quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A alteração à chamada “lei dos solos” tem dado que falar

 

Está em causa o Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que entrou em vigor 30 dias após a data da sua publicação (29 de janeiro), que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio.

O diploma, em vigor, que está a gerar discussões acesas sobre o impacto na resolução da crise da habitação, estabelece um novo regime para a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos, simplificando o processo e permitindo a transformação de terrenos não edificados em áreas passíveis de urbanização, desde que cumpram um conjunto de requisitos. Isto, num momento em que o país enfrenta enorme pressão por mais espaço habitacional, sobretudo, em zonas de alta procura. Porém, embora a medida possa proporcionar resposta rápida à necessidade de construção de novas habitações, levanta questões importantes sobre o impacto ambiental, social e económico, com efeitos, a longo prazo, na sustentabilidade e na qualidade de vida das populações.

O diploma introduz importante possibilidade no ordenamento do território: a reclassificação de terrenos rústicos como urbanos, com a condição fundamental de que, pelo menos, 70% (ou seja, 700 metros quadrados por cada mil metros quadrados) da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública ou a habitação com “valor moderado”.

O conceito de valor moderado, uma tentativa de tornar as habitações mais acessíveis, é determinado com base no preço por metro quadrado da construção, que não pode ser superior à mediana do preço de venda nacional ou, se superior, a 125% da mediana do preço de venda praticado no concelho onde se situa o terreno. Ou seja, a medida visa garantir que a requalificação de terrenos rústicos se volte, essencialmente, para soluções habitacionais acessíveis. Porém, a sua eficácia dependerá da realidade do mercado imobiliário em cada região, já que os preços médios variam, significativamente, entre diferentes zonas do país. Assim, o impacto na redução dos valores pode ser limitado em áreas metropolitanas com preços elevados, enquanto, em zonas de menor procura, pode ter efeito mais significativo.

A responsabilidade pela decisão de reclassificar um terreno recai sobre a assembleia municipal, que toma a decisão com base em proposta da câmara municipal. O decreto simplifica esse processo, ao dispensar a necessidade de aprovação por entidades superiores, como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Embora a medida torne a conversão de terrenos mais rápida e menos burocrática, levanta preocupações, quanto à transparência e à possível influência de interesses privados nas decisões municipais. A flexibilização pode facilitar o desenvolvimento habitacional, mas exige rigoroso acompanhamento, para evitar usos indevidos e especulação imobiliária. Desde logo, é de salientar a ambiguidade do conceito de “valor moderado” e de questionar quem faz o dito acompanhamento, se as CCDR ficam de fora.

Alexandre Roque, sócio da SRS Legal, em artigo publicado no ECO online, a 17 de fevereiro, coloca a questão se a alteração em causa era necessária. 

E a sua resposta é imediata, sustentada, desde logo, no facto de o Partido Socialista (PS) ter anunciado, no âmbito do processo de apreciação parlamentar em curso, que está disposto a não inviabilizar a manutenção do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro. E adianta que a alteração se centra na “simplificação de procedimentos de reclassificação do solo rústico em solo urbano”, na sequência do já feito pelo anterior governo, no ‘Simplex Urbanístico’.

Respondendo a “opiniões avalizadas” que defendem não ser necessária tal alteração, porque, em Lisboa e no Porto, não há solo rural e a crise na habitação se resolve com promoção pública, como os bairros de Alvalade e dos Olivais, construídos nos anos 50, e de Telheiras, construído, pela Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL), nos anos 70 e 80, contrapõe que o país não é só Lisboa e Porto e que, nos municípios vizinhos, há muito solo rural, face à respetiva classificação legal. E, no atinente à promoção pública em Lisboa, a Câmara Municipal, então liderada por António Costa, extinguiu a EPUL e centrou o investimento público nas zonas prime da Cidade, a qual voltou costas à sua periferia e, assim, à habitação acessível. Ignorou-a e ostracizou-a. É o vazio urbano em zonas, como Chelas, com muito terreno público disponível.

Na opinião do colunista, a maioria da classe do comentário público “foi muito crítica destas alterações, com comentários baseados em alguma ignorância, populismo e demagogia”. A ignorância resulta de desconhecimento da origem do problema e da razão da necessidade de o resolver, ao passo que o populismo e a demagogia passam a ideia de que se ia poder construir em qualquer lado. Ora, em temas da construção, a crítica é bem acolhida, mesmo que lhe falte a coerência, o que, aqui, passará por se ser proprietário de casas onde nunca se poderia construir.

O problema remonta a 2014, sendo Jorge Moreira da Silva ministro com a pasta do Ordenamento do Território, no governo de Passos Coelho, pela eliminação da categoria de “solos urbanizáveis”, vindo a existir, apenas “solo rural ou solo urbano”. Seria classificado como solo urbano o que já esteja total ou parcialmente urbanizado ou edificado. Não sendo o caso, o solo é classificado como rural, ainda que não tenha aptidão agrícola ou florestal.

Tal alteração legislativa, então, muito elogiada, tinha um efeito perverso: cristalizava os terrenos em que se podia construir, porque apenas se poderia construir em terrenos que já estivessem urbanizados em 2014, ou reabilitar o existente ou demolir para construir, o que determinava aumento exponencial do valor dos terrenos e do preço da habitação, inviabilizando investimentos industriais, pois, a reclassificação de solo rural como urbano carecia de plano de pormenor, procedimento moroso e incompatível com investimento industrial, sobretudo, estrangeiro.

A imposição da nova classificação, determinou que todos os planos municipais de ordenamento do território, nomeadamente, os Planos Diretores Municipais (PDM), fossem alterados no prazo de cinco anos, determinando-se, nos casos em que não fossem alterados, nesse prazo, a suspensão automática de todas as normas relativas a áreas urbanizáveis e impedindo-se aí qualquer construção. A alteração dos PDM foi sendo adiada e o prazo foi prorrogado sucessivamente, até à data-limite de 31 de dezembro de 2024, fixada no diploma agora contestado.

Neste contexto, o PS e o Partido Social Democrata (PSD) coincidiram na necessidade de uma alteração legislativa, que “assentou, não na reintrodução da categoria de solos urbanizáveis”, mas “na simplificação do procedimento de reclassificação de solos rurais em solos urbanos. Foi dado significativo passo, no início de 2024, pelo anterior governo, com o ‘Simplex Urbanístico’, que previu o regime simplificado de reclassificação, em particular, para a instalação de indústria e de habitação. Todavia, limitou a possibilidade de reclassificação de solos rurais para urbanos aos casos em que não haja solos urbanos disponíveis (continuando-se a inflacionar o valor desses solos), e, no atinente à habitação, estabeleceu-se, ainda, como requisito: que a propriedade do terreno seja exclusivamente pública; que esteja situado na contiguidade de solo urbano; e que se destine a habitação a custos controlados ou a uso habitacional, desde que previsto na Estratégia Local da Habitação, ou na Carta Municipal de Habitação ou na Bolsa de Habitação.

É, nomeadamente, nestes pontos que assenta o diploma em causa. Eliminou a exigência de inexistência de solos urbanos disponíveis e, no atinente à habitação, a limitação de a propriedade do solo ser exclusivamente pública. També eliminou o requisito de o solo ter de estar na contiguidade de solo urbano, mas estabeleceu que tem de ser assegurada a consolidação e a coerência da urbanização a desenvolver com a área urbana existente, o que afasta o cenário de se permitir o surgimento de construção dispersa. Além disso, determina que 700 por mil da área de construção tem de ser afeta a habitação pública ou a venda a valor moderado, de acordo com a definição prevista no diploma, e não a construção para habitação própria ou para segundas residências, como se tentou fazer passar.

Assim, a necessidade desta alteração, no dizer do colunista, resulta do facto de o PS estar disposto a não inviabilizar a manutenção do decreto-lei em causa.

Face às propostas já apresentadas pelo PS, não se pretende reintroduzir o requisito da propriedade dos terrenos ser exclusivamente pública, que reduzia o efeito prático da alteração introduzida pelo ‘Simplex Urbanístico’, mas que não haja solos urbanos disponíveis (aplicável ao uso habitacional e ao industrial), o que continua a inflacionar o valor do solo urbano e a permitir que, por essa via, se impeça a reclassificação; se mantenha o requisito da contiguidade com solo urbano, o que pode gerar dificuldades de aplicação, na definição dessa contiguidade; e se elimine a referência à venda a valor moderado, impondo-se que os referidos 700 por mil de área de construção sejam afetos a habitação pública, a arrendamento acessível ou a custos controlados, o que, nessa relação, pode tornar os projetos economicamente inviáveis, e não assegurar habitação a jovens e à classe média.

Mantém-se, assim, na opinião de Alexandre Roque, o desafio, mesmo estando perante um regime extraordinário de aplicação caso a caso, e não a reequacionar a introdução da classificação nos planos de ordenamento do território da figura de solos urbanizáveis, algo que, numa reforma mais profunda. ainda se devia ponderar, mesmo que mais limitado do que o que existia no passado.

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Entretanto, a 26 de fevereiro, a Assembleia da República (AR) aprovou, na especialidade, um conjunto de alterações ao Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que permite reclassificar solos rústicos em urbanos, para construção de habitação, com a maioria das modificações resultante de um entendimento entre o PSD e o PS.

A reapreciação do diploma fora requerida por iniciativa do Bloco de Esquerda (BE). O projeto inicial era impedir a sua vigência. Porém, a abstenção do PS viabilizou o processo de alterações. Assim, foram aprovadas, na generalidade, propostas de alteração do PSD, do PS, do BE, do Livre e da Iniciativa Liberal (IL) ao diploma do governo, que baixaram à Comissão de Economia, Obras Públicas e Habitação – com recusa da proposta do partido Chega –, para debate na especialidade, onde foram aprovadas, ficando a aprovação final, no plenário da AR, garantida pelos votos do PSD – bem como pelos do partido do Centro Democrático Social (CDS) – e do PS, mas com o voto contra do Chega e do Partido Comunista Português (PCP).

A votação das propostas, que durou quase duas horas, foi feita alínea a alínea, o que gerou, em alguns casos, confusão com os partidos a pedirem para alterar o sentido de voto. A deputada socialista Marina Gonçalves deu conta de lapsos na votação de uma proposta do PSD, semelhante à do PS. “Nós retiramos os usos conexos mas, olhando para a proposta do PSD, vocês também tiraram os usos conexos. A vossa proposta é igual à nossa, mas o PSD votou contra a nossa”, avisou Marina Gonçalves. O erro foi apontado e a votação foi repetida e acabou por ser aprovada.

O PSD incluiu, nas suas propostas, a maioria das exigências do PS, nomeadamente, quanto à necessidade de demonstração do impacto nas infraestruturas existentes e aos encargos do “seu reforço”. E as áreas a reclassificar mantêm-se integradas na Reserva Ecológica Nacional (REN) e na Reserva Agrícola Nacional (RAN), com “salvaguardada da preservação dos valores e funções naturais fundamentais” e com a “prevenção e mitigação de riscos para pessoas e bens”.

O PS exigiu ainda que, em vez do conceito de habitação de “valor moderado”, se use habitação pública, para “arrendamento acessível” ou “habitação a custos controlados”, e que os usos complementares visem funcionalidades relacionadas com a habitação. E, ainda, repõe o critério territorial de “contiguidade com o solo urbano”, para consolidação de área urbana existente, e a limitação da reclassificação à “inexistência de áreas urbanas disponíveis”.

Assim, além de a vigência do diploma passar a ser de quatro anos, entre as principais alterações aprovadas, está a substituição do conceito de habitação de “valor moderado” – utilizado pelo governo – por “a custos controlados” e por “arrendamento acessível”; a reposição do critério territorial de “contiguidade com o solo urbano”, para consolidação de área urbana existente; e a revogação da possibilidade de construir habitação destinada ao alojamento de trabalhadores agrícolas, fora das áreas urbanas existentes.

O PS e o BE, apontando “recuos importantes” do governo, consideram que as alterações, agora, aprovadas na AR, permitiram corrigir parte dos problemas e mitigar alguns dos efeitos negativos do diploma. Porém, o BE, embora reconheça que o diploma fica melhor, não desiste do escrutínio e lutará pela sua revogação, até porque a sua vigência fica prevista por quatro anos.

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Quem resolveu meter areia na engrenagem, nos últimos dias, foi o Presidente da República (PR).

Promulgou, quase de imediato e acriticamente, o diploma em causa. Entretanto, perante os jornalistas, escorado no que ouviu a alguns autarcas, sustentou que o diploma é de muito difícil aplicação em ano de eleições autárquicas (deveria ter pensado nisso, antes da promulgação, e vetá-lo), o que mereceu a resposta adequada o ministro da Presidência, considerando que todos os anos são bons (ou maus, diria eu) para aplicação das leis.

Por outro lado, é mais uma intromissão indevida na área da governação e a crónica apetência para comentar tudo, interrompendo as tréguas de silêncio a que parecia estar remetido.

Depois, há uma incoerência: promulga um diploma do governo, mas não garante a promulgação do diploma alterado por lei da AR (supostamente com maior debate e ponderação dos nossos representantes). “Quo vadis, cohaerentia?”     

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Entretanto, o RJIGT mantém-se polémico: uns querem mais facilidades, os especuladores; outros querem mais restrições, os que veem os componentes da classe média baixa em dificuldades sérias na obtenção de casa, quer em regime de arrendamento, quer em regime de propriedade, a par com tanta casa desocupada, com tantas casas de segunda e de terceira residência e com as ofertas para venda ou arrendamento a exigirem custos incomportáveis para a maioria dos cidadãos; e outros estão atentos aos pobres que também têm direito a teto condigno, mas de quem os especuladores e os poderes públicos não têm compaixão.

E mal vai a barca, quando o debate, não sério, acusa adversários de ignorância ou de populismo, de ataque à propriedade privada ou de desprezo pelo destino universal dos bens e do valor social da propriedade, de ideologia de esquerda ou de ideologia de direita.

Por fim, esquece-se algo de relevante: muitas das casas desocupadas, ou pela sua estruturação em razão das funções para que foram concebidas, e / ou pelo estado de degradação em que se encontram, exigem um investimento demasiado avultado, em comparação com o exigido para uma nova construção.

Enfim, o debate deve continuar, se se pretende promover o bem-estar das populações. E este é o principal objetivo de quem governa, nomeadamente a nível das autarquias – o dito poder de proximidade.               

2025.02.26 – Louro de Carvalho

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