quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

No III centenário de um dos maiores vultos do iluminismo português

 

A 15 de fevereiro, decorreu, em Mação, no distrito de Santarém, uma conferência a assinalar os 300 anos do nascimento do Padre António Pereira de Figueiredo.

Na verdade, a 14 de fevereiro de 1725, nasceu o célebre de outrora, mas muito esquecido, padre António Pereira de Figueiredo, oratoriano, depois (1769), padre secular e, nos últimos dias de vida, oratoriano de novo. Foi importante “latinista, filólogo, canonista e teólogo”, além de político e músico. Neste ano, o concelho de Mação está a prestar homenagem ao “ilustre filho” da terra e a convidar ao conhecimento da obra de “um dos maiores eruditos do século XVIII”.

A primeira exposição geral sobre a sua vida e obra foi apresentada por três competentes jovens alunas do ensino secundário do Agrupamento de Escolas Horizonte Verde, de Mação. Seguiu-se um painel de aprofundamento, com a intervenção de vários adultos, designadamente, o pároco local, um historiador e uma jornalista, ambos do concelho, e José Carlos Gueifão, o homem que descobriu, há 30 anos, o padre Pereira de Figueiredo e nunca mais deixou de desafiar os poderes locais para a necessidade de reconhecer a importância deste homem da terra. Em resultado desse labor, existe, há anos, no centro da vila um monumento e está a decorrer um programa de comemorações que inclui, entre outras iniciativas, a edição, em maio próximo, de um livro sobre o homenageado. A fechar a conferência, um grupo de alunas do mesmo agrupamento de escolas dançou a coreografia “Sapientia”, ao som de uma peça composta por Pereira de Figueiredo e ali executada pela Filarmónica local.

Pereira de Figueiredo foi o autor de uma nova gramática do Latim e o teólogo que, em apoio à política do Marquês de Pombal, defendeu o regalismo, ou seja, a ideia de que o chefe de Estado tem direito a intervir em assuntos internos da Igreja Católica. Compreende-se a importância política desta linha teológica, no tempo do absolutismo, e percebe-se o papel de primeira ordem que Pereira de Figueiredo teve no conflito de Pombal com os Jesuítas, ao tempo adversários dos Oratorianos. E percebe-se que, após a morte de Sebastião José de Carvalho e Melo, tenha caído Pereira de Figueiredo num conveniente esquecimento.

Registe-se que Pereira de Figueiredo fez “a primeira tradução completa da Bíblia para Português”, que foi ainda corrente em Portugal no 1.º quartel do século XX e continua a ser publicada no Brasil. O trabalho de tradução e publicação durou 18 anos a ser completado. Inicialmente, foi publicado o Novo Testamento, entre 1778 e 1781, em seis volumes. O Antigo Testamento foi publicado, entre 1782 e 1790, em 17 volumes (a Bíblia tem, ao todo, 23 volumes. Por ser versão em Português mais recente, foi considerada melhor que a de Ferreira d’Almeida, apesar de não se basear nas línguas grega e hebraica. A tradução de Pereira de Figueiredo baseia-se na Vulgata Latina. A Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira editou revisões de 1821 (uma é completa) e, em 1828, (sem os deuterocanónicos). Foi bem acolhida entre católicos e protestantes. No Brasil, a Bíblia do Padre Figueiredo é ainda hoje publicada, em versão corrigida em português moderno.

O padre António Pereira de Figueiredo faleceu em 1797, como oratoriano, de novo, depois de ter composto mais de 150 livros.

***

De Pereira de Figueiredo, refere a Academia das Ciências de Lisboa que foi padre da Congregação do Oratório de Lisboa, que estudou Latim e Música no Colégio Ducal de Vila Viçosa. Em 1744, matriculou-se nos cursos de Filosofia e de Teologia na Casa do Espírito Santo da Congregação do Oratório, onde foi, mais tarde, professor de Latim, de Retórica e de Teologia. Foi deputado da Real Mesa Censória, deputado da Junta do Subsídio Literário e oficial maior de Línguas da Secretaria do Estado dos Negócios Estrangeiros.

De acordo com o Professor Cândido dos Santos – que publicou o livro “Padre António Pereira Figueiredo – Erudição e Polémica na Segunda Metade do Século XVIII” (Roma Editora, 2005) –, o padre António Pereira de Figueiredo, “uma das mais fortes inteligências que Portugal tem gerado”, no dizer de Alexandre Herculano, impõe-se como um dos grandes vultos da cultura portuguesa pela sua enorme erudição e fecundidade produtiva. Latinista de renome europeu, historiador, canonista e teólogo, serviu apaixonadamente a política pombalina. Combateu os Jesuítas e denunciou os abusos da Cúria Romana. Tomou posição sobre problemas eclesiológicos e teológicos do seu tempo, no que desagradou a muitos que, por isso, o tentaram sepultar no esquecimento. Trabalhou pela implantação de uma igreja nacional, à imagem da anglicana, mas nunca defendeu o cisma ou a separação da Igreja Romana.

Parece ter-se antecipado à lógica napoleónica e feito reviver o beneplácito régio, digo eu.

A tradução da Vulgata latina, em 23 volumes, é um monumento literário que honra a cultura nacional. As suas obras estão espalhadas pelas grandes bibliotecas estrangeiras e foram editadas e reeditadas, vezes sem conta, em alguns países.

Não obstante, a maior síntese de informação sobre o iluminista tricentenário encontra-se no site do Instituto de Camões, pela pena de Pedro Calafate, de que se retém o mais pertinente.    

Religioso da Congregação do Oratório (n. 1725 – m. 1797), “foi figura cimeira do iluminismo em Portugal, tendo sido estreito colaborador do marquês de Pombal”. Iniciou o contacto com as Letras no Colégio Ducal de Vila Viçosa, onde estudou Latim, Latinidade e Música. Transitou, posteriormente, para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e, em 1744, para a Casa do Espírito Santo da Congregação do Oratório, matriculando-se nos cursos de Filosofia e de Teologia. Nesta Congregação, que aglutinava parte relevante do esforço de renovação do espírito filosófico em Portugal, foi professor de Latim, de Retórica e de Teologia.

No domínio do Latim, celebrizou-se com a publicação, em 1753, do “Novo Methodo da Grammatica Latina”, que gerou enorme polémica, pela simplificação metodológica que propunha e pela forma como punha em causa a gramática do jesuíta Manuel Álvares, que se tornara obrigatória em todas as escolas jesuítas do Mundo, cujo método de pedagógico ficou conhecido como “método alvarístico – método que tem sido objeto de diatribes académicas, seja a favor, seja contra, como foi, por exemplo, com o padre Luís António de Verney, no Verdadeiro Método de Estudar, para ser útil à República e à Igreja: proporcionado ao estilo, e necessidade de Portugal (1746).

Em 1759, Pereira de Figueiredo publicou “Elementos de Invenção e Locuçam Retorica ou Princípios da Eloquência”, onde resume, com intenção didática, as lições de Retórica, proferidas, três anos antes, na Casa das Necessidades. Esta obra, mediante a qual faz incursão no domínio das regras da Eloquência, vem desprovida de originalidade, pois fora decalcada sobre o pensamento de Vossio, e denota o Pereira Figueiredo com pendor barroco, pela importância conferida à metáfora e à agudeza.

Na Teologia, salienta-se o labor da tradução para vernáculo dos textos bíblicos e a redação, de parceria com Manuel do Cenáculo, do texto da reforma do Curso de Teologia nos Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772. Aí se defendia uma teologia positiva ou “Exegética”, assente nos textos sagrados e na Tradição, que é considerada como “a primeira e principal de todas as disciplinas teológicas”. A ambiência iluminista do texto transparece, ainda, pela importância conferida ao método de ensino e à exposição das matérias teológicas, de acordo com o caráter pedagogista do nosso iluminismo, baseado na rígida ordem expositiva, decalcado do “método geométrico”. Por essa via ou método, procurava-se garantir uniformidade, a fim de que, como exigia o despotismo esclarecido, “não seja livre a cada teólogo idear e formar sistemas diversos e conseguir que se aprovem para uso das escolas”. Todavia, o aspeto que mais o fará sobressair como arquiteto dos desígnios pombalinos gira em torno do esforço teórico que empreendeu, para redefinir o problema das relações Igreja-Estado, num “contexto regalista”.

O oratoriano emerge, assim, como um dos principais teóricos do regalismo pombalino, cujas obras se afiguraram necessárias, já que, em 1760, se verificara o corte de relações entre o Estado Português e a Santa Sé, atitude que Figueiredo elogia, na “Tentativa Theologica”, como “modo ordinário com que a Majestade e a Soberania dos Príncipes Católicos (sem ofensa da Religião ou do primado de S. Pedro) costumam despicar-se das injúrias e desatenções da Cúria Romana”. A obra de maior vulto que dedica ao tema é o “De Suprema Regum...” (1765), na linha da qual se integram outros títulos seus, como o “Compêndio da Vida e Escritos de Gerson” e a “Carta do Clero de Liège”. O primeiro, que teve rápida difusão no estrangeiro, com tradução em França (1766) e em Itália (1768), é constituído por 16 teses, para demonstrar a supremacia e a autonomia dos príncipes seculares perante o Papa, em matérias do foro temporal, para o que se socorria dos “Suffragia Doctorum Catholicorum” e das “Probationes Ecclesisticae Antiquitatis”.

Na primeira proposição, assume tese paulina segundo a qual o poder tem Deus como autor, após o que aborda o objeto do poder temporal como abarcando tudo o que contribui para a felicidade e para a tranquilidade da sociedade civil, razão por que as leis que regem a sua conservação obrigam a República e a Igreja; a proposição IV pode considerar-se o eixo de toda a obra, pois por ela se declara e tenta demonstrar o caráter “supremo e independente no seu género” de cada um dos dois poderes, de que resulta a ilegitimidade do Papa para depor os príncipes seculares (proposição VI). Segue um conjunto de teses cujo objetivo é atacar as imunidades e privilégios do clero, no seio da sociedade civil (proposições X a XVI), que já tinham sido objeto da crítica de D. Luís da Cunha, no seu Testamento Político. Para o oratoriano, tais privilégios não emergem do Direito Divino: “Quidquid bonorum temporalium Ecclesia possidet, sub Regum jure possidet” (proposição XIV). Assim, é legítimo aos reis exigir aos membros do clero o pagamento de impostos ou tributos, sempre que tal seja necessário. Através destas 16 teses não só se assegurava a independência do poder temporal perante o espiritual, como, no conceito iluminista de sociedade civil, se garantia um maior nivelamento de todos os grupos sociais, incluindo a Igreja e a alta nobreza, perante o Estado Absoluto.

O segundo texto a realçar, pois articula-se com o contexto regalista, é a “Tentativa Theologica”, na linha da qual se integram outros títulos, como a “Demonstração Theologica” e a “Carta a Galindo”. Nesses textos, revela-se o Pereira Figueiredo como firme adepto do episcopalismo, formulado por Benjamin Van Espen e Justinus Febronius (Nicolaus van Hontheim de seu nome). Realçando e fundamentando o papel dos bispos como legítimos sucessores dos Apóstolos de Cristo, o episcopalismo reduz o poder interno dos Papas, indo ao encontro dos desígnios do Estado Absoluto. Ao Bispo de Roma apenas era concedida a primazia sobre os restantes membros da Igreja. Todavia, para Figueiredo, “a essência do primado não está em ser o Papa, na Igreja, o único legislador ou Árbitro Supremo dos bispos”, pois o governo da Igreja não segue os cânones do despotismo. Ao invés, cumpre-lhe só vigiar “sobre toda a Igreja, a fim de que cada um cumpra exatamente as obrigações e ministérios da sua linha”: isto é, que o corpo da Igreja se conserve na disposição e harmonia em que Cristo e os apóstolos o deixaram, conservando ilesos os direitos de cada grau e franqueando a cada membro as funções próprias da sua hierarquia.

É de vincar que as teses regalistas e episcopalistas tiveram grande recetividade entre os nossos teóricos das Luzes, de Ribeiro Sanches a Ribeiro dos Santos, passando por Manuel do Cenáculo.

Das obras de Pereira de Figueiredo destacam-se as seguintes:

“Carta de Hum Amigo a Outro Amigo na qual se Defendem os Equivocos contra o Indiscreto Juizo, que Delles Faz o Moderno Critico, Author da Obra Intitulada, Verdadeiro Methodo de Estudar”, Paris, 1751; “Novo Methodo da Grammatica Latina”, Lisboa, 1752 (10 edições até 1797); “Elementos de Invenção e Elocução Rethorica ou Principios da Eloquencia”, Lisboa, 1759; “Principios de Mythologia, illustrados em Breves Notas”, Lisboa, 1761; “Principios da Historia Ecclesiastica”, Lisboa, 1765; “Doctrina Veteris Ecclesiae de Suprema Regum in Clericos potestate...,” Lisboa, 1765; “Tentativa Theologica”, Lisboa, 1766; “Compendio dos Escritos e Doutrina de João Gerson”, Lisboa, 1768; “Responsio Apologetica ad Censuram Gabrieli Galindi...”, Lisboa, 1768; “Compendio da Vida e Acções do Veneravel João Gerson”, Lisboa, 1769; “Demonstração Theologica, Canonica e Historica do Direito dos Metropolitanos de Portugal...”, Lisboa, 1769; “Novos Testemunhos da Milagrosa Aparição de Christo a El Rei D. Afonso Henriques antes da Batalha de Campo d’Ourique”, Lisboa, 1786; “João de Barros, Exemplar da mais Solida Eloquência Portuguesa”. [Uma relação completa no Catalogo das obras impressas e manuscritas de A. P. Figueiredo, Lisboa, 1800.]

***

No “Doutrinas da Igreja sacrilegamente offendidas pelas atrocidades da moral jesuitica, que foram expostas no Appendix do Compendio Historico…” (Lisboa, 1772), a pgs. 158-161, vem sintetizado o controverso pensamento teológico do Padre António Pereira de Figueiredo, com a seguinte nótula: “O pensamento teológico do Padre António Pereira de Figueiredo tem de ser auscultado nas obras de natureza teológica, designadamente, em algumas ‘censuras’, mas sobretudo nas numerosas ‘notas’ da tradução da Vulgata. O que escreve sobre a predestinação gratuita ‘ante praevisa merita’, sobre a graça eficaz por si mesma, a atrição ou contrição imperfeita, e a vontade salvífica universal de Deus, etc. faz dele um teólogo jansenista.”

***

Seja como for, não é lícito ignorar ou proscrever este homem polivalente, de indiscutível mérito, uma das boas exceções a quebrar, em vários campos, o monolitismo do pensamento único em Portugal, na Monarquia Absoluta.

2025.02.19 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário