e João, filhos de Zebedeu) que estavam noutro barco para que viessem ajudá-lo. Os dois barcos encheram-se de tal maneira que quase se afundavam.
Simão estava mais bem preparado do que os outros para entender Jesus. Já o conhecia e O tinha acolhido em casa. Reagiu, lançando-se-Lhe aos pés – gesto de humildade – e reconhecendo-O como “Senhor” (“Kýrie”). No texto grego do Antigo Testamento, o vocábulo designa o próprio Deus. Pedro sente-se pequeno e indigno ante Jesus, como sucede com todos os que são testemunhas da manifestação de Deus. Todavia, Jesus não considera a indignidade de Pedro como óbice. Os outros envolvidos na pesca comungam do mesmo espanto e admiração de Simão.
O episódio conclui-se com Jesus a anunciar a Simão a sua vocação futura: “pescador de homens”. Lucas não explica o que Jesus quer dizer com esta expressão. Porém, depois deste encontro e desta pesca, Simão e os seus companheiros de pesca “deixaram tudo e seguiram Jesus”.
Esta narração lucana é uma catequese sobre o projeto de Jesus e a nossa envolvência nesse projeto.
O barco de Simão Pedro é metáfora da Igreja, comunidade cristã. É nela que Jesus entra e se senta; e é dela que dirige a sua Palavra ao Mundo (“pôs-Se a ensinar, da barca, a multidão”). Os que estão “na margem” e interessados na proposta de Jesus voltam-se para o “barco de Pedro” e escutam, com toda a atenção, a palavra libertadora de Jesus.
Os que estão no barco de Pedro são os que optam por Jesus. Serão gente que trabalha muito, mas o seu esforço é inglório, se Jesus não estiver com eles. O seu trabalho só dá fruto, quando seguem as orientações de Jesus. Às vezes, as propostas de Jesus parecem ilógicas, incoerentes, ridículas, mas é preciso confiar em Jesus, entregar-se nas mãos d’Ele e cumprir as suas indicações (“porque Tu o dizes, lançarei as redes”). Então, a pesca é abundante.
Os que viajam no barco com Jesus conhecem-No. Sabem que veio de Deus e que a sua proposta gera vida e fecundidade. Por isso, como Simão Pedro, reconhecem Jesus como “o Senhor”, o título que a comunidade cristã primitiva dava a Jesus ressuscitado, aquele que preside ao Mundo e à História. Sentem-se pequenos e indignos ante o Senhor, mas são pessoas normais – isto é, frágeis, pecadoras, cheias de defeitos e qualidades – que Ele convida para irem Consigo no barco.
Aqueles que acolhem a proposta de Jesus e que escutam as suas indicações são chamados a serem “pescadores de homens”. Para entendermos esta expressão, temos de recordar o que significava o mar no ideário judaico: o lugar onde residiam os espíritos e as forças demoníacas que roubavam ao homem a vida e a felicidade. Ser pescador de homens é, pois, continuar a obra libertadora de Jesus, procurando libertar o homem de tudo o que o impede de ter vida. É salvar o homem de morrer afogado no mar da opressão, da maldade. Trata-se da mesma missão de Jesus: “anunciar a boa nova aos pobres”, “proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos”, “restituir a liberdade aos oprimidos”, “proclamar o ano da graça do Senhor”.
Os que se dispõem a trabalhar com Jesus devem deixar tudo – as seguranças, os confortos, as certezas, as cadeias que os prendem – para irem atrás de Jesus. Esta alusão ao desprendimento total do discípulo, típica de Lucas, sugere que a generosidade e o dom total devem ser sinais distintivos das comunidades e dos crentes que seguem Jesus.
Por fim, é de anotar o papel de Simão Pedro assume nesta catequese: a comunidade lucana é uma comunidade estruturada, que reconhece em Pedro o “porta-voz” de todos e o principal animador da comunidade de Jesus, que navega nos mares da História.
***
Na segunda leitura (1Cor 15,1-11), Paulo fala da ressurreição de Cristo, que nos abre perspetivas novas e nos faz levar a vida com esperança, pois somos chamados, como Paulo, a crer e a ser testemunhas da vida nova que brota de Jesus e da sua proposta. Assim, recorda aos cristãos de Corinto a “Boa Notícia” que lhes anunciou e que eles acolheram com fé. É por esse evangelho que os Coríntios serão salvos. Não foi algo que Paulo inventou, mas que recebeu (“o que eu mesmo recebi”) e que passou aos Corintios (“transmiti-vos”). Os dois verbos “receber” e “transmitir” são utilizados no rabinismo, para descrever o processo de transmissão da fé.
Ora, no centro da fé dos cristãos, está a ressurreição de Cristo: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. Este segmento poderá ser uma primitiva confissão de fé utilizada na pregação cristã dos primeiros tempos. Talvez Paulo tenha em mente Is 53,8-12 (o 4.º poema do Servo de Javé) e Os 6,2. Porém, o mais certo é que fale a partir de acontecimentos salvíficos previstos em numerosas passagens veterotestamentárias e, em particular, nos textos proféticos. Em todo o caso, o apóstolo considera que a ressurreição de Cristo está em consonância com as Escrituras.
Como comprovativo da ressurreição de Jesus, Paulo cita seis aparições do Ressuscitado: apareceu “a Pedro e, depois, aos Doze; em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, dos quais a maior parte ainda vive, enquanto alguns já faleceram; posteriormente, apareceu a Tiago e, depois, a todos os apóstolos”; em último lugar, apareceu a Paulo, que se considera o mais indigno de todos os apóstolos. Nenhuma dessas pessoas testemunhou o momento exato em que Jesus saiu vivo do sepulcro. O que atestaram é que Jesus, depois de morrer na cruz, lhes apareceu cheio de vida e elas se tornaram testemunhas de que Jesus tinha derrotado a morte. E foi esta a “Boa Notícia” que Paulo transmitiu aos Coríntios e que eles acolheram pela fé.
A ressurreição de Jesus é facto real, mas sobrenatural e meta-histórico que ultrapassa as categorias do espaço e do tempo e entra na dimensão da fé. A experiência dos que se encontraram com Jesus vivo é uma experiência de fé, mas verdadeira e convincente. A prová-lo está a espantosa transformação que todos sofreram, depois de se encontrarem com o Ressuscitado: de homens cheios de medo, de frustração e de cobardia, converteram-se em destemidos arautos de Jesus, vivo e ressuscitado. Também os cristãos de Corinto poderão – e todos nós – fazer a experiência do encontro com Cristo ressuscitado. Para tanto, há que escutar as Escrituras, deixar-se iluminar pelo Espírito, acolher a tradição eclesial. E, assim, acontecerá o encontro com Jesus, vivo e ressuscitado, e a transformação que Ele opera nos crentes.

2025.02.10 – Louro de Carvalho


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