Ter coração magnânimo é o desafio
da Palavra de Deus proclamada e meditada no VII domingo do Tempo Comum no Ano
C, que nos desafia a ultrapassar a lógica
retributiva taliónica do “olho por olho, dente por dente” ou das contas de ‘mais
e de ‘menos’ para classificarmos os irmãos e as suas ações, e a substituir isso
pela lógica do amor, para sermos verdadeiramente filhos do nosso Pai que está
nos céus.
A primeira
leitura (1Sm 26, 2.7-9.12-13.22-23) apresenta-nos David, homem de
coração magnânimo. Tendo a possibilidade de eliminar Saul, que o perseguia para
o matar, decidiu não erguer a mão contra o “ungido do Senhor”, por acreditar
que a vida pertence a Deus, pelo que só Deus tem o direito de tirar a vida a
alguém.
O trecho em referência relata um episódio que precede
a chegada de David ao poder, por volta de 1015 a.C., pouco antes da morte de
Saul às mãos dos filisteus. Escolhido por Deus, mas perseguido pelo ciumento
rei Saul, David tem de fugir para salvar a sua vida, enquanto espera que se
cumpram os desígnios de Deus. Saul tem notícia de que David está nos arredores
da pequena cidade de Zif (situada nas franjas do deserto de Judá, a cerca de
cinco quilómetros a Sudeste de Hebron) e dirige-se para lá com o seu exército.
Acampa nos arredores. Aproveitando a noite, David e Abisai, um dos seus
guerreiros, penetram no acampamento do exército de Saul, sem serem detetados, e
encontram o rei a dormir. Abisai, o guerreiro que acompanha David na incursão
noturna pelo acampamento de Saul, pede a David que o autorize a matar o rei,
adormecido e indefeso: “Deus entregou-te, hoje, nas mãos o teu inimigo. Deixa
que, de um só golpe, o crave na terra com a sua lança e não terei de o atingir
segunda vez.”
Abisai acredita que a violência é a forma adequada de
lidar com a maldade. A sua lógica é a da velha moral do “olho por olho, dente
por dente”: porque Saul persegue David para o matar, David deve responder com a
mesma moeda. David está ali, com a vida de Saul nas mãos. O perdão, a
indulgência, não fazem parte da perspetiva de Abisai. Ao invés, David não sente
do mesmo jeito. Por isso, diz a Abisai: “Não o mates. Quem poderia estender a
mão contra o ungido do Senhor e ficar impune?” David sabe que a violência não é
a solução que Deus propõe para parar a agressão e que ninguém tem o direito de
tirar a vida a outra pessoa, mesmo que se trate de um inimigo.
De resto, o autor deuteronomista confirmará, mais à
frente, que o perdão é mais eficaz do que a agressão, ao desarmar o violento.
Pouco depois, Saul, ao saber que David lhe respeitara a vida, reconhece que tem
estado a proceder mal e decide assumir uma atitude diferente: “Fiz mal! Vai, meu
filho David, não voltarei a fazer-te mal, pois, neste dia, consideraste
preciosa a minha vida. Procedi insensatamente, cometi um grandíssimo pecado”.
O perdão transforma os corações, enquanto a violência perpetua
o ódio e a maldade.
Ao contar esta história da bondade de David, o teólogo
deuteronomista pretende catequizar os crentes sobre o sentido e a eficácia do
perdão. David é, aqui, o modelo do homem de coração magnânimo, que pode
vingar-se do agressor, mas não o faz, pois sabe que a vida de qualquer pessoa –
e, ainda mais, a de alguém que é o “ungido de Deus” – é sagrada e inviolável. É
notável que, mais de mil anos antes de Cristo, em época de grande brutalidade,
a catequese de Israel ensine que o perdão é a única saída para a violência, ou
que, num tempo em que a vida humana parecia valer tão pouco, se ensine que a
vida de uma pessoa – mesmo que seja a de um agressor – pertence só a Deus e que
só Deus tem direito sobre ela.
***
No Evangelho
(Lc
6,27-38), Jesus define os traços fundamentais da identidade do discípulo.
Para Jesus, o amor – gratuito, incondicional, ilimitado – está no centro dessa
identidade. A razão pela qual Jesus insta os discípulos ao perdão, ao amor aos
inimigos, à oração pelos violentos e pelos maus é o facto de serem filhos do Deus
que é amor. Os filhos de Deus devem mostrar ao Mundo, com o seu modo de viver e
de amar, a bondade, a ternura e a misericórdia de Deus.
Na primeira parte do trecho em apreço, a instrução de
Jesus centra-se na exigência de amar os inimigos. Recorrendo a quatro
imperativos, Jesus diz aos discípulos como devem lidar com os que são maus: “Amai
os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos
amaldiçoam, orai pelos que vos injuriam”. São afirmações contundentes, que vão
contra a corrente e subvertem a lógica que preside às relações humanas.
O Antigo Testamento conhecia a exigência do amor ao
próximo. O livro do Levítico pedia: “Não te vingarás nem guardarás rancor aos
filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Os sábios de
Israel recomendavam dar de comer ao inimigo que tem fome e de beber ao inimigo
que tem sede, para “o fazer corar de vergonha”. Mas, em geral, não se entendia
o amor e o perdão dos inimigos em perspetiva ilimitada e absoluta. O crente veterotestamentário
poderia dirigir um gesto ocasional de amor e de perdão a um adversário que
pertencia ao mesmo grupo social, familiar ou religioso, mas não achava natural
esbanjar o amor e o perdão com os inimigos que não faziam parte do mesmo povo
ou raça. Porém, Jesus nunca deu a entender que o amor e o perdão deviam ser
condicionados por qualquer tipo de barreiras. Para Jesus, é preciso
simplesmente amar o próximo; e o próximo é, sem exceção, o outro. O outro é
também o que é inimigo, nos odeia, nos calunia e amaldiçoa, não pertence ao
nosso povo e está separado de nós por ódios ancestrais. Independentemente da
identidade, da etnia, das razões históricas, das atitudes do outro, o discípulo
de Jesus ama sem condições, sem desculpas, sem exceções.
É neste âmbito que o sermão da planície nos coloca.
Podemos imaginar a perplexidade dos que, então, escutaram aquelas palavras.
Pareciam-lhes uma provocação. Porém, Jesus, apostado em deixar clara a via que
os discípulos eram chamados a percorrer, juntou ao que já tinha dito uma série
de exemplos sobre o modo concreto de viver o amor sem limites nem condições: “A
quem te bater numa face, apresenta-lhe a outra; e a quem te levar a capa,
deixa-lhe a túnica. Dá a todo aquele que te pedir e ao que levar o que é teu,
não o reclames.”
Jesus não pede aos discípulos que assumam uma atitude
passiva e colaborante perante a injustiça e a opressão, mas diz-lhes que, ao
serem confrontados com a maldade, não devem só evitar responder na mesma moeda,
mas fazer tudo o que estiver ao seu alcance para inverter a espiral de ódio e de
violência que destrói as relações e o tecido social. O discípulo de Jesus não
fica sem reagir, suportando a maldade num silêncio cobarde, mas não corta a via
do diálogo e do entendimento, mantém-se disponível para estender a mão ao
agressor, para o recuperar, pois o amor transforma e reabilita, ao passo que o
ódio alimenta a fogueira do confronto e da violência.
A reflexão de Jesus desemboca na regra de ouro da
caridade cristã: “O que quiserdes que os homens vos façam, fazei-lho vós também.”
Não se trata da esperteza de quem faz o bem na mira de ser pago com bem
semelhante, mas do foco no bem do outro, pois o que julgamos bom para nós,
também será, com certeza, bom para o outro.
Jesus fundamenta esta “impossível” exigência de amor
gratuito, sem condições e sem fronteiras, no facto de sermos filhos de um Deus
bom, de um Deus que ama todos sem exceção, mesmo os maus e ingratos. E os
filhos parecem-se com o pai. Se Deus é misericordioso, os filhos também o devem
ser. Têm de identificar-se com o Pai no amor e no perdão; têm de amar sem medida
e sem condições; têm de dar testemunho no Mundo do ser de Deus. O amor, o
perdão, a misericórdia são os sinais identificadores dos verdadeiros filhos de
Deus.
Na segunda parte da perícopa, o tema do amor aos
inimigos enlaça-se com o do julgamento e do perdão. Jesus recorre a quatro frases
imperativas em gradação, para definir a atitude dos discípulos, quanto ao modo
de avaliar os outros e as suas ações: “Não julgueis e não sereis julgados. Não
condeneis e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados. Dai e
dar-se-vos-á”. Do não julgar, avança para o não condenar; do não condenar, para
o perdoar; do perdoar, para a generosidade, para o dar sem medida. O caminho do
discípulo é um caminho sempre a subir em direção ao amor. Este caminho está, a
cada passo, balizado pelo amor de Deus. Ao ver que Deus não julga, não condena,
perdoa sempre, oferece os seus dons, o crente aprende a fazer o mesmo com os irmãos.
É assim que vive a comunidade do Reino.
***
Na segunda
leitura (1Cor 15, 45-49), Paulo convida-nos a encarar a morte física
como a passagem para a nova vida, ao lado de Deus, onde continuaremos a ser nós
próprios, mas sem os limites que a materialidade do nosso corpo nos impõe. Na
base da sua reflexão, está a convicção da profunda transformação que a passagem
da morte à ressurreição implica. A imagem da semente que morre na terra e
reaparece como planta explica o processo de passagem da morte à ressurreição:
os mortos serão objeto de radical transformação, para chegarem ao estado de ressuscitados.
Não se pode falar da mera continuidade entre o corpo terrestre e o corpo
ressuscitado. Ambos são corpos, mas as suas caraterísticas são distintas,
opostas até. Semeado corruptível, o corpo é ressuscitado incorruptível; semeado
na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio
de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual.
“Se há um corpo terreno, também há um corpo
espiritual”. Para iluminar esta antítese, Paulo põe em confronto a figura do
“primeiro Adão” e a do “segundo Adão”. O primeiro, tirado do barro, homem
terreno, é o modelo da nossa humanidade terrena e está destinado à morte. O
segundo, Cristo ressuscitado, vivificado pelo Espírito, é um corpo espiritual e
não está destinado à morte. Os crentes, incorporados pelo batismo em Cristo e
vivificados pelo Espírito, identificar-se-ão com Cristo ressuscitado e
tornar-se-ão, como Ele, um corpo espiritual, o ser humano total, mas vivificado
e transformado pelo Espírito, que está destinado à vida junto de Deus. Paulo
não diz o que é esse “corpo espiritual”. Porém, na tradição bíblica, “espírito”
não é sinónimo de imaterialidade, mas de força, de vitalidade, de poder, de
criatividade, de novidade. Portanto, falar da nossa ressurreição é falar do
estado em que seremos um corpo espiritual, à imagem de Cristo ressuscitado.
Nesse corpo espiritual estará presente o homem inteiro, dotado de novas
qualidades – as qualidades do Homem Novo.
***
Parece-me oportuno proceder à condensação da homilia
de Francisco lida na missa do Jubileu dos Diáconos, lida pelo celebrante, Rino
Fisichella, Pró-Prefeito do Dicastério para a Evangelização, Secção para
as Questões Fundamentais da Evangelização no Mundo:
A mensagem das leituras é sintetizável numa palavra: ‘gratuitidade’ termo caro aos
Diáconos, reunidos para o Jubileu e significativo da dimensão fundamental da
vida cristã e do ministério diaconal, com particular ênfase em três aspetos: o
perdão, o serviço desinteressado e a comunhão.
A proclamação do perdão é tarefa essencial do diácono, pois é elemento
indispensável a qualquer caminho eclesial e condição para a convivência humana.
Jesus mostra-nos a sua necessidade e alcance, ao dizer: ‘Amai os vossos
inimigos.’ Para crescermos juntos, partilhando luzes e sombras, êxitos e
fracassos uns dos outros, é preciso saber perdoar e pedir perdão,
restabelecendo as relações e não excluindo do nosso amor quem nos ataca e trai.
Mundo onde prevalece o ódio pelos adversários é Mundo sem esperança, sem
futuro, condenado a ser dilacerado por guerras, divisões e vinganças
intermináveis. Perdoar significa preparar, em nós e nas comunidades, uma casa
acolhedora e segura para o futuro. E o diácono, investido de um ministério que
o leva às periferias do Mundo, compromete-se a ver – e a ensinar os outros a
ver – em cada um, mesmo nos que erram e causam sofrimento, a irmã e o irmão feridos
na alma e, por isso, mais necessitados do que qualquer outro de reconciliação,
de orientação e de ajuda.
A primeira leitura fala-nos desta abertura de coração, apresentando-nos o
amor leal e generoso de David por Saul, seu rei, mas seu perseguidor.
Mostra-nos, noutro contexto, a morte exemplar do diácono Estêvão, que morre
apedrejado, perdoando aos lapidadores. E, sobretudo, vemo-la em Jesus, modelo da
diaconia, que na cruz, ‘esvaziando-se’ até dar a vida por nós, reza pelos seus
algozes e abre as portas do Paraíso ao bom ladrão.
O Senhor, no Evangelho, descreve o serviço desinteressado numa
frase simples e clara: ‘Fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca.’
São poucas palavras, mas trazem em si o perfume da amizade. Antes de mais, a
que Deus nutre por nós, mas também a nossa. Para o diácono, esta atitude não é aspeto
acessório das suas ações, mas dimensão substancial do seu ser. De facto, ele é
consagrado para ser, no ministério, escultor e pintor do rosto misericordioso
do Pai, testemunha do mistério de Deus-Trindade. Em muitas passagens
evangélicas, Jesus fala de si sob esta perspetiva. Assim o faz com Filipe, no
Cenáculo, depois de ter lavado os pés aos Doze, dizendo-lhe: ‘Quem me vê, vê o
Pai.’ E isso acontece na instituição da Eucaristia, ao afirmar: ‘Eu estou no
meio de vós como aquele que serve.’ Mas já antes, no caminho para Jerusalém,
quando os discípulos discutiam sobre quem seria o maior, Ele tinha explicado
que o ‘Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua
vida em resgate por todos’.
Portanto, o trabalho gratuito que realizais, como expressão da vossa
consagração à caridade de Cristo, é para vós o primeiro anúncio da Palavra,
fonte de confiança e de alegria para os que vos encontram. Acompanhai-o com
sorriso, sem reclamar e sem buscar reconhecimento, apoiando-vos mutuamente,
inclusive nas relações com os Bispos e com os presbíteros, ‘como expressão da Igreja
disposta a crescer no serviço do Reino, valorizando todos os graus do
ministério ordenado’. Assim, a vossa ação unida e generosa será ponte a unir o Altar
à rua, a Eucaristia ao quotidiano das pessoas; a caridade será a mais bela
liturgia e a liturgia o mais humilde serviço.
Por fim, surge a gratuitidade como fonte de comunhão. Dar sem esperar nada em troca une e cria laços,
porque exprime e alimenta o estar juntos que não tem outro fim senão o dom de
si e o bem das pessoas. São Lourenço, quando os acusadores lhe pediram para
entregar os tesouros da Igreja, mostrou-lhes os pobres e disse: ‘Aqui estão os
nossos tesouros!’ É assim que se constrói a comunhão: dizendo ao irmão e à
irmã, com palavras, mas sobretudo com ações concretas, tanto pessoalmente como
em comunidade: ‘Tu és importante para nós’, ‘queremos-te bem’, ‘queremos que
participes do nosso caminho e da nossa vida’. É isso que fazeis, maridos, pais
e avós, prontos, no serviço, a alargar as vossas famílias aos necessitados,
onde quer que vivais. Assim, a vossa missão, que vos retira da sociedade para
nela vos fazer reentrar, tornando-a cada vez mais lugar acolhedor e aberto a
todos, é uma das mais belas expressões de uma Igreja sinodal e “em saída”.
Daqui a pouco, alguns, ao receberem o Sacramento da Ordem, ‘descerão’ os
degraus do ministério. Com a ordenação, não se sobe, mas desce-se, torna-se
pequeno, abaixa-se e despoja-se; abandona-se, no serviço, o homem da terra, e reveste-se,
na caridade, do homem do céu.
Meditemos sobre o que vamos fazer, confiando-nos à Virgem Maria, a serva do
Senhor, e a São Lourenço, vosso padroeiro. Que nos ajudem a viver o ministério
com um coração humilde e cheio de amor e a ser, na gratuitidade, apóstolos do perdão, servos desinteressados dos irmãos e
construtores de comunhão.
2025.02.24 – Louro de Carvalho
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