quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

É sugerida a deportação da bispa de Washington por críticas a Trump

 

Mariann Edgar Budde, a bispa episcopaliana de Washington DC, nos Estados Unidos da América (EUA) foi instada, de vários lados, a explicar o que dissera ante o presidente, o vice-presidente e as respetivas famílias, que ocupavam os bancos da frente, face a face com o púlpito de onde proferiu a sua alocução, na celebração litúrgica, na catedral, a 21 de janeiro, dia subsequente à posse do presidente norte-americano e do respetivo vice-presidente, no dia anterior.

A súmula das suas declarações transparece no que disse a uma jornalista da CNN, ao frisar que não estava a falar de temas ou problemas abstratos, mas de pessoas concretas, que ela conhece e em nome das quais tomou a palavra.

No final da celebração, Mariann Edgar Budde, paramentada e de báculo na mão, e Donald Trump cumprimentaram-se, rapidamente. Porém à saída do templo, ante alguns jornalistas que o interpelaram sobre se tinha gostado, o presidente devolveu a pergunta e comentou: “Não acho que tenha sido um bom serviço. Poderiam ter feito muito melhor”. É uma resposta que a hierarca considerou “respeitosa”. Porém, mal Donald Trump se pôde dedicar a uma das suas atividades regulares – escrever posts na sua rede social –, classificou-a de “assim chamada bispa” e de “uma esquerdista radical que odeia Trump” e que “adotou um tom desagradável”, não “convincente nem inteligente”. Mais disse que os seus comentários foram “inapropriados e aborrecidos e muito pouco inspiradores”, pelo que “ela e a sua Igreja devem desculpas ao público”.

Entretanto, a visada respondeu: “Desculpas, não. […] Entendo que estou a implorar misericórdia para outros; por isso, não tenho de pedir desculpas.”  Explicando um pouco mais, acrescentou, num canal televisivo a que prestou declarações, a respeito dos efeitos de algumas promessas do presidente: “Eu tinha a sensação de que havia pessoas que observam o que estava a acontecer [com as ordens executivas] e a perguntar-se: ‘será que alguém vai dizer alguma coisa?’” E sentiu que a perspetiva cristã crítica do poder que se estava a instalar não tinha tido voz no conjunto das cerimónias inaugurais dos dias anteriores. Ao assumir ser essa voz, a bispa foi a voz incómoda deste momento – inconveniente para uns e corajosa para outros.

Um eloquente sinal do modo como a intervenção de Mariann Budde foi recebida entre os apoiantes de Trump vê-se na reação de um deputado eleito pela Geórgia para a Câmara dos Representantes, ao sugerir a inclusão da bispa na “lista das deportações” referente aos imigrantes. As redes sociais, a par dos apoios e dos aplausos, encheram-se de ataques, de insultos e de ameaças, levando à criação de contas destinadas a defender a bispa de Washington.

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Mike Collins, congressista da Geórgia pediu a deportação da bispa que pediu a Donald Trump que “tivesse misericórdia” da comunidade LGBTQ+ e dos imigrantes.

Compartilhando um trecho do sermão sobre X, Mike Collins pediu que Mariann Budde fosse “adicionada à lista de deportação”, um dia após Trump começar a assinar uma caterva de ordens executivas relacionadas com a imigração. “A pessoa que está a dar esse sermão deve ser adicionada à lista de deportação”, escreveu o congressista republicano, no dia 21. Todavia, como Budde nasceu em Nova Jersey, em 1959, e é cidadã americana, não pode ser deportada. Não está claro como Collins planeia a deportação da bispa, nem para onde deve ser deportada. O Independent contatou o seu gabinete de imprensa para esclarecimentos, sem êxito.

A bispa, de fala mansa, proferiu o seu alerta: “Em nome do nosso Deus, peço que tenham misericórdia das pessoas que, no nosso país, estão assustadas, agora. […] Há crianças gays, lésbicas e transgénero em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas que temem pelas suas vidas.” E, prosseguindo, frisou: “A vasta maioria dos imigrantes não é criminosa. Peço que tenha misericórdia, senhor Presidente, daqueles cujos filhos, nas nossas comunidades, temem que os pais sejam levados embora, e que ajude os que estão a fugir de zonas de guerra e de perseguição nas suas próprias terras a encontrarem compaixão e boas-vindas aqui.”

A terminar o sermão, Donald Trump disse algo a James David Vance que o fez balançar a cabeça.

Com efeito, os clãs Trump e Vance sentaram-se impassíveis nas primeiras filas da nave, enquanto a bispa criticava e pedia misericórdia.

À saída da catedral, os repórteres perguntaram ao presidente o que achou do serviço. “Não foi muito emocionante. Não achei que foi um bom serviço. Não, eles podem fazer muito melhor”, retorquiu. Depois, na noite do dia 21, em tom inflamado, no TruthSocial, Donald Trump escreveu que Budde deve um pedido de desculpas “ao público”. “A suposta bispa que falou no Serviço Nacional de Oração, na terça-feira, de manhã, era uma radical esquerdista de linha dura que odiava Trump”, escreveu o presidente, vincando: “Tinha um tom desagradável e não era convincente ou inteligente... Ela e a sua igreja devem um pedido de desculpas ao público!”

O vice-presidente J. D. Vance, a 22 de janeiro, ainda não tinha comentado o sermão de Budde.

O ataque de Trump ocorreu após duras críticas à bispa, por parte dos seus fiéis MAGA (“Make America Great Again”), no início do dia.

Tommy Tuberville, senador do Alabama condenou o discurso, numa entrevista à Newsmax, no dia 21. “Para esta bispa fazer isso com o presidente Trump, depois de um fim de semana de..., em vez de falar sobre Deus mais do que nunca, falar sobre como ele foi poupado para dar uma oportunidade de, talvez, [levar] este país de volta para algo que deveria ser – simplesmente me espanta quão longe essas pessoas vão”, disse ao The Todd Starnes Show, da On Newsmax.

Os apresentadores da Fox News defenderam o presidente e criticaram os comentários de Budde. “Fez o culto sobre as suas próprias crenças políticas perturbadas com uma oração vergonhosa cheia de alarmismo e divisão”, acusou o antigo aliado de Trump e apresentador do Hannity, Sean Hannity, enquanto a âncora da Fox News, Laura Ingraham, acrescentou: “Mas, em vez de um culto cristão sobre Deus e o país, eles foram forçados a ouvir os discursos de um lunático.”

Budde, mais tarde, abordou a controvérsia numa aparição na CNN, aduzindo que estava a lembrar-nos de que as pessoas estão assustadas no país. “Os dois grupos de pessoas que mencionei são nossos semelhantes e foram retratados em toda a campanha política, sob as luzes mais duras”.

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Não é a primeira vez que Budde fala sobre Trump. Já durante o primeiro mandato (2017-2021), tinha deixado avisos sobre o chefe de Estado.Com efeito, a 4 de junho de 2020, publicou um artigo de opinião sob o título “Bispa Budde: A visita de Trump à Igreja de St. John deixou-me indignada”, em que manifestava indignação por Trump ter aparecido em frente à igreja episcopal de St. John a segurar uma Bíblia para tirar uma fotografia, depois de os agentes federais terem usado a força para afastar a multidão de pacíficos manifestantes que se manifestavam contra a morte de George Floyd. Desse artigo se retiram as tiradas mais prementes.

Segundo escreveu a bispa, o presidente “usou símbolos sagrados, para se revestir do manto da autoridade espiritual, para defender posições antitéticas à Bíblia que tinha nas mãos”.

O artigo foi publicado em junho e, nesse mês, Mariann Budde, entrevistada pela ABC News, disse que desistira de falar” com Trump, vincando: “Precisamos de substituir o presidente Trump.”

Num momento crucial da vida ou da História, importa manter o foco no que mais importa, para que o momento não passe e não percamos uma oportunidade de transformação.

Gayle Fisher-Stewart, sacerdotisa episcopaliana afro-americana que se recusa a sofrer, de bom grado, os tolos supremacistas brancos, escreveu na altura: “Espero que a indignação sobre o abuso e a destruição contínuos de vidas negras seja tão grande como a indignação sobre o presidente a segurar a Bíblia na frente de uma igreja.” “A isso eu digo, amém. Vamos manter o nosso foco onde ele pertence”, escreveu Mariann Edgar Budde.

A bispa ficou indignada com o uso da Bíblia pelo presidente e do cenário da Igreja de St. John para os seus propósitos políticos. Ficou horrorizada, ao saber que, enquanto ameaçava usar força militar em toda a América, manifestantes pacíficos eram removidos, à força, do Parque Lafayette para ele posar diante da igreja para a fotografia. O telefone da prelada acendeu com mensagens de pessoas de todo o país que, tal como ela, não acreditavam no que estavam a ver. Porém, mantiveram-se focados na indignação, não se permitindo estar distraídos das questões que estão a compelir os Americanos a irem às ruas em grande número.

Mariann Edgar Budde assegurou aos que pudessem estar preocupados com a sua falta de hospitalidade ao presidente para rezar em St. John’s que teria adorado que ele abordasse, desde a igreja, a dor, a raiva e a frustração coletivas da nação. Teria ficado ao seu lado, se ele tivesse pedido rápida justiça pelo assassinato de George Floyd, se tivesse pedido calma e apelado à necessidade de parar com os saques oportunistas e com a destruição sem sentido.

Em vez disso, o presidente usou símbolos sagrados para se cobrir com o manto da autoridade espiritual, enquanto defendia posições antitéticas à Bíblia que tinha nas mãos. Foi por isso que a bispa traçou a linha vermelha, tal como o seu colega, o arcebispo Wilton Gregory, quando, no dia seguinte, o senhor e a senhora Trump fizeram uma visita não anunciada ao Santuário Nacional de São João Paulo II. Se o presidente tivesse aberto a Bíblia que segurava, poderia ter lido passagens que nos convocam a amar a Deus e ao próximo, a buscar a Deus diante de estranhos e até a amar os nossos inimigos. Poderia ter lido exortações a convocar-nos ao mais alto padrão de amor, que é a justiça. Poderia ter recitado textos que alertam líderes religiosos sobre o pecado da hipocrisia. As Escrituras são claras, ao preconizarem que Deus não se impressiona com orações desligadas de esforços sustentados para criar um Mundo mais amoroso.

“Que a justiça corra como águas”, diz Deus, através do profeta Amós, “e a retidão como um riacho que flui sem cessar”. A justiça, que é a expressão social do amor, é o que mais importa para Deus. A justiça é o mais importante para os que exercem o direito ao protesto pacífico, pois exprimem o que todos nós sabemos ser verdade: já passou da hora de “consertar” uma lei que permite que polícias e justiceiros fiquem impunes por crimes contra pessoas de cor, de corrigir as grandes disparidades na assistência médica que a covid-19 revelou e de mudar os sistemas económicos e educacionais que privilegiam os brancos.

Como todo a gente, as pessoas de fé não têm uma só opinião. A caixa de entrada de e-mail da prelada evidencia isso. Aparecemos em todos os lados de cada questão. Muitas vezes, preferimos não tomar partido, por medo de ofender, de sair da nossa linha ou de deixar de amar a todos, sem distinção. Porém, há momentos em que tomar um lado e uma posição é o necessário das pessoas de fé. E a bispa está com os envolvidos em protestos pacíficos, pedindo mudanças significativas e, especialmente, com os jovens americanos que legitimamente se interrogam se há esperança para o seu futuro. Pela graça e com coragem, acredita que nos podemos e devemos levantar para enfrentá-lo. O Deus a quem serve está do lado da justiça. Jesus chama os seus seguidores a imitar o seu exemplo de amor sacrificial e a construir o Reino de Deus na Terra. O bispo presidente Michael Curry desafiou à autointerrogação: “Como seria o amor sacrificial de Jesus agora?”

Isso dá para ver se podemos mover a agulha em coisas como a reforma policial, a assistência médica universal e as oportunidades para todos os jovens, não importando a cor da pele.

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Mariann Edgar Budde tem 65 anos e é a primeira mulher a liderar a Diocese Episcopal de Washington. Exerce o cargo desde 2011. O site da diocese dá-a como “defensora e organizadora no apoio a questões de justiça, incluindo a equidade racial, a prevenção da violência com armas de fogo, a reforma da imigração, a plena inclusão de pessoas LGBTQ+ e o cuidado da criação”.

Estudou História na Universidade de Rochester, é casada, tem dois filhos e escreveu três livros: “How We Learn to Be Brave: Decisive Moments in Life and Faith” [“Como aprendemos a ser corajosos: Momentos Decisivos na Vida e na Fé”), “Receiving Jesus: The Way of Love” [“Receber Jesus: O Caminho do Amor”] e “Gathering Up the Fragments: Preaching as Spiritual Practice” [Juntar os fragmentos: A Pregação como Prática Espiritual”].

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Quando a religião questiona os líderes políticos, mesmo que se afirmem religiosos e democratas, os leigos e clérigos comprometidos são ostracizados – criticados e ameaçados de deportação. Isto acontece nos EUA, a “Terra da Liberdade”!

2025.01.29 – Louro de Carvalho

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