Está em causa o Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que
entrou em vigor 30 dias após a data da sua publicação (29 de janeiro), que altera o
Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
80/2015, de 14 de maio.
O diploma, em
vigor, que está a gerar discussões acesas sobre o impacto na resolução da crise
da habitação, estabelece um
novo regime para a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos, simplificando o processo e
permitindo a transformação de terrenos não edificados em áreas passíveis
de urbanização, desde que
cumpram um conjunto de requisitos. Isto, num momento em que o país enfrenta
enorme pressão por mais espaço habitacional,
sobretudo, em zonas de alta procura. Porém, embora a medida possa proporcionar resposta
rápida à necessidade de construção de novas habitações, levanta questões importantes sobre o impacto ambiental,
social e económico, com efeitos, a longo prazo, na sustentabilidade e na qualidade
de vida das populações.
O diploma
introduz importante possibilidade no ordenamento do território: a
reclassificação de terrenos rústicos
como urbanos, com a condição fundamental de que, pelo menos, 70% (ou seja, 700
metros quadrados por cada mil metros quadrados) da área total de construção
acima do solo se destine a habitação pública
ou a habitação com “valor moderado”.
O conceito
de valor moderado, uma tentativa de tornar as habitações mais acessíveis, é determinado com base no preço
por metro quadrado da construção,
que não pode ser superior à mediana do preço de venda nacional ou, se superior,
a 125% da mediana do preço de venda praticado no concelho onde se situa o
terreno. Ou seja, a medida visa garantir que a requalificação de terrenos rústicos se volte,
essencialmente, para soluções habitacionais acessíveis. Porém, a sua eficácia
dependerá da realidade do mercado
imobiliário em cada região, já que os preços médios variam,
significativamente, entre diferentes zonas do país. Assim, o impacto na redução
dos valores pode ser limitado em áreas metropolitanas com preços elevados,
enquanto, em zonas de menor procura, pode ter efeito mais significativo.
A
responsabilidade pela decisão de reclassificar um terreno recai sobre a assembleia municipal, que toma a
decisão com base em proposta da câmara municipal. O decreto simplifica esse
processo, ao dispensar a necessidade de aprovação por entidades superiores,
como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Embora a
medida torne a conversão de terrenos mais
rápida e menos burocrática, levanta preocupações, quanto à transparência e à
possível influência de interesses privados nas decisões municipais. A
flexibilização pode facilitar o desenvolvimento habitacional, mas exige rigoroso acompanhamento, para evitar usos
indevidos e especulação imobiliária.
Desde logo, é de salientar a ambiguidade do conceito de “valor moderado” e de
questionar quem faz o dito acompanhamento, se as CCDR ficam de fora.
Alexandre Roque, sócio da SRS Legal, em artigo publicado no ECO online, a 17 de fevereiro, coloca a
questão se a alteração em causa era necessária.
E a sua
resposta é imediata, sustentada, desde logo, no facto de o Partido Socialista (PS)
ter anunciado, no âmbito do processo de apreciação parlamentar em curso, que
está disposto a não inviabilizar a manutenção do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30
de dezembro. E adianta que a alteração se centra na “simplificação
de procedimentos de reclassificação do solo rústico em solo urbano”, na
sequência do já feito pelo anterior governo, no ‘Simplex Urbanístico’.
Respondendo a “opiniões avalizadas” que defendem não
ser necessária tal alteração, porque, em Lisboa e no Porto, não há solo rural e
a crise na habitação se resolve com promoção pública, como os bairros de
Alvalade e dos Olivais, construídos nos anos 50, e de Telheiras, construído,
pela Empresa
Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL),
nos anos 70 e 80, contrapõe que o país não é só Lisboa e Porto e que, nos
municípios vizinhos, há muito solo rural, face à respetiva classificação legal.
E, no atinente à promoção pública em Lisboa, a Câmara Municipal, então liderada
por António Costa, extinguiu a EPUL e centrou o investimento público nas
zonas prime da Cidade, a qual voltou costas à sua periferia e,
assim, à habitação acessível. Ignorou-a e ostracizou-a. É o vazio urbano em
zonas, como Chelas, com muito terreno público disponível.
Na opinião do colunista, a maioria da classe do
comentário público “foi muito crítica destas alterações, com comentários
baseados em alguma ignorância, populismo e demagogia”. A ignorância resulta de
desconhecimento da origem do problema e da razão da necessidade de o resolver,
ao passo que o populismo e a demagogia passam a ideia de que se ia poder
construir em qualquer lado. Ora, em temas da construção, a crítica é bem
acolhida, mesmo que lhe falte a coerência, o que, aqui, passará por se ser
proprietário de casas onde nunca se poderia construir.
O problema remonta a 2014, sendo Jorge Moreira da
Silva ministro com a pasta do Ordenamento do Território, no governo de Passos
Coelho, pela eliminação da categoria de “solos urbanizáveis”, vindo a existir,
apenas “solo rural ou solo urbano”. Seria classificado como solo urbano o que
já esteja total ou parcialmente urbanizado ou edificado. Não sendo o caso, o
solo é classificado como rural, ainda que não tenha aptidão agrícola ou
florestal.
Tal alteração legislativa, então, muito elogiada,
tinha um efeito perverso: cristalizava os terrenos em que se podia construir,
porque apenas se poderia construir em terrenos que já estivessem urbanizados em
2014, ou reabilitar o existente ou demolir para construir, o que determinava aumento
exponencial do valor dos terrenos e do preço da habitação, inviabilizando investimentos
industriais, pois, a reclassificação de solo rural como urbano carecia de plano
de pormenor, procedimento moroso e incompatível com investimento industrial,
sobretudo, estrangeiro.
A imposição da nova classificação, determinou que todos
os planos municipais de ordenamento do território, nomeadamente, os Planos
Diretores Municipais (PDM), fossem alterados no prazo de cinco anos,
determinando-se, nos casos em que não fossem alterados, nesse prazo, a
suspensão automática de todas as normas relativas a áreas urbanizáveis e
impedindo-se aí qualquer construção. A alteração dos PDM foi sendo adiada e o
prazo foi prorrogado sucessivamente, até à data-limite de 31 de dezembro de
2024, fixada no diploma agora contestado.
Neste contexto, o PS e o Partido Social Democrata (PSD)
coincidiram na necessidade de uma alteração legislativa, que “assentou, não na
reintrodução da categoria de solos urbanizáveis”, mas “na simplificação do
procedimento de reclassificação de solos rurais em solos urbanos. Foi dado significativo
passo, no início de 2024, pelo anterior governo, com o ‘Simplex Urbanístico’,
que previu o regime simplificado de reclassificação, em particular, para a
instalação de indústria e de habitação. Todavia, limitou a possibilidade de reclassificação de solos rurais para
urbanos aos casos em que não haja solos urbanos disponíveis (continuando-se a
inflacionar o valor desses solos), e, no atinente à habitação, estabeleceu-se,
ainda, como requisito: que a propriedade do terreno seja exclusivamente
pública; que esteja situado na contiguidade de solo urbano; e que se destine a
habitação a custos controlados ou a uso habitacional, desde que previsto na
Estratégia Local da Habitação, ou na Carta Municipal de Habitação ou na Bolsa
de Habitação.
É, nomeadamente, nestes pontos que assenta o diploma
em causa. Eliminou a exigência de inexistência de solos urbanos disponíveis e, no
atinente à habitação, a limitação de a propriedade do solo ser exclusivamente
pública. També eliminou o requisito de o solo ter de estar na contiguidade de
solo urbano, mas estabeleceu que tem de ser assegurada a consolidação e a
coerência da urbanização a desenvolver com a área urbana existente, o que afasta
o cenário de se permitir o surgimento de construção dispersa. Além disso,
determina que 700 por mil da área de construção tem de ser afeta a habitação
pública ou a venda a valor moderado, de acordo com a definição prevista no
diploma, e não a construção para habitação própria ou para segundas
residências, como se tentou fazer passar.
Assim, a necessidade desta alteração, no dizer do
colunista, resulta do facto de o PS estar disposto a não inviabilizar a
manutenção do decreto-lei em causa.
Face às propostas já apresentadas pelo PS, não se
pretende reintroduzir o requisito da propriedade dos terrenos ser exclusivamente
pública, que reduzia o efeito prático da alteração introduzida pelo ‘Simplex Urbanístico’,
mas que não haja solos urbanos disponíveis (aplicável ao uso habitacional e ao
industrial), o que continua a inflacionar o valor do solo urbano e a permitir
que, por essa via, se impeça a reclassificação; se mantenha o requisito da
contiguidade com solo urbano, o que pode gerar dificuldades de aplicação, na
definição dessa contiguidade; e se elimine a referência à venda a valor
moderado, impondo-se que os referidos 700 por mil de área de construção sejam
afetos a habitação pública, a arrendamento acessível ou a custos controlados, o
que, nessa relação, pode tornar os projetos economicamente inviáveis, e não
assegurar habitação a jovens e à classe média.
Mantém-se, assim, na opinião de Alexandre Roque, o
desafio, mesmo estando perante um regime extraordinário de aplicação caso a
caso, e não a reequacionar a introdução da classificação nos planos de
ordenamento do território da figura de solos urbanizáveis, algo que, numa
reforma mais profunda. ainda se devia ponderar, mesmo que mais limitado do que
o que existia no passado.
***
Entretanto, a 26 de fevereiro, a Assembleia da
República (AR) aprovou, na especialidade, um conjunto de alterações ao Decreto-Lei
n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que permite
reclassificar solos rústicos em urbanos, para construção de habitação, com a
maioria das modificações resultante de um entendimento entre o PSD e o PS.
A reapreciação do diploma fora requerida por iniciativa do Bloco de Esquerda
(BE). O projeto inicial era impedir a sua vigência. Porém, a abstenção do PS
viabilizou o processo de alterações. Assim, foram aprovadas, na generalidade, propostas de alteração do PSD, do
PS, do BE, do Livre e da Iniciativa Liberal (IL) ao diploma do governo, que
baixaram à Comissão de Economia, Obras
Públicas e Habitação – com recusa da proposta do partido Chega –, para debate
na especialidade, onde foram aprovadas, ficando a aprovação final, no plenário da
AR, garantida pelos votos do PSD – bem como pelos do partido do Centro Democrático
Social (CDS) – e do PS, mas com o voto contra do Chega e do Partido Comunista
Português (PCP).
A votação
das propostas, que durou quase duas horas, foi feita alínea a alínea, o que
gerou, em alguns casos, confusão com os partidos a pedirem para alterar o
sentido de voto. A deputada socialista Marina Gonçalves deu conta de lapsos na
votação de uma proposta do PSD, semelhante à do PS. “Nós retiramos os usos
conexos mas, olhando para a proposta do PSD, vocês também tiraram os usos
conexos. A vossa proposta é igual à nossa, mas o PSD votou contra a nossa”,
avisou Marina Gonçalves. O erro foi apontado e a votação foi repetida e acabou
por ser aprovada.
O PSD
incluiu, nas suas propostas, a maioria das exigências do PS, nomeadamente,
quanto à necessidade de demonstração do impacto nas infraestruturas existentes
e aos encargos do “seu reforço”. E as áreas a reclassificar mantêm-se
integradas na Reserva Ecológica Nacional (REN) e na Reserva Agrícola Nacional
(RAN), com “salvaguardada da preservação dos valores e funções naturais
fundamentais” e com a “prevenção e mitigação de riscos para pessoas e bens”.
O PS exigiu
ainda que, em vez do conceito de habitação de “valor moderado”, se use
habitação pública, para “arrendamento acessível” ou “habitação a custos
controlados”, e que os usos complementares visem funcionalidades relacionadas
com a habitação. E, ainda, repõe o critério territorial de “contiguidade com o
solo urbano”, para consolidação de área urbana existente, e a limitação da reclassificação
à “inexistência de áreas urbanas disponíveis”.
Assim, além de a vigência do diploma passar a ser de quatro anos, entre as
principais alterações aprovadas, está a substituição do conceito de habitação
de “valor moderado” – utilizado pelo governo – por “a custos controlados” e por
“arrendamento acessível”; a reposição do critério territorial de “contiguidade
com o solo urbano”, para consolidação de área urbana existente; e a revogação
da possibilidade de construir habitação destinada ao alojamento de
trabalhadores agrícolas, fora das áreas urbanas existentes.
O PS e o BE, apontando “recuos importantes” do governo, consideram que as
alterações, agora, aprovadas na AR, permitiram corrigir parte dos problemas e
mitigar alguns dos efeitos negativos do diploma. Porém, o BE, embora reconheça que
o diploma fica melhor, não desiste do escrutínio e lutará pela sua revogação, até
porque a sua vigência fica prevista por quatro anos.
***
Quem resolveu meter areia na engrenagem, nos últimos dias, foi o Presidente
da República (PR).
Promulgou, quase de imediato e acriticamente, o diploma em causa. Entretanto,
perante os jornalistas, escorado no que ouviu a alguns autarcas, sustentou que
o diploma é de muito difícil aplicação em ano de eleições autárquicas (deveria
ter pensado nisso, antes da promulgação, e vetá-lo), o que mereceu a resposta
adequada o ministro da Presidência, considerando que todos os anos são bons (ou
maus, diria eu) para aplicação das leis.
Por outro lado, é mais uma intromissão indevida na área da governação e a
crónica apetência para comentar tudo, interrompendo as tréguas de silêncio a
que parecia estar remetido.
Depois, há uma incoerência: promulga um diploma do governo, mas não garante
a promulgação do diploma alterado por lei da AR (supostamente com maior debate
e ponderação dos nossos representantes). “Quo vadis, cohaerentia?”
***
Entretanto, o RJIGT mantém-se polémico: uns querem mais facilidades, os
especuladores; outros querem mais restrições, os que veem os componentes da
classe média baixa em dificuldades sérias na obtenção de casa, quer em regime
de arrendamento, quer em regime de propriedade, a par com tanta casa desocupada,
com tantas casas de segunda e de terceira residência e com as ofertas para
venda ou arrendamento a exigirem custos incomportáveis para a maioria dos cidadãos;
e outros estão atentos aos pobres que também têm direito a teto condigno, mas
de quem os especuladores e os poderes públicos não têm compaixão.
E mal vai a barca, quando o debate, não sério, acusa adversários de
ignorância ou de populismo, de ataque à propriedade privada ou de desprezo pelo
destino universal dos bens e do valor social da propriedade, de ideologia de esquerda
ou de ideologia de direita.
Por fim, esquece-se algo de relevante: muitas das casas desocupadas, ou
pela sua estruturação em razão das funções para que foram concebidas, e / ou
pelo estado de degradação em que se encontram, exigem um investimento demasiado
avultado, em comparação com o exigido para uma nova construção.
Enfim, o debate deve continuar, se se pretende promover o bem-estar das populações.
E este é o principal objetivo de quem governa, nomeadamente a nível das
autarquias – o dito poder de proximidade.
2025.02.26 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário