Foi
publicado, a 20 de fevereiro, o relatório do inquérito mundial sobre o
que pensam os utentes que usam o serviço público do país, designado como “Patient Reported Indicators
Surveys” (PaRIS) e levado a cabo pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico (OCDE) em 19 países: a Austrália, a Bélgica, o Canadá,
a Chéquia, a França, a Grécia, a Islândia, a Itália, o Luxemburgo, os Países Baixos, Portugal, a Roménia, a Arábia
Saudita, a Eslovénia, a Espanha, a Suíça, o Reino Unido, o País de Gales e os Estados
Unidos da América (EUA).
Os
resultados finais, que foram divulgados num evento na Fundação Oriente, em
Lisboa, organizado em conjunto com a Direção-Geral da Saúde (DGS), têm por base
a experiência de mais de 100 mil utentes de 19 países da OCDE com mais de 45
anos, incluindo os que vivem com doenças crónicas, como a hipertensão, a
artrite, a diabetes, a doença cardíaca e o cancro.
No
atinente a Portugal, o PaRIS revela que, oito em cada dez portugueses, sofrem de doença crónica; que
o Serviço Nacional de Saúde (SNS) falha na articulação de cuidados; que só 49% dos
cidadãos diz gozar de boa saúde; que somos dos que mais pagam saúde do próprio
bolso; e que pouco mais de metade (54%) dos cidadãos portugueses tem confiança
nos serviços de saúde, um valor percentual abaixo da média dos 19 países
participantes no inquérito. No entanto, elogia medidas portuguesas para reduzir
tempo de espera na saúde.
É a primeira
vez que uma organização internacional, designadamente, a OCDE, dá voz aos
cidadãos de vários países para dizerem o que pensam sobre a própria saúde,
sobre como são acolhidos e tratados nos serviços públicos do seu país e o que
os leva a confiar ou não nestes.
Sobre
Portugal há um alerta claro: Portugal é dos países em que oito, em cada dez
pessoas, têm, pelo menos, uma doença crónica e é “urgente adaptar o sistema às
necessidades da população com várias doenças” – um alerta que a OCDE e o subdiretor-geral da Saúde, André Peralta, esperam
que funcione como oportunidade para resolver algumas situações.
Contudo, o PaRIS, mais do que um “alerta” pretende ser “um apelo” aos
países participantes, para que coloquem “as necessidades, as preferências e as
expectativas dos doentes” no centro das discussões e das tomadas de decisões. Se não o fizerem, ressentir-se-á a qualidade dos
cuidados prestados e, quanto mais obstáculos houver, menos confiança o utente
terá nos serviços. Ora, a confiança é um dos principais indicadores de
avaliação de qualidade dos cuidados. E, neste item, como refere o subdiretor-geral, os portugueses deixaram
uma mensagem clara: “Não estão satisfeitos com a organização e articulação dos
cuidados.”
Apesar de
mais de metade dos inquiridos em Portugal terem referido ter confiança no
sistema público (54%), o valor está abaixo da média registada nos 19 países da
OCDE participantes, que foi de 62%. E a OCDE alerta: “A confiança, tal como outro aspeto essencial
da infraestrutura do sistema de saúde, necessita de investimento, de ser
construída e [de ser] mantida. […] “Os sistemas de saúde e os decisores
políticos desempenham um papel crucial na promoção da confiança entre os
indivíduos com condições de saúde crónicas, garantindo uma comunicação
transparente e cuidados acessíveis e centrados no doente.”
Para André
Peralta, este é “um dos desafios identificados para Portugal” e a comparação
com outros países evidencia desafios significativos, sobretudo na coordenação
de cuidados, mas os valores absolutos de vários indicadores, em Portugal, são
positivos, apesar de estarem abaixo dos níveis médios de saúde alcançados pelo
conjunto destes 19 países da OCDE.
Segundo o
PaRIS, mais de metade dos inquiridos (57%), apesar de terem patologias
crónicas, dizem ter boa saúde física, quando avaliados na função física, na dor
e na fadiga, mas este valor também está abaixo da média da OCDE, que é de 70%, e
25% do país com melhor desempenho, que registou 82%. O mesmo sucede, por
exemplo, em relação à Saúde Mental, com 67% dos inquiridos a considerar que têm
“boa saúde mental”, quando se referem à qualidade de vida, ao sofrimento
emocional e à saúde social. Porém, este é o valor mais baixo registado no
inquérito, uma diferença de 26 pontos percentuais do país com melhor
desempenho, que registou 93%.
O bem-estar em saúde foi reportado como
positivo por 61% dos inquiridos, mas a média da OCDE é de 71%. E só 42%
consideraram ter uma saúde geral boa, muito abaixo da média da OCDE que foi de
66%.
***
Todavia, nem
tudo é negativo na realidade portuguesa. O relatório destaca, por exemplo, o
tratamento dado às doenças crónicas como muito positivo, apesar do número de
doentes com uma ou mais doenças crónicas estar acima da média da OCDE.
O subdiretor-geral
da Saúde salienta que foi neste item que o país registou o valor mais elevado,
face à média da OCDE, indicando que “a doença crónica, em Portugal, não é
necessariamente uma sentença”. E
argumenta: “Há pessoas que têm doenças crónicas que conseguem manter um bom
funcionamento social e uma boa satisfação da sua vida. […] Oito, em cada
10, pessoas que têm só uma doença crónica mantêm bom funcionamento social. Só à
medida que envelhecemos e que as doenças crónicas se acumulam é que o impacto
começa a ser mais significativo na qualidade de vida do utente. Para
pessoas que têm três ou mais doenças crónicas, o funcionamento social e
a qualidade de vida mantêm-se para seis, em cada dez, descendo um pouco.”
Segundo o
relatório, 97% dos utentes portugueses com doenças crónicas dizem beneficiar de
uma abordagem multidisciplinar, não exclusivamente médica, mas também de
enfermagem e de outros profissionais de saúde, o que é 14% acima da média da
OCDE dos 19 países, 83%.
O documento releva que 86% das unidades
portuguesas ofereceram consultas de seguimento com mais de 15 minutos, o que é
quase 40% acima da média nos países participantes no PaRIS, 47%. Por outro
lado, 71% dos utentes em Portugal com três ou mais condições crónicas tiveram
também a sua medicação revista, nos últimos 12 meses, abaixo da média do PaRIS,
que é de 75%, mas mais próximo. Não obstante, André Peralta considera
que, mesmo neste item, há desafios que Portugal tem de ultrapassar,
nomeadamente, no concernente à eliminação da doença crónica, numa maior aposta
na prevenção, já que os indicadores do PaRIS revelam: “Oito, em cada dez utilizadores dos cuidados
primários, têm uma doença crónica, mais de metade vive com duas doenças
crónicas e um quarto dos inquiridos tem três ou mais doenças crónicas.”
Por isso, é preciso prevenir a doença crónica e, se esta se instalar, é
preciso conseguir ter cuidados de saúde que permitam aos doentes manter
qualidade de vida e bom funcionamento social.
O relatório
evidencia ainda que “as mulheres tendem a viver mais tempo do que os homens,
mas relatam, consistentemente, uma pior saúde”. De todas as pessoas com doenças
crónicas, 74% dos homens têm boa saúde física, em comparação com 65% das mulheres,
e 86% dos homens têm boa saúde mental, em comparação com 81% das mulheres.
Outro item positivo para Portugal é a digitalização dos serviços de
saúde. O relatório indica que 80% dos utentes são geridos em unidades com
capacidade de troca eletrónica de registos médicos, muito acima da média OCDE,
de 57%, o que “demonstra o potencial da infraestrutura digital em saúde como
ferramenta de promoção dos cuidados centrados nas pessoas”.
***
Porém, onde
o país mais falha, é na organização dos serviços e na articulação dos cuidados
entre unidades de cuidados primários e hospitalares. O subdiretor-geral da
Saúde assume que a articulação dos cuidados é “um dos desafios identificados
para o futuro em Portugal”, já que, neste item, só 49% considera que esta
articulação funciona, contra os 59% da média da OCDE.
Aliás, os portugueses deram “uma mensagem muito clara neste estudo”. Ou
seja, dizem que “conseguem viver bem com uma doença crónica; se tiverem mais do
que uma, já não conseguem viver tão bem, mas, acima de tudo, estão descontentes
com a coordenação e com a articulação dos cuidados. E o subdiretor-geral da
Saúde pensa que “isto nos deve fazer a todos refletir sobre estes aspetos
fundamentais”, argumentando: “A falta de coordenação e de articulação entre
cuidados pode levar a experiências negativas do utente, como atrasos no acesso
aos cuidados, e isso afetar negativamente a sua confiança no sistema.”
Para o
dirigente da autoridade máxima da Saúde em Portugal, o alerta e o desafio
lançados pela OCDE devem constituir “uma oportunidade para o país resolver esta
questão”. Por exemplo, “seria
importante pensar-se num plano de cuidados único para o utente, com articulação
entre hospital e centro de saúde” – mas, para isto, “é preciso um investimento
concreto” –, de modo que “a organização entre os diversos níveis de cuidados,
primários, hospitalares e continuados, pudessem coexistir em harmonia e que não
fosse tão difícil ao utente navegar entre eles”.
No entanto,
para o item da satisfação ou confiança, há outros fatores socioeconómicos que
contribuem para os resultados alcançados e que, no caso de Portugal, é de
destacar que “64% dos
utentes com rendimentos mais elevados confiam no sistema de saúde público, versus 70% da média na OCDE, enquanto
apenas 48% das pessoas com rendimentos mais baixos expressam essa confiança, versus 59% da média na OCDE. Segundo o
relatório, “esta diferença entre grupos de rendimento é uma das maiores entre
os países”.
O subdiretor-geral da Saúde diz que “não se sabe, exatamente, o porquê
desta diferença”. Pode pensar-se que os detentores de rendimentos mais elevados
têm mais recursos para fazer valer os seus direitos e mais hipóteses de
terem acesso, por outras vias, aos cuidados, até pela medicina privada. Porém,
o que emerge do relatório é que a confiança é um aspeto fundamental, porque, “sem
confiança, nós não conseguimos ter bons cuidados de saúde”. Ou melhor, “sem um país em desenvolvimento e próspero,
não conseguiremos alcançar bons resultados em saúde”. E André Peralta sublinha
que este “estudo internacional veio preencher uma lacuna importante nos dados
do país”, mas, acima de tudo, dá voz às pessoas diretamente afetadas pelos
serviços de saúde.
***
“O peso da despesa do próprio bolso com cuidados médicos”,
isto é, despesa que as famílias realizaram, por o acesso ao serviço de saúde
ser difícil ou por a oferta ser má ou inexistente, atingiu, em Portugal, o
terceiro maior valor do grupo de 34 países da OCDE (dados de 2012).
A
instituição clarifica que este gasto de carteira “depende da capacidade de as
pessoas poderem pagar” os serviços em causa, ou seja, do rendimento de cada
uma. A despesa do próprio bolso difere da despesa ou do valor dos cuidados de
saúde publicamente financiados. A pesquisa feita antes da agora divulgada
revela que, em média, em Portugal, cerca de 4,7% do dinheiro em carteira
canalizado para consumo privado de bens e serviços foi destinado a cuidados
médicos. A maior marca pertence a Chipre (5%), com a Bulgária e Malta em
segundo lugar ex-aequo (4,9%).
O problema é que, “se o financiamento da saúde se torna cada vez mais dependente
dos pagamentos do próprio bolso, o fardo é transferido, em teoria, para os que
usam mais os serviços e dos mais ricos para os mais pobres”. E os mais pobres são
o grupo em que “as necessidades de cuidados de saúde são tipicamente mais
elevadas”.
Portanto, a OCDE confirma que Portugal, um país cada vez mais desigual e
pobre, está a dar sinais de que está pior no segmento dos cuidados de saúde.
“Em teoria”, quando as pessoas têm de gastar mais do próprio bolso para aceder
aos mesmos cuidados de saúde dos ricos, significa que os ricos estão a ser
privilegiados, face aos pobres.
A OCDE assinala que a saúde pública, em Portugal, é deficiente e piorou nos
anos da troika, com as poupanças do
programa de ajustamento do governo de então. E regista que há “grandes
variações entre os países da União Europeia [UE], em termos de tempos de espera
nas cirurgias não urgentes”. “Alguns países alcançaram progressos em reduzir os
tempos de espera nas cirurgias planeadas ao longo dos últimos anos, mas as
filas de espera começaram a aumentar na sequência da crise noutros países, como
Portugal e a Espanha”, considera a OCDE, dando o exemplo das operações às
cataratas, cujo tempo de espera melhorou de 2006 a 2010, mas que, desde aí,
começou a degradar-se.
O acesso a cuidados dentários também se degradou em Portugal, com 10% a 15%
da população a admitir não ter tido uma resposta médica às suas necessidades
nesta área.
Ainda relativamente aos gastos, a organização observa que os países onde as
famílias menos rendimento destinado a consumo dedicaram a cuidados de saúde
foram o Reino Unido, a Croácia e a França (1,5% ou menos do rendimento total
dedicado a consumo). Todavia, observa que, em 2012, “vários países começaram a
registar crescimentos em despesas com saúde, apesar das taxas inferiores, face
ao período pré-crise”. Porém, a despesa em saúde continuou a cair, em 2012, na
Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, assim como na Chéquia e na Hungria”.
***
Face à
presente situação da saúde, a OCDE defende que os
sistemas de saúde dos países europeus devem evoluir significativamente, para
melhor responderem a picos de procura, como o que se está a verificar com a
segunda vaga da pandemia de covid-19. E considera que, para aumentar a resposta
hospitalar, as “soluções flexíveis” implementadas por vários países, desde a
primavera passada – como a conversão de camas convencionais em camas de
cuidados intensivos ou a montagem de hospitais de campanha – são preferíveis a
“aumentos permanentes que serão muito mais dispendiosos”. “A falta de pessoal
de saúde tem, no entanto, sido um constrangimento forte”, porque “a formação de
cuidadores qualificados leva mais tempo do que a criação de capacidades
temporárias”, sublinha o relatório do PaRIS.
Para remediar, a curto prazo, a OCDE sugere a “mobilização de pessoal
adicional”, através de “listas de reserva”, citando a França como exemplo nesta
estratégia. Porém, isso não isenta os estados europeus “de investirem mais no
seu pessoal de saúde”, que a crise sanitária tem submetido a “pressões
extremas”, destaca a OCDE, vincando que os países que “tiveram mais sucesso na
contenção do contágio”, como a Noruega e a Finlândia, “estavam mais bem
preparados”, com “uma estratégia eficaz de rastreio, de acompanhamento de
pacientes e de listas de contactos de infetados”. Assim, no documento, a OCDE
apela aos governos para que “adotem estratégias que permitam uma gestão
adequada da recuperação da atividade económica, para que não haja mais
bloqueios” nos sistemas de saúde.
***
Estarão os governos disponíveis ou preferirão a lógica liberal do laissez faire, laissez passer?
2025.02.20 – Louro de Carvalho
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