sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Assembleia da República aprova os 18 anos como idade mínima para casar

 

A Assembleia da República (AR) aprovou, na generalidade, a 31 de janeiro, o projeto de lei do Bloco de Esquerda (BE) no sentido do aumento, para os 18 anos, da idade mínima para um/a jovem poder casar e rejeitou a do Chega quase do mesmo teor. Dominaram o debate referências aos costumes da comunidade cigana, mas a lei pode “empurrar uniões para a informalidade”.

Atualmente, a idade mínima para casamento é 16 anos, mas carecendo de autorização dos pais ou do tutor, exceto se o conservador do registo civil tiver suprido tal autorização. Soube de casos, na década de 1990, em que mães queriam que filhas de 14/15 anos casassem. E, como o pároco negasse tal possibilidade, face à lei, era tido como responsável pela vida irregular delas.

O projeto de lei do BE mereceu o voto contra do Partido Social Democrata (PSD) e do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP), a abstenção da Iniciativa Liberal (IL) e o voto favorável das demais bancadas. O projeto de lei do Chega contou com o voto contra do PSD, do Partido Socialista (PS), da IL, do BE, do Partido Comunista Português (PCP) e do Livre, e a abstenção do CDS-PP e do partido Pessoas-Natureza-Animais (PAN). 

Paralelamente, foi aprovado um projeto de lei do PAN de alteração a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, de modo a incluir na lista de situações de perigo alguém que tenha sido submetido “a casamento infantil, precoce e/ou forçado [CIPF], ou união similar, bem como à prática de atos que tenham em vista tal união, mesmo que não concretizada”. O projeto foi aprovado, apesar dos votos contra do PSD e do CDS-PP. E o PAN também viu aprovada uma resolução que recomenda ao governo a adoção de medidas de prevenção, de sensibilização e de combate aos casamentos infantis, precoces ou forçados

No debate, a deputada Joana Mortágua, pelo BE, sustentou que “fazer coincidir a idade da maioridade com a idade a partir da qual se pode casar é um passo lógico e necessário”, pois o “casamento de menores é um resquício de outros tempos”

O Chega aduziu que o casamento de menores acontece, maioritariamente, na comunidade cigana. “Se consideramos que uma criança antes dos 18 anos não pode conduzir, não podemos permitir que case. Nenhuma, independentemente do credo, da etnia, da raça”, defendeu a deputada Rita Matias. E, segundo a deputada Madalena Cordeiro, do mesmo grupo parlamentar, “combater o casamento infantil é sinónimo de combater as discrepâncias salariais entre homens e mulheres, a gravidez na adolescência, o abandono escolar”. 

Por seu turno, a deputada Ofélia Ramos, do PSD, alertou que a proibição pode “empurrar estas uniões para a informalidade, tornando-as mais difíceis de identificar e combater” e acusou os proponentes de incoerência, sustentando que, “aos 16 um jovem pode trabalhar, pode responder criminalmente pelos seus atos” ou “requerer a alteração de género”. A crítica foi partilhada pelo CDS-PP, com João Almeida a acentuar que, na comunidade cigana, “os casamentos existem segundos ritos dessa comunidade e não são transpostos para o registo civil”.

A deputada Isabel Moreira, do PS, considerou que as propostas do BE e do PAN “beneficiarão de um debate aprofundado em sede de especialidade”, para que “não se infira que a maioridade para casar obriga à redução de outras idades estipuladas para situações jurídicas de natureza completamente diferente”. António Filipe, do PCP defendeu que “quem casa deve fazê-lo na sua plena liberdade” e sem necessitar de autorização dos pais, mas alertou que “nada do que aqui é proposto afeta a comunidade cigana”. E Filipa Pinto, do Livre, considerou que apenas alterar a lei “pode tornar o casamento infantil menos visível” e que é “essencial trabalhar com as famílias e [com] as comunidades”. 

Patrícia Gilvaz, da IL, recusando que o debate “seja instrumentalizado para alimentar preconceitos”, defendeu uma “solução séria, consistente e bem fundamentada, que proteja as crianças, sem atropelar a autonomia dos jovens”.

A deputada única do PAN recusou que este debate seja usado como “terreno fértil para aqueles que querem apenas diabolizar certas comunidades” e defendeu que a discussão sobre o tema deve ser feita “longe de populismos”, vincando que o abuso infantil não ocorre só nas famílias ciganas. 

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O impacto do casamento nas crianças e jovens é significativo e de longo prazo, e com consequências prejudiciais duradouras para a saúde, para o bem-estar e para a realização plena dos direitos de milhões de crianças e jovens, sobretudo, do género feminino. Os estudos referem que a prática está intimamente ligada a um menor aproveitamento escolar, um aumento das taxas de infeções sexualmente transmissíveis e pobreza intergeracional.

As raparigas correm maior risco de violência doméstica e de género (incluindo a violência física, sexual, social, económica, psicológica e emocional) e tendem a ficar limitadas na tomada de decisões informadas e no acesso a oportunidades iguais. A maior probabilidade de engravidarem precocemente, associada à sua tenra idade e ao contexto de vida que têm, aumenta o risco de complicações na gravidez, assim como de mortalidade e morbilidade materna e neonatal. No atinente à saúde sexual e reprodutiva, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, atualmente, as complicações resultantes da gravidez e do parto sejam, em conjunto com o suicídio, as principais causas de morte em mulheres entre 15 e os 19 anos a nível global.

Segundo o “Livro Branco: Recomendações para Prevenir e Combater o Casamento Infantil, Precoce e/ou Forçado”, apresentado em outubro de 2024, entre 2015 e 2023, 48 organizações identificaram 836 casos de casamentos infantis, precoces ou forçados (CIPL) em Portugal. 

A maioria dos jovens que se casaram tinha entre 15 e 18 anos, mas 126 casos envolveram crianças entre os 10 e os 14 anos e 346 entre os 15 e 16 anos, sendo as raparigas com menos de 18 anos as mais afetadas. A gravidez na adolescência, o abandono escolar e o isolamento social surgem associados a estes fenómenos, tais como os crimes de violência doméstica, de casamento de conveniência ou de tráfico de seres humanos.  Foram identificadas 392 pessoas com filhas e filhos, no âmbito do CIPL. Destas, 245 (62%) eram raparigas com menos de 18 anos, 38 com alguma deficiência intelectual e 34 pessoas LGBTI. Um “casamento no mesmo grupo étnico, cultural, religioso, ou casta” foi o motivo de 374 casamentos. As “normas sociais restritivas relacionadas com o papel da mulher” foram motivo para 142 casamentos, bem como o “controlo de comportamentos sexuais”, o “desejo de independência-autonomia” ou a “garantia de que a terra, a propriedade e a riqueza permanecem na família”.

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De acordo com o mencionado Livro Branco, a proteção dos direitos humanos é imperativo ético e normativo do Estado, a quem incumbe garantir a proteção da criança e do/a jovem, bem como de qualquer pessoa em situação de particular vulnerabilidade, independentemente da idade, do contexto e todos os fatores que interfiram na sua vivência e desenvolvimento adequado. Os CIPF representam práticas nefastas e afetam, de forma desproporcional, raparigas e mulheres em todo o Mundo, pondo-as em maior risco de violência sexual e baseada no género, aumentam o risco de abandono escolar e põem em risco as oportunidades no futuro e seu bem-estar físico e mental.

O casamento infantil – antes dos 18 anos – tem impacto significativo na autonomia das raparigas para tomarem decisões livres sobre o seu corpo e sobre a sua saúde sexual e reprodutiva, bem como em aceder aos respetivos cuidados de saúde. As raparigas que se casam precocemente terão mais probabilidades de engravidar precocemente e de terem mais filhos e filhas do que as raparigas que se casam mais tarde. Esta situação aumenta os riscos de complicações conexas com a gravidez e o parto, que podem ter impactos a longo prazo na saúde e até causar a morte.

O casamento infantil é prática prejudicial e violação de direitos humanos. Porém, a sua prática mantém-se difundida e 19% das mulheres, entre os 20 e os 24 anos, casaram ou estavam em união, antes dos 18 anos. E o casamento forçado é “um casamento em que uma e/ou ambas as partes não expressaram o seu consentimento pleno e livre”, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

A nível global, os esforços para eliminar o CIPF nunca foram tão claros, com várias resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos a recomendar aos Estados o aumento dos investimentos na eliminação destas práticas e o reforço da importância do consentimento livre, completo e informado para o casamento.

Entre 2011 e 2015, o casamento infantil tornou-se questão reconhecida com a adoção de parcerias e de compromissos internacionais, de que são exemplo: a criação da “Girls Not Brides: a Parceria Global para o Fim do Casamento Infantil”, a adoção do Dia Internacional da Rapariga, em 2012, o lançamento do Programa Global do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e do Fundo das Nações para a Infância (UNICEF) para “Acelerar a Ação para o Fim do Casamento Infantil” e o acordo sobre uma meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para a eliminação de todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e envolvendo crianças e jovens, bem como as mutilações genitais femininas.

Tais metas são essenciais para atingir os objetivos conexos com a igualdade de género e demais ODS, de acordo com a Agenda 2030. As Nações Unidas têm trabalhado com os estados-membros através de resoluções que enfatizam que estas práticas representam uma ameaça à realização universal dos direitos humanos. Em dezembro de 2014, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma Resolução sobre o Casamento infantil, Precoce e Forçado (A/RES/69/156), tendo em conta a Resolução do Conselho de Direitos Humanos, de 2013, que abordava o casamento infantil. Dois anos depois, aprovou outra Resolução sobre o Casamento Infantil, Precoce e Forçado (A/RES/71/175), reafirmando e reforçando os compromissos anteriores e destacando as responsabilidades dos estados-membros em acabar com este fenómeno. Em dezembro de 2022, a mais recente resolução (A/RES/77/2022) recomenda aos estados, entre outras medidas, que desenvolvam e implementem “respostas e estratégias holísticas, abrangentes e coordenadas, sensíveis à idade e ao género, centradas nas vítimas e multissetoriais”, que respeitem os direitos humanos para prevenir e eliminar os CIPF, motivando, para tal, “a participação de partes interessadas, incluindo mulheres e raparigas, homens e rapazes, pais e outros membros da família, professores, líderes religiosos, tradicionais e comunitários, sociedade civil, organizações lideradas por raparigas, organizações de mulheres, grupos de jovens e de direitos humanos, os meios de comunicação e o setor privado”.

O Livro Branco identificou situações que envolvem crianças desde os 10 anos, em particular, raparigas (121, entre os 10-14 anos, e 239, entre os 15 e os 16) e reiterou a urgência da proteção destas crianças e de outras potencialmente em perigo. Em linha com a evidência científica, surgem conexos com estes fenómenos a gravidez, na adolescência, o abandono escolar e como crimes conexos, como violência doméstica, o casamento de conveniência ou o tráfico de seres humanos. O CIPF causa múltiplos danos, sobretudo, às raparigas, que veem os seus direitos à saúde, educação e desenvolvimento negados. A retirada da escola é um dos principais meios usados para pressionar o casamento ou união equiparável, no caso das raparigas, emergindo a importância de envolver os estabelecimentos de educação na prevenção e identificação precoce dos casos.

Os casos reportados, na maioria, não estão refletidos nas estatísticas oficiais de matrimónios, já que 558 pessoas eram solteiras/os, estando em união informal. São as próprias entidades reportantes quem identifica os casos, no âmbito das suas atividades (40%), o que reforça a necessidade de formação e capacitação das equipas técnicas, para que identifiquem, denunciem e deem o devido seguimento aos casos. Mais de metade (64,6%) das entidades que reportam casos afirmam que, face a um caso, devem mobilizar apoio social e 56% declara que se deve comunicar ao Ministério Público (MP).

Pela complexidade da criminalização e pela sua eficácia na redução de casos e na proteção das vítimas, é de analisar a razão de as instituições nem sempre acionarem as competentes entidades para exercer a ação penal. As entidades reportaram 128 casos tentados e não ocorridos, o que releva a sua ação na prevenção e intervenção nestes fenómenos. Ora, apesar de 36% das entidades atribuírem “muita prioridade” à temática do casamento infantil, precoce e forçado, não é de negligenciar que 12% das entidades atribuem “nenhuma prioridade” e 13% atribuem “pouca prioridade”, evidenciando a importância de se investir na sensibilização do fenómeno.

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Pelos vistos, não basta protelar a idade do casamento. São necessárias ações de sensibilização e de dissuasão da fuga para a união de facto de pessoas menores, e a punição do casamento forçado (ou aliciado), das uniões informais de menores e de todo o tipo de coerção. Não há que dispensar da comunidade cigana de observar os requisitos da boa convivência e do são desenvolvimento pessoal e social (incluindo a frequência da escola). E não vale aduzir que os maiores de 16 anos já podem trabalhar, pois também, por exemplo, ainda não podem votar. 

O voto contra dos partidos do governo só se entende, se estiver na forja a diminuição da idade mínima para atingir a maioridade e os jovens de 16 anos poderem exercer o direito de voto.

2025.01.31 – Louro de Carvalho

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