Mariann Edgar Budde, a bispa episcopaliana de Washington DC, nos
Estados Unidos da América (EUA) foi instada, de vários lados, a explicar o que
dissera ante o presidente, o vice-presidente e as respetivas famílias, que
ocupavam os bancos da frente, face a face com o púlpito de onde proferiu a sua
alocução, na celebração litúrgica, na catedral, a 21 de janeiro, dia subsequente
à posse do presidente norte-americano e do respetivo vice-presidente, no dia
anterior.
A súmula das suas declarações transparece no que disse a uma
jornalista da CNN, ao frisar que não
estava a falar de temas ou problemas abstratos, mas de pessoas concretas, que
ela conhece e em nome das quais tomou a palavra.
No final da celebração, Mariann Edgar Budde, paramentada e de
báculo na mão, e Donald Trump cumprimentaram-se, rapidamente. Porém à saída do
templo, ante alguns jornalistas que o interpelaram sobre se tinha gostado, o
presidente devolveu a pergunta e comentou: “Não acho que tenha sido um bom
serviço. Poderiam ter feito muito melhor”. É uma resposta que a hierarca
considerou “respeitosa”. Porém, mal Donald Trump se pôde dedicar a uma das suas
atividades regulares – escrever posts na sua
rede social –, classificou-a de “assim chamada bispa” e de “uma esquerdista
radical que odeia Trump” e que “adotou um tom desagradável”, não “convincente
nem inteligente”. Mais disse que os seus comentários foram “inapropriados
e aborrecidos e muito pouco inspiradores”, pelo que “ela e a sua Igreja devem
desculpas ao público”.
Entretanto, a visada respondeu: “Desculpas, não. […] Entendo
que estou a implorar misericórdia para outros; por isso, não tenho de pedir
desculpas.” Explicando um pouco mais, acrescentou, num canal televisivo a
que prestou declarações, a respeito dos efeitos de algumas promessas do
presidente: “Eu tinha a sensação de que havia pessoas que observam o que estava
a acontecer [com as ordens executivas] e a perguntar-se: ‘será que alguém vai
dizer alguma coisa?’” E sentiu que a perspetiva cristã crítica do poder que se
estava a instalar não tinha tido voz no conjunto das cerimónias inaugurais dos
dias anteriores. Ao assumir ser essa voz, a bispa foi a voz incómoda deste
momento – inconveniente para uns e corajosa para outros.
Um eloquente sinal do modo como a intervenção de Mariann
Budde foi recebida entre os apoiantes de Trump vê-se na reação de um deputado
eleito pela Geórgia para a Câmara dos Representantes, ao sugerir a inclusão da
bispa na “lista das deportações” referente aos imigrantes. As redes sociais, a
par dos apoios e dos aplausos, encheram-se de ataques, de insultos e de ameaças,
levando à criação de contas destinadas a defender a bispa de Washington.
***
Mike
Collins, congressista da
Geórgia pediu a deportação da bispa que
pediu a Donald Trump que “tivesse misericórdia” da comunidade LGBTQ+
e dos imigrantes.
Compartilhando
um trecho do sermão sobre X, Mike Collins pediu que Mariann Budde fosse “adicionada à lista de deportação”, um
dia após Trump começar a assinar uma caterva de ordens
executivas relacionadas com a imigração. “A pessoa que está a dar esse
sermão deve ser adicionada à lista de deportação”, escreveu o congressista
republicano, no dia 21. Todavia, como Budde nasceu em Nova Jersey, em 1959, e é
cidadã americana, não pode ser deportada. Não está claro como Collins planeia a
deportação da bispa, nem para onde deve ser deportada. O Independent contatou
o seu gabinete de imprensa para esclarecimentos, sem êxito.
A bispa, de
fala mansa, proferiu o seu alerta: “Em nome do nosso Deus, peço que tenham
misericórdia das pessoas que, no nosso país, estão assustadas, agora. […] Há
crianças gays, lésbicas e transgénero em famílias democratas, republicanas e
independentes, algumas que temem pelas suas vidas.” E, prosseguindo, frisou: “A
vasta maioria dos imigrantes não é criminosa. Peço que tenha misericórdia,
senhor Presidente, daqueles cujos filhos, nas nossas comunidades, temem que os pais
sejam levados embora, e que ajude os que estão a fugir de zonas de guerra e de
perseguição nas suas próprias terras a encontrarem compaixão e boas-vindas
aqui.”
A terminar o
sermão, Donald Trump disse algo a James David Vance que o fez balançar a cabeça.
Com efeito,
os clãs Trump e Vance sentaram-se impassíveis nas primeiras filas da nave,
enquanto a bispa criticava e pedia misericórdia.
À saída da
catedral, os repórteres perguntaram ao presidente o que achou do serviço. “Não
foi muito emocionante. Não achei que foi um bom serviço. Não, eles podem fazer
muito melhor”, retorquiu. Depois, na noite do dia 21, em tom inflamado, no TruthSocial, Donald Trump escreveu que
Budde deve um pedido de desculpas “ao público”. “A suposta bispa que falou no
Serviço Nacional de Oração, na terça-feira, de manhã, era uma radical
esquerdista de linha dura que odiava Trump”, escreveu o presidente, vincando:
“Tinha um tom desagradável e não era convincente ou inteligente... Ela e a sua
igreja devem um pedido de desculpas ao público!”
O
vice-presidente J. D. Vance, a 22 de janeiro, ainda não tinha comentado o
sermão de Budde.
O ataque de
Trump ocorreu após duras críticas à bispa, por parte dos seus fiéis MAGA (“Make America Great Again”), no início do dia.
Tommy
Tuberville, senador do Alabama condenou o discurso, numa entrevista à Newsmax, no dia 21. “Para esta bispa
fazer isso com o presidente Trump, depois de um fim de semana de..., em vez de
falar sobre Deus mais do que nunca, falar sobre como ele foi poupado para dar
uma oportunidade de, talvez, [levar] este país de volta para algo que deveria
ser – simplesmente me espanta quão longe essas pessoas vão”, disse ao The
Todd Starnes Show, da On Newsmax.
Os
apresentadores da Fox News defenderam
o presidente e criticaram os comentários de Budde. “Fez o culto sobre as suas
próprias crenças políticas perturbadas com uma oração vergonhosa cheia de
alarmismo e divisão”, acusou o antigo aliado de Trump e apresentador do
Hannity, Sean Hannity, enquanto
a âncora da Fox News, Laura Ingraham,
acrescentou: “Mas, em vez de um culto cristão sobre Deus e o país, eles foram
forçados a ouvir os discursos de um lunático.”
Budde, mais
tarde, abordou a controvérsia numa aparição na CNN, aduzindo que estava a lembrar-nos de que as pessoas estão assustadas
no país. “Os dois grupos de pessoas que mencionei são nossos semelhantes e
foram retratados em toda a campanha política, sob as luzes mais duras”.
***
Não é a
primeira vez que Budde fala sobre Trump. Já durante o primeiro mandato (2017-2021), tinha deixado avisos sobre o
chefe de Estado.Com efeito, a 4 de junho de 2020, publicou um artigo
de opinião sob o título “Bispa
Budde: A visita de Trump à Igreja de St. John deixou-me indignada”, em que manifestava
indignação por Trump ter aparecido em frente à igreja episcopal de St. John a
segurar uma Bíblia para tirar uma fotografia, depois de os agentes federais terem
usado a força para afastar a multidão de pacíficos manifestantes que se
manifestavam contra a morte de George Floyd. Desse artigo se retiram as tiradas
mais prementes.
Segundo escreveu a bispa, o
presidente “usou símbolos sagrados, para se revestir do manto da autoridade
espiritual, para defender posições antitéticas à Bíblia que tinha nas mãos”.
O artigo foi publicado em junho e,
nesse mês, Mariann Budde, entrevistada pela ABC
News, disse que desistira de falar” com Trump, vincando: “Precisamos de
substituir o presidente Trump.”
Num momento crucial da vida ou da
História, importa manter o foco no que mais importa, para que o momento não
passe e não percamos uma oportunidade de transformação.
Gayle Fisher-Stewart, sacerdotisa
episcopaliana afro-americana que se recusa a sofrer, de bom grado, os tolos
supremacistas brancos, escreveu na altura: “Espero que a indignação sobre o
abuso e a destruição contínuos de vidas negras seja tão grande como a
indignação sobre o presidente a segurar a Bíblia na frente de uma igreja.” “A
isso eu digo, amém. Vamos manter o nosso foco onde ele pertence”, escreveu Mariann Edgar Budde.
A bispa ficou indignada com o uso da
Bíblia pelo presidente e do cenário da Igreja de St. John para os seus
propósitos políticos. Ficou horrorizada, ao saber que, enquanto ameaçava usar
força militar em toda a América, manifestantes pacíficos eram removidos, à
força, do Parque Lafayette para ele posar diante da igreja para a fotografia. O
telefone da prelada acendeu com mensagens de pessoas de todo o país que, tal
como ela, não acreditavam no que estavam a ver. Porém, mantiveram-se focados na
indignação, não se permitindo estar distraídos das questões que estão a
compelir os Americanos a irem às ruas em grande número.
Mariann Edgar Budde
assegurou aos que pudessem estar preocupados com a sua falta de hospitalidade ao
presidente para rezar em St. John’s que teria adorado que ele abordasse, desde a
igreja, a dor, a raiva e a frustração coletivas da nação. Teria ficado ao seu
lado, se ele tivesse pedido rápida justiça pelo assassinato de George Floyd, se
tivesse pedido calma e apelado à necessidade de parar com os saques
oportunistas e com a destruição sem sentido.
Em vez disso, o presidente usou
símbolos sagrados para se cobrir com o manto da autoridade espiritual, enquanto
defendia posições antitéticas à Bíblia que tinha nas mãos. Foi por isso que a bispa
traçou a linha vermelha, tal como o seu colega, o arcebispo Wilton Gregory,
quando, no dia seguinte, o senhor e a senhora Trump fizeram uma visita não anunciada
ao Santuário Nacional de São João Paulo II. Se o presidente tivesse aberto a
Bíblia que segurava, poderia ter lido passagens que nos convocam a amar a Deus
e ao próximo, a buscar a Deus diante de estranhos e até a amar os nossos
inimigos. Poderia ter lido exortações a convocar-nos ao mais alto padrão de
amor, que é a justiça. Poderia ter recitado textos que alertam líderes
religiosos sobre o pecado da hipocrisia. As Escrituras são claras, ao
preconizarem que Deus não se impressiona com orações desligadas de esforços
sustentados para criar um Mundo mais amoroso.
“Que a justiça corra como águas”, diz
Deus, através do profeta Amós, “e a retidão como um riacho que flui sem
cessar”. A justiça, que é a expressão social do amor, é o que mais importa para
Deus. A justiça é o mais importante para os que exercem o direito ao protesto
pacífico, pois exprimem o que todos nós sabemos ser verdade: já passou da hora
de “consertar” uma lei que permite que polícias e justiceiros fiquem impunes
por crimes contra pessoas de cor, de corrigir as grandes disparidades na
assistência médica que a covid-19 revelou e de mudar os sistemas económicos e
educacionais que privilegiam os brancos.
Como todo a gente, as pessoas de fé
não têm uma só opinião. A caixa de entrada de e-mail da prelada evidencia isso. Aparecemos em todos os lados de
cada questão. Muitas vezes, preferimos não tomar partido, por medo de ofender,
de sair da nossa linha ou de deixar de amar a todos, sem distinção. Porém, há
momentos em que tomar um lado e uma posição é o necessário das pessoas de fé. E
a bispa está com os envolvidos em protestos pacíficos, pedindo mudanças
significativas e, especialmente, com os jovens americanos que legitimamente se
interrogam se há esperança para o seu futuro. Pela graça e com coragem,
acredita que nos podemos e devemos levantar para enfrentá-lo. O Deus a quem serve
está do lado da justiça. Jesus chama os seus seguidores a imitar o seu exemplo
de amor sacrificial e a construir o Reino de Deus na Terra. O bispo presidente
Michael Curry desafiou à autointerrogação: “Como seria o amor sacrificial de
Jesus agora?”
Isso dá para ver se podemos mover a
agulha em coisas como a reforma policial, a assistência médica universal e as oportunidades
para todos os jovens, não importando a cor da pele.
***
Mariann Edgar Budde tem 65 anos e é a
primeira mulher a liderar a Diocese Episcopal de Washington. Exerce o cargo desde
2011. O site da diocese dá-a como “defensora
e organizadora no apoio a questões de justiça, incluindo a equidade racial, a
prevenção da violência com armas de fogo, a reforma da imigração, a plena
inclusão de pessoas LGBTQ+ e o cuidado da criação”.
Estudou História na Universidade de
Rochester, é casada, tem dois filhos e escreveu três livros: “How We Learn to
Be Brave: Decisive Moments in Life and Faith” [“Como aprendemos a ser
corajosos: Momentos Decisivos na Vida e na Fé”), “Receiving Jesus: The Way of
Love” [“Receber Jesus: O Caminho do Amor”] e “Gathering Up the Fragments: Preaching
as Spiritual Practice” [Juntar os fragmentos: A Pregação como Prática Espiritual”].
***
Quando a religião questiona os líderes
políticos, mesmo que se afirmem religiosos e democratas, os leigos e clérigos comprometidos
são ostracizados – criticados e ameaçados de deportação. Isto acontece nos EUA,
a “Terra da Liberdade”!
2025.01.29 – Louro de Carvalho
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