quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Relatório “Takers not Makers” denuncia crescente desigualdade no planeta

 

A 20 de janeiro, dia do início da 55.ª edição da reunião anual do Fórum Económico Mundial (WEF) ou Fórum de Davos (por ocorrer na cidade de Davos, nos Alpes suíços), a organização Oxfam Internacional publicou o relatório Takers not Makers (Beneficiários, não Criadores), referente ao ano 2024, sobre a pobreza e as desigualdades nesta nossa “Casa Comum”. 

Para José Centeio (ver "Multimilionários aumentam a sua riqueza em dois biliões de euros", in “Sete Margens”, 20 de janeiro), não é inocente esta atitude, pois, nesse encontro, concentram-se os que têm nas mãos o poder de alterar o rumo da política e da economia e de dar alguma esperança aos mais desprotegidos do Mundo.

Ali acorrem, anualmente, as elites económicas e políticas que nos governam, ou seja, cerca de 350 líderes mundiais, de mais de 130 países, entre os quais 60 chefes de Estado e de governo, além de 900 líderes de grandes empresas – no total, cerca de cinco mil participantes.

Como admitiu, talvez numa alusão ao regresso de Donald Trump à Casa Branca (a posse ocorreu nesse dia), o norueguês Borge Brende, novo líder do WEF, a edição de 2025 ocorre “no cenário geopolítico mais complicado das últimas gerações”. 

A coincidência do WEF como o início na nova governança dos Estados Unidos da América (EUA) é significativa num planeta cada vez mais desigual e com muitos a pensar que, no horizonte temporal destes quatro anos, os EUA marcarão do rumo do Mundo – isto, sem esquecer que o Fórum deste ano decorre num quadro de fortes tensões, à escala global, devido aos vários conflitos armados e às guerras na Ucrânia e Médio Oriente, às guerras comerciais iminentes, à pressão das alterações climáticas e à procura de novos equilíbrios geoestratégicos.

A Oxfam previu, em 2024, o surgimento do primeiro trilionário (riqueza na ordem dos triliões) dentro de uma década, enquanto a pobreza só poderia ser erradicada em 230 anos. Porém, face à aceleração da acumulação de riqueza, tal projeção foi atualizada  – tendo em conta a taxas atuais de enriquecimento –, para que apareçam, pelo menos, cinco trilionários, dentro de 10 anos.

Os dados do relatório em causa são chocantes para todos, mas, sobretudo, para quem luta, no quotidiano, pela sua sobrevivência e da sua família. Na verdade, os trabalhadores migrantes, em países ricos, ganham, em média, cerca de 13 % menos do que os nacionais, com a diferença salarial a subir para 21 %, quando se trata de mulheres migrantes. Globalmente, as mulheres estão, com maior frequência, em modalidades mais vulneráveis ​​de emprego, nomeadamente, informal, incluindo trabalho doméstico. Não é, pois, sem razão que, entre os mais fragilizados, as mulheres e as crianças continuam a ser quem mais sofre.

De acordo com o relatório, os super-ricos do Mundo criaram uma nova era de poder corporativo e monopolista que garante lucros exorbitantes e controlo das economias dos países; e essas corporações e os seus multimilionários alimentam as desigualdades, pressionando trabalhadores, negando direitos, evitando o pagamento de impostos, privatizando o Estado e destruindo a Terra.

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Os números falam por si.

A riqueza dos 10 maiores multimilionários mundiais cresceu, em média, 100 milhões de euros por dia, em 2024, tendo duplicado, desde 2020, enquanto a de 60% da população global – cerca de cinco mil milhões de pessoas – diminuiu, neste mesmo período.

A riqueza combinada dos multimilionários aumentou de quase 13 biliões de euros para cerca de 15 biliões de euros, em apenas 12 meses. A riqueza combinada dos multimilionários do Mundo aumentou 1,94 biliões de euros, em 2024, o equivalente a 55,4 mil milhões de euros por dia. Assim, essa riqueza cresceu a um ritmo três vezes superior ao do ano anterior.

A riqueza conjunta dos dez homens mais ricos do Mundo aumentou, em média, quase 97,2 milhões de euros, por dia; e, mesmo que perdessem 99% da sua riqueza de um dia para o outro, “continuariam a ser multimilionários”. E os 10% mais ricos detêm 45% de toda a riqueza mundial.

O 1% mais rico da população mundial possui 45% da riqueza global, enquanto 44% da Humanidade vive com menos de 6,66 euros, por dia. De acordo com o Banco Mundial (BM) o número de pessoas que vive na pobreza permanece quase inalterado desde 1990.

A nível mundial, o relatório revela que 36% da riqueza dos mais ricos é herdada e 61% é também marcada pelo clientelismo e/ou ligada ao poder dos monopólios.

O relatório foca também o fluxo de riqueza do Sul para Norte, pelo que as organizações que integram a Oxfam exigem que se acabe com esse fluxo, nomeadamente, através do cancelamento de dívidas e da eliminação do poder que os países ricos e as empresas têm sobre os mercados financeiros e das regras comerciais que elas próprias ditam.

Ainda de acordo com o documento, o “1% mais rico dos países do Norte Global, como os EUA, o Reino Unido e a França, extraiu, em 2023, cerca de 30 milhões de euros, por hora, do Sul Global, através do sistema financeiro; e os países do Norte Global controlam 69% da riqueza global e albergam 68% dos multimilionários, controlando 77% da sua riqueza, apesar de representarem apenas 21% da população global”.

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Segundo a Agência do Brasil para a Economia (EBC) – https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-01/ritmo-de-concentracao-de-renda-aumenta-mostra-relatorio-oxfam-2025 –, o ritmo de concentração, em 2024, teve novo pico, a exemplo do que ocorreu durante a pandemia de covid-19. Surgiram 204 novos multimilionários no planeta, e o ritmo de enriquecimento dos super-ricos aumentou três vezes, em relação a 2023.

Os multimilionários, pouco mais de 2900 pessoas, enriqueceram, em média, dois milhões de dólares, por dia. Os dez mais ricos, por sua vez, enriqueceram, em média, 100 milhões de dólares, por dia. “Enquanto isso, de acordo com o BM, o número de pessoas que vivem na pobreza, praticamente, não mudou desde 1990”, destaca o relatório, apontando que os 44% mais pobres do Mundo vivem com menos de 6,85 dólares, por dia.

Por comparação, o produto interno bruto (PIB) global, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), teve um aumento de cerca de 3,2%, para uma população que a Organização das Nações Unidas (ONU) estima em oito biliões de pessoas. Segundo o BM, o PIB global era de 33,86 triliões de dólares, em 2000, e chegou aos 106,7 triliões de dólares, em 2023, embora com diminuição dos índices de extrema pobreza (os que recebem menos de 2,15 dólares, por dia), que eram 29,3% da população mundial, em 2000, e são ainda 9% da população, nos dados de 2023.

Segundo a EBC, o estudo da Oxfam identifica a correlação entre a manutenção do colonialismo, a centralidade das instituições financeiras no Norte Global e a concentração das instituições culturais, com universidades de ponta e empresas de tecnologia, na dificuldade em combater a concentração. Por sua vez, essa dinâmica tem correlação com a lógica de transferência, com a taxação de alimentos e de insumos usados por toda a população e com maior peso nas populações pobres, como medicamentos, além da imposição de taxas altas de empréstimos e da lógica draconiana de pagamento de dívidas externas, por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI). E a situação global só não está pior por conta do crescimento asiático, sobretudo chinês, que foi responsável por tirar centenas de milhares da pobreza.

Porém, falta comprometimento institucional para mudar a situação, como indica o seguinte trecho do relatório: “Usando os dados orçamentais mais recentes sobre a situação dos trabalhadores, [sobre] os níveis de tributação e [sobre] os gastos públicos de 161 países, a Oxfam e a Development Finance International apresentam um quadro mais atualizado no Índice de Compromisso com a Redução da Desigualdade 2024.125. O índice revela tendências negativas, na grande maioria dos países, desde 2022. Quatro em cada cinco países reduzirão a fatia de seus orçamentos destinada à educação, [à] saúde e/ou [à] proteção social; quatro, em cada cinco países, reduziram a tributação progressiva; e nove, em cada dez países, retrocederam em direitos trabalhistas e [em] salários mínimos.”

Aludindo à publicação, em janeiro de 1605, da obra-prima de Miguel de Cervantes, “Don Quixote de La Mancha” – em que personagem que dá o título ao romance, sustenta que “mudar o Mundo […] não é loucura, não é utopia, é justiça” –, a EBC considera que, 420 anos depois, “com a industrialização e [com] o desenvolvimento do sistema financeiro nesse interstício, as conclusões apontadas no relatório, hoje ainda são muito próximas”. Contudo, é possível mudar a situação e fazer justiça.

Ora, as propostas da Oxfam, para tornar o Mundo mais justo, são:

* Reduzir, radicalmente, a desigualdade, definindo metas globais e nacionais para isso: acabar com a riqueza extrema; firmar compromisso com a meta global de desigualdade que reduz, drasticamente, a desigualdade entre o Norte Global e o Sul Global; e gizar metas semelhantes com prazo determinado, para reduzir a desigualdade económica nacional, a fim de que o rendimento total dos 10% mais ricos não seja maior do que a renda total dos 40% mais pobres.

* Reparar as feridas do colonialismo. Os ex-governos coloniais devem reconhecer e pedir desculpa formal por toda a gama de crimes cometidos durante o colonialismo e garantir que tais crimes entrem na memória pública. Devem ser feitas as reparações às vítimas, para garantir a restituição, proporcionar satisfação, compensar os danos sofridos, garantir a reabilitação e evitar futuros abusos. E o custo das reparações deve ser suportado pelos mais ricos, que foram os que mais se beneficiaram com o colonialismo.

* Acabar com os sistemas de colonialismo moderno. O FMI, o BM, a ONU e outras instituições globais devem mudar, completamente, a sua governança, para acabar com o domínio formal e informal do Norte Global e com os interesses das suas elites e das corporações ricas. Deve ser encerrado o domínio das nações e das corporações ricas sobre os mercados financeiros, bem como as regras comerciais. Em seu lugar, requer-se um novo sistema que promova a soberania económica dos governos do Sul Global e permita o acesso a salários e práticas trabalhistas justas para todos os trabalhadores, e a revogação das políticas e dos acordos de livre comércio desiguais.

* Tributar os mais ricos, para acabar com a riqueza extrema. A política tributária global deve se enquadrar em nova convenção tributária da ONU e facilitar o pagamento de impostos mais altos pelas pessoas e empresas mais ricas para reduzir a desigualdade e acabar com a riqueza extrema.

* Promover a cooperação e a solidariedade Sul-Sul. Os governos do Sul Global devem formar alianças e acordos regionais que priorizem trocas equitativas e mutuamente benéficas, promovam a Independência económica e reduzam a dependência de antigas potências coloniais ou das economias do Norte Global. Coletivamente, devem exigir reformas nas instituições internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, e promover o desenvolvimento coletivo, através do compartilhamento, do reconhecimento, da tecnologia e dos recursos para apoiar o desenvolvimento sustentável e resistir aos sistemas globais exploradores. E os governos devem fortalecer os serviços públicos e implementar reformas agrárias, para garantir o acesso à terra.

* Acabar com o colonialismo formal em curso, em todas as suas formas. Os territórios não autónomos remanescentes devem ser apoiados, para garantir os seus direitos à igualdade de e à autodeterminação, de acordo com o Artigo 1.º, n.º 2, da Carta das Nações Unidas e com a Declaração das Nações Unidas sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais.

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Em suma, como solução, a OXFAM sustenta que o poder público precisa de intervir. Os governos têm de redesenhar os mercados, para serem mais justos e livres do controlo de multimilionários. Devem ser quebrados os monopólios, os benefícios devem alcançar, diretamente, os trabalhadores e as corporações e os super-ricos devem ser devidamente tributados. É, pois necessário investir numa nova era de bens e de serviços públicos.

De entre as várias propostas concretas assumidas pela Oxfam destaca-se: a taxação de multimilionários, enquadrada numa nova convenção fiscal da ONU, com o objetivo de reduzir as desigualdades económicas no Mundo; a abolição dos paraísos fiscais, visto que metade dos multimilionários vive (ou possui os seus capitais) em países sem imposto sobre as heranças para os descendentes diretos; e o compromisso, para “reduzir radicalmente a desigualdade”, dos governos com a garantia de que, “tanto a nível global como a nível nacional, o rendimento dos 10% mais ricos não é superior ao dos 40% mais pobres”.

Apesar destas propostas não resolverem o problema, podem mitigar as suas consequências.

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Curiosamente, o lema da 55.ª edição do WEF é “Colaborando para a Era Inteligente”, num tempo de rápidos avanços em tecnologias como a inteligência artificial (IA) e a computação quântica. Ora, de acordo com um relatório do WEF sobre o futuro do trabalho, divulgado no início de janeiro, as novas tecnologias poderão destruir 92 milhões de empregos, no Mundo, até 2030, e criar 170 milhões de novos empregos.  Esta transformação exigirá grande esforço de adaptação e investimento em formação, o que levará a aumentar, ainda mais, o nível de desigualdades. Além disso, há o enorme risco de concentração desmesurada de poder nos países e nas empresas que controlam as áreas das tecnologias e da IA. Como são áreas que exigem grandes investimentos, à partida, os já multimilionários estão na linha da frente.  

Assim, os próximos tempos não serão favoráveis a grandes mudanças na diminuição da pobreza e das desigualdades, mas importa não esquecer que a esperança reside em cada um de nós, quando temos um Mundo para cuidar e o futuro, embora não nos pertença, também depende de nós.

Esta realidade coloca a todos nós a necessidade de maior exigência em relação aos decisores e às escolhas que determinam as políticas que são contrárias ou favoráveis ao desenvolvimento do bem comum. As democracias também dependem disso.

2025.01.22 – Louro de Carvalho

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