A Assembleia
da República (AR) aprovou, na generalidade, a 31 de janeiro, o projeto de
lei do Bloco de Esquerda (BE) no sentido do aumento, para os 18 anos, da idade mínima para um/a jovem poder casar e
rejeitou a do Chega quase do mesmo teor. Dominaram o debate referências aos
costumes da comunidade cigana, mas a lei pode “empurrar uniões para a
informalidade”.
Atualmente,
a idade mínima para casamento
é 16 anos, mas carecendo de autorização dos pais ou do tutor, exceto se o
conservador do registo civil tiver suprido tal autorização. Soube de casos, na década de 1990, em que mães
queriam que filhas de 14/15 anos casassem. E, como o pároco negasse tal possibilidade,
face à lei, era tido como responsável pela vida irregular delas.
O projeto de
lei do BE mereceu o voto contra do Partido Social Democrata (PSD) e do Centro Democrático
Social - Partido Popular (CDS-PP), a abstenção da Iniciativa Liberal (IL) e o
voto favorável das demais bancadas. O projeto de lei do Chega contou com o voto
contra do PSD, do Partido Socialista (PS), da IL, do BE, do Partido Comunista
Português (PCP) e do Livre, e a abstenção do CDS-PP e do partido Pessoas-Natureza-Animais
(PAN).
Paralelamente,
foi aprovado um projeto de lei do PAN de alteração a Lei de Proteção de
Crianças e Jovens em Perigo, de modo a incluir na lista de situações de perigo
alguém que tenha sido submetido “a
casamento infantil, precoce e/ou forçado [CIPF], ou união similar, bem como à
prática de atos que tenham em vista tal união, mesmo que não concretizada”. O
projeto foi aprovado, apesar dos votos contra do PSD e do CDS-PP. E o PAN também
viu aprovada uma resolução que recomenda ao governo a adoção de medidas de prevenção, de sensibilização e de
combate aos casamentos infantis, precoces ou forçados.
No debate, a
deputada Joana Mortágua, pelo BE, sustentou que “fazer coincidir a idade da
maioridade com a idade a partir da qual se pode casar é um passo lógico e
necessário”, pois o “casamento de
menores é um resquício de outros tempos”.
O Chega
aduziu que o casamento de menores acontece, maioritariamente, na comunidade cigana. “Se
consideramos que uma criança antes dos 18 anos não pode conduzir, não podemos
permitir que case. Nenhuma, independentemente do credo, da etnia, da raça”,
defendeu a deputada Rita Matias. E, segundo a deputada Madalena Cordeiro, do
mesmo grupo parlamentar, “combater o casamento infantil é sinónimo de combater
as discrepâncias salariais entre homens e mulheres, a gravidez na adolescência,
o abandono escolar”.
Por seu turno, a deputada
Ofélia Ramos, do PSD, alertou que a proibição pode “empurrar estas uniões para a informalidade, tornando-as
mais difíceis de identificar e combater” e acusou os proponentes de
incoerência, sustentando que, “aos 16 um jovem pode trabalhar, pode responder
criminalmente pelos seus atos” ou “requerer a alteração de género”. A
crítica foi partilhada pelo CDS-PP, com João Almeida a acentuar que, na
comunidade cigana, “os casamentos existem segundos ritos dessa comunidade e não
são transpostos para o registo civil”.
A deputada
Isabel Moreira, do PS, considerou que as propostas do BE e do PAN “beneficiarão
de um debate aprofundado em sede
de especialidade”, para que “não se infira que a maioridade para casar
obriga à redução de outras idades estipuladas para situações jurídicas de natureza
completamente diferente”. António Filipe, do PCP defendeu que “quem
casa deve fazê-lo na sua plena liberdade” e sem necessitar de autorização dos
pais, mas alertou que “nada do que aqui é proposto afeta a comunidade cigana”. E
Filipa Pinto, do Livre, considerou que apenas
alterar a lei “pode tornar o casamento infantil menos visível” e
que é “essencial trabalhar com as famílias e [com] as comunidades”.
Patrícia
Gilvaz, da IL, recusando que o debate “seja instrumentalizado para alimentar
preconceitos”, defendeu uma “solução séria, consistente e bem fundamentada, que
proteja as crianças, sem atropelar a autonomia dos jovens”.
A deputada
única do PAN recusou que este debate seja usado como “terreno fértil para
aqueles que querem apenas diabolizar certas comunidades” e defendeu que a
discussão sobre o tema deve ser feita “longe de populismos”, vincando que o abuso
infantil não ocorre só nas famílias ciganas.
***
O
impacto do casamento nas crianças e jovens é significativo e de longo prazo, e
com consequências prejudiciais duradouras para a saúde, para o bem-estar e para
a realização plena dos direitos de milhões de crianças e jovens, sobretudo, do
género feminino. Os estudos referem que a prática está intimamente ligada a um
menor aproveitamento escolar, um aumento das taxas de infeções sexualmente
transmissíveis e pobreza intergeracional.
As
raparigas correm maior risco de violência doméstica e de género (incluindo a
violência física, sexual, social, económica, psicológica e emocional) e tendem
a ficar limitadas na tomada de decisões informadas e no acesso a oportunidades
iguais. A maior probabilidade de engravidarem precocemente, associada à sua
tenra idade e ao contexto de vida que têm, aumenta o risco de complicações na
gravidez, assim como de mortalidade e morbilidade materna e neonatal. No
atinente à saúde sexual e reprodutiva, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima
que, atualmente, as complicações resultantes da gravidez e do parto sejam, em
conjunto com o suicídio, as principais causas de morte em mulheres entre 15 e
os 19 anos a nível global.
Segundo o “Livro
Branco: Recomendações para Prevenir e Combater o Casamento Infantil, Precoce
e/ou Forçado”, apresentado em outubro de 2024, entre 2015 e 2023, 48
organizações identificaram 836
casos de casamentos infantis, precoces ou forçados (CIPL) em Portugal.
A maioria dos
jovens que se casaram tinha entre 15 e 18 anos, mas 126 casos envolveram crianças entre os 10 e
os 14 anos e 346 entre os 15 e 16 anos, sendo as raparigas com
menos de 18 anos as mais afetadas. A gravidez na adolescência, o abandono
escolar e o isolamento social surgem associados a estes fenómenos, tais como os
crimes de violência doméstica, de casamento de conveniência ou de tráfico de
seres humanos. Foram identificadas 392 pessoas com filhas e filhos, no âmbito do CIPL. Destas,
245 (62%) eram raparigas com menos de 18 anos, 38 com alguma deficiência
intelectual e 34 pessoas LGBTI. Um “casamento no mesmo grupo étnico, cultural, religioso, ou casta” foi o
motivo de 374 casamentos. As “normas sociais restritivas relacionadas
com o papel da mulher” foram motivo para 142 casamentos, bem como o “controlo
de comportamentos sexuais”, o “desejo de independência-autonomia” ou a “garantia
de que a terra, a propriedade e a riqueza permanecem na família”.
***
De
acordo com o mencionado Livro Branco,
a proteção dos direitos humanos é imperativo ético e normativo do Estado, a quem
incumbe garantir a proteção da criança e do/a jovem, bem como de qualquer pessoa
em situação de particular vulnerabilidade, independentemente da idade, do
contexto e todos os fatores que interfiram na sua vivência e desenvolvimento
adequado. Os CIPF representam práticas nefastas e afetam, de forma
desproporcional, raparigas e mulheres em todo o Mundo, pondo-as em maior risco
de violência sexual e baseada no género, aumentam o risco de abandono escolar e
põem em risco as oportunidades no futuro e seu bem-estar físico e mental.
O
casamento infantil – antes dos 18 anos – tem impacto significativo na autonomia
das raparigas para tomarem decisões livres sobre o seu corpo e sobre a sua
saúde sexual e reprodutiva, bem como em aceder aos respetivos cuidados de
saúde. As raparigas que se casam precocemente terão mais probabilidades de
engravidar precocemente e de terem mais filhos e filhas do que as raparigas que
se casam mais tarde. Esta situação aumenta os riscos de complicações conexas
com a gravidez e o parto, que podem ter impactos a longo prazo na saúde e até
causar a morte.
O
casamento infantil é prática prejudicial e violação de direitos humanos. Porém,
a sua prática mantém-se difundida e 19% das mulheres, entre os 20 e os 24 anos,
casaram ou estavam em união, antes dos 18 anos. E o casamento forçado é “um
casamento em que uma e/ou ambas as partes não expressaram o seu consentimento
pleno e livre”, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Direitos Humanos.
A
nível global, os esforços para eliminar o CIPF nunca foram tão claros, com
várias resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas e do Conselho de
Direitos Humanos a recomendar aos Estados o aumento dos investimentos na
eliminação destas práticas e o reforço da importância do consentimento livre,
completo e informado para o casamento.
Entre
2011 e 2015, o casamento infantil tornou-se questão reconhecida com a adoção de
parcerias e de compromissos internacionais, de que são exemplo: a criação da
“Girls Not Brides: a Parceria Global para o Fim do Casamento Infantil”, a
adoção do Dia Internacional da Rapariga, em 2012, o lançamento do Programa
Global do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e do Fundo das
Nações para a Infância (UNICEF) para “Acelerar a Ação para o Fim do Casamento
Infantil” e o acordo sobre uma meta dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) para a eliminação de todas as práticas nocivas, como os
casamentos prematuros, forçados e envolvendo crianças e jovens, bem como as
mutilações genitais femininas.
Tais
metas são essenciais para atingir os objetivos conexos com a igualdade de
género e demais ODS, de acordo com a Agenda 2030. As Nações Unidas têm trabalhado
com os estados-membros através de resoluções que enfatizam que estas práticas
representam uma ameaça à realização universal dos direitos humanos. Em dezembro
de 2014, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma Resolução sobre o
Casamento infantil, Precoce e Forçado (A/RES/69/156), tendo em conta a
Resolução do Conselho de Direitos Humanos, de 2013, que abordava o casamento
infantil. Dois anos depois, aprovou outra Resolução sobre o Casamento Infantil,
Precoce e Forçado (A/RES/71/175), reafirmando e reforçando os compromissos
anteriores e destacando as responsabilidades dos estados-membros em acabar com
este fenómeno. Em dezembro de 2022, a mais recente resolução (A/RES/77/2022)
recomenda aos estados, entre outras medidas, que desenvolvam e implementem “respostas
e estratégias holísticas, abrangentes e coordenadas, sensíveis à idade e ao
género, centradas nas vítimas e multissetoriais”, que respeitem os direitos
humanos para prevenir e eliminar os CIPF, motivando, para tal, “a participação
de partes interessadas, incluindo mulheres e raparigas, homens e rapazes, pais
e outros membros da família, professores, líderes religiosos, tradicionais e
comunitários, sociedade civil, organizações lideradas por raparigas,
organizações de mulheres, grupos de jovens e de direitos humanos, os meios de
comunicação e o setor privado”.
O
Livro Branco identificou situações
que envolvem crianças desde os 10 anos, em particular, raparigas (121, entre os
10-14 anos, e 239, entre os 15 e os 16) e reiterou a urgência da proteção
destas crianças e de outras potencialmente em perigo. Em linha com a evidência
científica, surgem conexos com estes fenómenos a gravidez, na adolescência, o
abandono escolar e como crimes conexos, como violência doméstica, o casamento
de conveniência ou o tráfico de seres humanos. O CIPF causa múltiplos danos,
sobretudo, às raparigas, que veem os seus direitos à saúde, educação e
desenvolvimento negados. A retirada da escola é um dos principais meios usados
para pressionar o casamento ou união equiparável, no caso das raparigas,
emergindo a importância de envolver os estabelecimentos de educação na
prevenção e identificação precoce dos casos.
Os
casos reportados, na maioria, não estão refletidos nas estatísticas oficiais de
matrimónios, já que 558 pessoas eram solteiras/os, estando em união informal. São
as próprias entidades reportantes quem identifica os casos, no âmbito das suas
atividades (40%), o que reforça a necessidade de formação e capacitação das
equipas técnicas, para que identifiquem, denunciem e deem o devido seguimento aos
casos. Mais de metade (64,6%) das entidades que reportam casos afirmam que,
face a um caso, devem mobilizar apoio social e 56% declara que se deve comunicar
ao Ministério Público (MP).
Pela
complexidade da criminalização e pela sua eficácia na redução de casos e na proteção
das vítimas, é de analisar a razão de as instituições nem sempre acionarem as competentes
entidades para exercer a ação penal. As entidades reportaram 128 casos tentados
e não ocorridos, o que releva a sua ação na prevenção e intervenção nestes
fenómenos. Ora, apesar de 36% das entidades atribuírem “muita prioridade” à
temática do casamento infantil, precoce e forçado, não é de negligenciar que
12% das entidades atribuem “nenhuma prioridade” e 13% atribuem “pouca
prioridade”, evidenciando a importância de se investir na sensibilização do
fenómeno.
***
Pelos
vistos, não basta protelar a idade do casamento. São necessárias ações de
sensibilização e de dissuasão da fuga para a união de facto de pessoas menores,
e a punição do casamento forçado (ou aliciado), das uniões informais de menores
e de todo o tipo de coerção. Não há que dispensar da comunidade cigana de
observar os requisitos da boa convivência e do são desenvolvimento pessoal e social
(incluindo a frequência da escola). E não vale aduzir que os maiores de 16 anos
já podem trabalhar, pois também, por exemplo, ainda não podem votar.
O voto
contra dos partidos do governo só se entende, se estiver na forja a diminuição da
idade mínima para atingir a maioridade e os jovens de 16 anos poderem exercer o
direito de voto.
2025.01.31 – Louro de Carvalho
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