sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Portugueses têm satisfação em saúde abaixo da média da OCDE

 

Foi publicado, a 20 de fevereiro, o relatório do inquérito mundial sobre o que pensam os utentes que usam o serviço público do país, designado como “Patient Reported Indicators Surveys” (PaRIS) e levado a cabo pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) em 19 países: a Austrália, a Bélgica, o Canadá, a Chéquia, a França, a Grécia, a Islândia, a Itália, o Luxemburgo, os Países Baixos, Portugal, a Roménia, a Arábia Saudita, a Eslovénia, a Espanha, a Suíça, o Reino Unido, o País de Gales e os Estados Unidos da América (EUA).

Os resultados finais, que foram divulgados num evento na Fundação Oriente, em Lisboa, organizado em conjunto com a Direção-Geral da Saúde (DGS), têm por base a experiência de mais de 100 mil utentes de 19 países da OCDE com mais de 45 anos, incluindo os que vivem com doenças crónicas, como a hipertensão, a artrite, a diabetes, a doença cardíaca e o cancro.

No atinente a Portugal, o PaRIS revela que, oito em cada dez portugueses, sofrem de doença crónica; que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) falha na articulação de cuidados; que só 49% dos cidadãos diz gozar de boa saúde; que somos dos que mais pagam saúde do próprio bolso; e que pouco mais de metade (54%) dos cidadãos portugueses tem confiança nos serviços de saúde, um valor percentual abaixo da média dos 19 países participantes no inquérito. No entanto, elogia medidas portuguesas para reduzir tempo de espera na saúde.

É a primeira vez que uma organização internacional, designadamente, a OCDE, dá voz aos cidadãos de vários países para dizerem o que pensam sobre a própria saúde, sobre como são acolhidos e tratados nos serviços públicos do seu país e o que os leva a confiar ou não nestes.

Sobre Portugal há um alerta claro: Portugal é dos países em que oito, em cada dez pessoas, têm, pelo menos, uma doença crónica e é “urgente adaptar o sistema às necessidades da população com várias doenças” – um alerta que a OCDE e o subdiretor-geral da Saúde, André Peralta, esperam que funcione como oportunidade para resolver algumas situações.

Contudo, o PaRIS, mais do que um “alerta” pretende ser “um apelo” aos países participantes, para que coloquem “as necessidades, as preferências e as expectativas dos doentes” no centro das discussões e das tomadas de decisões. Se não o fizerem, ressentir-se-á a qualidade dos cuidados prestados e, quanto mais obstáculos houver, menos confiança o utente terá nos serviços. Ora, a confiança é um dos principais indicadores de avaliação de qualidade dos cuidados. E, neste item, como refere o subdiretor-geral, os portugueses deixaram uma mensagem clara: “Não estão satisfeitos com a organização e articulação dos cuidados.”

Apesar de mais de metade dos inquiridos em Portugal terem referido ter confiança no sistema público (54%), o valor está abaixo da média registada nos 19 países da OCDE participantes, que foi de 62%. E a OCDE alerta: “A confiança, tal como outro aspeto essencial da infraestrutura do sistema de saúde, necessita de investimento, de ser construída e [de ser] mantida. […] “Os sistemas de saúde e os decisores políticos desempenham um papel crucial na promoção da confiança entre os indivíduos com condições de saúde crónicas, garantindo uma comunicação transparente e cuidados acessíveis e centrados no doente.”

Para André Peralta, este é “um dos desafios identificados para Portugal” e a comparação com outros países evidencia desafios significativos, sobretudo na coordenação de cuidados, mas os valores absolutos de vários indicadores, em Portugal, são positivos, apesar de estarem abaixo dos níveis médios de saúde alcançados pelo conjunto destes 19 países da OCDE.

Segundo o PaRIS, mais de metade dos inquiridos (57%), apesar de terem patologias crónicas, dizem ter boa saúde física, quando avaliados na função física, na dor e na fadiga, mas este valor também está abaixo da média da OCDE, que é de 70%, e 25% do país com melhor desempenho, que registou 82%. O mesmo sucede, por exemplo, em relação à Saúde Mental, com 67% dos inquiridos a considerar que têm “boa saúde mental”, quando se referem à qualidade de vida, ao sofrimento emocional e à saúde social. Porém, este é o valor mais baixo registado no inquérito, uma diferença de 26 pontos percentuais do país com melhor desempenho, que registou 93%.

O bem-estar em saúde foi reportado como positivo por 61% dos inquiridos, mas a média da OCDE é de 71%. E só 42% consideraram ter uma saúde geral boa, muito abaixo da média da OCDE que foi de 66%.

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Todavia, nem tudo é negativo na realidade portuguesa. O relatório destaca, por exemplo, o tratamento dado às doenças crónicas como muito positivo, apesar do número de doentes com uma ou mais doenças crónicas estar acima da média da OCDE.

O subdiretor-geral da Saúde salienta que foi neste item que o país registou o valor mais elevado, face à média da OCDE, indicando que “a doença crónica, em Portugal, não é necessariamente uma sentença”. E argumenta: “Há pessoas que têm doenças crónicas que conseguem manter um bom funcionamento social e uma boa satisfação da sua vida. […] Oito, em cada 10, pessoas que têm só uma doença crónica mantêm bom funcionamento social. Só à medida que envelhecemos e que as doenças crónicas se acumulam é que o impacto começa a ser mais significativo na qualidade de vida do utente. Para pessoas que têm três ou mais doenças crónicas, o funcionamento social e a qualidade de vida mantêm-se para seis, em cada dez, descendo um pouco.”

Segundo o relatório, 97% dos utentes portugueses com doenças crónicas dizem beneficiar de uma abordagem multidisciplinar, não exclusivamente médica, mas também de enfermagem e de outros profissionais de saúde, o que é 14% acima da média da OCDE dos 19 países, 83%.

O documento releva que 86% das unidades portuguesas ofereceram consultas de seguimento com mais de 15 minutos, o que é quase 40% acima da média nos países participantes no PaRIS, 47%. Por outro lado, 71% dos utentes em Portugal com três ou mais condições crónicas tiveram também a sua medicação revista, nos últimos 12 meses, abaixo da média do PaRIS, que é de 75%, mas mais próximo. Não obstante, André Peralta considera que, mesmo neste item, há desafios que Portugal tem de ultrapassar, nomeadamente, no concernente à eliminação da doença crónica, numa maior aposta na prevenção, já que os indicadores do PaRIS revelam: “Oito, em cada dez utilizadores dos cuidados primários, têm uma doença crónica, mais de metade vive com duas doenças crónicas e um quarto dos inquiridos tem três ou mais doenças crónicas.”

Por isso, é preciso prevenir a doença crónica e, se esta se instalar, é preciso conseguir ter cuidados de saúde que permitam aos doentes manter qualidade de vida e bom funcionamento social.

O relatório evidencia ainda que “as mulheres tendem a viver mais tempo do que os homens, mas relatam, consistentemente, uma pior saúde”. De todas as pessoas com doenças crónicas, 74% dos homens têm boa saúde física, em comparação com 65% das mulheres, e 86% dos homens têm boa saúde mental, em comparação com 81% das mulheres.

Outro item positivo para Portugal é a digitalização dos serviços de saúde. O relatório indica que 80% dos utentes são geridos em unidades com capacidade de troca eletrónica de registos médicos, muito acima da média OCDE, de 57%, o que “demonstra o potencial da infraestrutura digital em saúde como ferramenta de promoção dos cuidados centrados nas pessoas”.

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Porém, onde o país mais falha, é na organização dos serviços e na articulação dos cuidados entre unidades de cuidados primários e hospitalares. O subdiretor-geral da Saúde assume que a articulação dos cuidados é “um dos desafios identificados para o futuro em Portugal”, já que, neste item, só 49% considera que esta articulação funciona, contra os 59% da média da OCDE.

Aliás, os portugueses deram “uma mensagem muito clara neste estudo”. Ou seja, dizem que “conseguem viver bem com uma doença crónica; se tiverem mais do que uma, já não conseguem viver tão bem, mas, acima de tudo, estão descontentes com a coordenação e com a articulação dos cuidados. E o subdiretor-geral da Saúde pensa que “isto nos deve fazer a todos refletir sobre estes aspetos fundamentais”, argumentando: “A falta de coordenação e de articulação entre cuidados pode levar a experiências negativas do utente, como atrasos no acesso aos cuidados, e isso afetar negativamente a sua confiança no sistema.”

Para o dirigente da autoridade máxima da Saúde em Portugal, o alerta e o desafio lançados pela OCDE devem constituir “uma oportunidade para o país resolver esta questão”. Por exemplo, “seria importante pensar-se num plano de cuidados único para o utente, com articulação entre hospital e centro de saúde” – mas, para isto, “é preciso um investimento concreto” –, de modo que “a organização entre os diversos níveis de cuidados, primários, hospitalares e continuados, pudessem coexistir em harmonia e que não fosse tão difícil ao utente navegar entre eles”.

No entanto, para o item da satisfação ou confiança, há outros fatores socioeconómicos que contribuem para os resultados alcançados e que, no caso de Portugal, é de destacar que 64% dos utentes com rendimentos mais elevados confiam no sistema de saúde público, versus 70% da média na OCDE, enquanto apenas 48% das pessoas com rendimentos mais baixos expressam essa confiança, versus 59% da média na OCDE. Segundo o relatório, “esta diferença entre grupos de rendimento é uma das maiores entre os países”.

O subdiretor-geral da Saúde diz que “não se sabe, exatamente, o porquê desta diferença”. Pode pensar-se que os detentores de rendimentos mais elevados têm mais recursos para fazer valer os seus direitos e mais hipóteses de terem acesso, por outras vias, aos cuidados, até pela medicina privada. Porém, o que emerge do relatório é que a confiança é um aspeto fundamental, porque, “sem confiança, nós não conseguimos ter bons cuidados de saúde”. Ou melhor, “sem um país em desenvolvimento e próspero, não conseguiremos alcançar bons resultados em saúde”. E André Peralta sublinha que este “estudo internacional veio preencher uma lacuna importante nos dados do país”, mas, acima de tudo, dá voz às pessoas diretamente afetadas pelos serviços de saúde.

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“O peso da despesa do próprio bolso com cuidados médicos”, isto é, despesa que as famílias realizaram, por o acesso ao serviço de saúde ser difícil ou por a oferta ser má ou inexistente, atingiu, em Portugal, o terceiro maior valor do grupo de 34 países da OCDE (dados de 2012).

A instituição clarifica que este gasto de carteira “depende da capacidade de as pessoas poderem pagar” os serviços em causa, ou seja, do rendimento de cada uma. A despesa do próprio bolso difere da despesa ou do valor dos cuidados de saúde publicamente financiados. A pesquisa feita antes da agora divulgada revela que, em média, em Portugal, cerca de 4,7% do dinheiro em carteira canalizado para consumo privado de bens e serviços foi destinado a cuidados médicos. A maior marca pertence a Chipre (5%), com a Bulgária e Malta em segundo lugar ex-aequo (4,9%).

O problema é que, “se o financiamento da saúde se torna cada vez mais dependente dos pagamentos do próprio bolso, o fardo é transferido, em teoria, para os que usam mais os serviços e dos mais ricos para os mais pobres”. E os mais pobres são o grupo em que “as necessidades de cuidados de saúde são tipicamente mais elevadas”.

Portanto, a OCDE confirma que Portugal, um país cada vez mais desigual e pobre, está a dar sinais de que está pior no segmento dos cuidados de saúde. “Em teoria”, quando as pessoas têm de gastar mais do próprio bolso para aceder aos mesmos cuidados de saúde dos ricos, significa que os ricos estão a ser privilegiados, face aos pobres.

A OCDE assinala que a saúde pública, em Portugal, é deficiente e piorou nos anos da troika, com as poupanças do programa de ajustamento do governo de então. E regista que há “grandes variações entre os países da União Europeia [UE], em termos de tempos de espera nas cirurgias não urgentes”. “Alguns países alcançaram progressos em reduzir os tempos de espera nas cirurgias planeadas ao longo dos últimos anos, mas as filas de espera começaram a aumentar na sequência da crise noutros países, como Portugal e a Espanha”, considera a OCDE, dando o exemplo das operações às cataratas, cujo tempo de espera melhorou de 2006 a 2010, mas que, desde aí, começou a degradar-se.

O acesso a cuidados dentários também se degradou em Portugal, com 10% a 15% da população a admitir não ter tido uma resposta médica às suas necessidades nesta área.

Ainda relativamente aos gastos, a organização observa que os países onde as famílias menos rendimento destinado a consumo dedicaram a cuidados de saúde foram o Reino Unido, a Croácia e a França (1,5% ou menos do rendimento total dedicado a consumo). Todavia, observa que, em 2012, “vários países começaram a registar crescimentos em despesas com saúde, apesar das taxas inferiores, face ao período pré-crise”. Porém, a despesa em saúde continuou a cair, em 2012, na Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, assim como na Chéquia e na Hungria”.

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Face à presente situação da saúde, a OCDE defende que os sistemas de saúde dos países europeus devem evoluir significativamente, para melhor responderem a picos de procura, como o que se está a verificar com a segunda vaga da pandemia de covid-19. E considera que, para aumentar a resposta hospitalar, as “soluções flexíveis” implementadas por vários países, desde a primavera passada – como a conversão de camas convencionais em camas de cuidados intensivos ou a montagem de hospitais de campanha – são preferíveis a “aumentos permanentes que serão muito mais dispendiosos”. “A falta de pessoal de saúde tem, no entanto, sido um constrangimento forte”, porque “a formação de cuidadores qualificados leva mais tempo do que a criação de capacidades temporárias”, sublinha o relatório do PaRIS.

Para remediar, a curto prazo, a OCDE sugere a “mobilização de pessoal adicional”, através de “listas de reserva”, citando a França como exemplo nesta estratégia. Porém, isso não isenta os estados europeus “de investirem mais no seu pessoal de saúde”, que a crise sanitária tem submetido a “pressões extremas”, destaca a OCDE, vincando que os países que “tiveram mais sucesso na contenção do contágio”, como a Noruega e a Finlândia, “estavam mais bem preparados”, com “uma estratégia eficaz de rastreio, de acompanhamento de pacientes e de listas de contactos de infetados”. Assim, no documento, a OCDE apela aos governos para que “adotem estratégias que permitam uma gestão adequada da recuperação da atividade económica, para que não haja mais bloqueios” nos sistemas de saúde.

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Estarão os governos disponíveis ou preferirão a lógica liberal do laissez faire, laissez passer? 

2025.02.20 – Louro de Carvalho

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