domingo, 26 de janeiro de 2025

A Palavra de Deus é o centro da construção e da articulação da Igreja

 

No 3.º domingo do Tempo Comum no Ano C – Domingo da Palavra de Deus e (porque o dia 26 de janeiro ocorre ao domingo, neste ano) também o 72.º Dia Mundial dos Doentes de Lepra – a liturgia convida-nos a refletir sobre a Palavra de Deus, que não é uma doutrina abstrata, para deleite dos eruditos, mas que o anúncio libertador que Deus dirige a todos os homens e que incarna em Jesus e nos cristãos. E, por conseguinte, é o centro em torno do qual se constrói e articula a comunidade dos filhos de Deus, a Igreja.

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Na primeira leitura (Ne 8,2-4a.5-6.8-10), vemos a “assembleia de Deus”, reunida à volta da Palavra, a escutar as indicações de Deus, a deixar-se questionar por elas, e a sentir o apelo à conversão. Depois, entra em festa, pois o encontro com a Palavra é fonte de alegria e de esperança.

Os 13 capítulos do Livro de Neemias e os 10 capítulos do livro de Esdras formavam uma unidade sob o título geral Esdras. Estes livros, que nos situam em Jerusalém, na época pós-exílica, referem-se a acontecimentos que vão desde o édito de Ciro, em 538 a.C. (que autorizou o regresso a Jerusalém dos exilados judeus na Babilónia), até inícios do séc. IV a.C. (por volta de 400 a.C.). Os seus grandes temas são o regresso dos exilados, a reconstrução de Jerusalém e do Templo, a restauração da nação judaica, após o drama do exílio.

Para os Judeus que retornaram a Jerusalém, a época é de miséria e desolação: Jerusalém está sem muralhas e sem portas; a penúria de meios torna a reconstrução da cidade lenta e penosa; os inimigos de Judá espreitam e conspiram, tentando impedir o ressurgimento da nação.

Esdras, sacerdote e escriba, cuja missão principal consistia em reorganizar a comunidade em volta do Templo e da Lei de Deus, liderou um grupo de exilados (sacerdotes, levitas, porteiros, cantores) que, por volta de 457 a.C., retornaram a Jerusalém. E Neemias era um alto funcionário judeu na corte de Susa, que veio, autorizado pelo rei persa Artaxerxes, para Jerusalém, por volta do ano 445 a.C., a fim de reconstruir as muralhas da cidade. Agregado a este objetivo, vinham os de pôr cobro às injustiças cometidas pelos ricos para com os mais pobres e de restaurar o culto.

É neste contexto se situar o trecho em apreço.

Quase cem anos após o regresso dos primeiros retornados do Exílio na Babilónia, a vida em Jerusalém continua desordenada e precária. É a estrutura social que precisa de ser refeita, a fé do Povo que precisa de ser revitalizada, pois a Lei de Deus está esquecida, o culto está desorganizado, os compromissos de Judá tem com Deus são letra morta. Enfim, Judá precisa de voltar à órbita da “aliança” e de reorganizar a existência à volta de Deus.

Nesse sentido, os líderes do povo – Neemias e Esdras – convocam a comunidade para escutar, em leitura pública na “praça que fica diante da Porta das Águas”, o “livro da Lei de Moisés”. Alguns veem no livro em referência o “livro da Lei” encontrado no Templo na época do rei Josias, que corresponde ao Livro do Deuteronómio; contudo, outros sustentam que é uma versão abreviada do Pentateuco. Em todo o caso, é montado o cenário para uma solene “festa da Palavra” que ajude o Povo a retomar o contacto com a Palavra de Deus e a recordar os compromissos que assumiu com o seu Deus, mas que esquecera.

Portanto, a comunidade (todos os seus membros: homens, mulheres e crianças em idade “de compreender”) reúne-se para escutar a leitura da Palavra de Deus, escuta que se prolonga “desde a aurora até ao meio dia”. De facto, o Povo de Deus é uma comunidade que se reúne à volta da Palavra e que vive da escuta da Palavra de Deus, que a todos questiona, interpela, orienta.

A proclamação da Palavra faz-se “num estrado de madeira feito de propósito”. O leitor está num “plano superior a todo o povo”, para que todos sintam a autoridade da Palavra proclamada e a possam escutar sem obstáculos. O livro é aberto com toda a solenidade pelo sacerdote Esdras e o Povo levanta-se para escutar a Palavra. Depois de o sacerdote bendizer o Senhor, o Povo aclama: “Amen, Amen”, manifestando a adesão à bendição. Depois, todos se inclinam com a face por terra e adoram o Senhor, presente no meio da comunidade pela sua Palavra. Os levitas leem a Palavra, clara e distintamente, e explicam o seu sentido, de modo que todos possam compreender a leitura. Neste cenário, emerge a centralidade da Palavra na vida da comunidade e a reverência que a comunidade sente diante dela.

Finalmente, surge a reação da comunidade à Palavra proclamada: “todo o povo chorava, ao escutar as palavras da Lei”. A escuta da Palavra leva a questionar o estilo de vida, as ações, as opções; e, ao constatar como a vida está distante das exigências de Deus, o Povo, mostra o desconforto da sua tristeza com o choro, que é fruto do arrependimento que leva à conversão. A Palavra é eficaz e leva à transformação da vida. E tudo termina numa grande festa: o dia “consagrado ao Senhor” é dia de alegria para a comunidade que se alimenta da Palavra.

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No Evangelho (Lc 1,1-4; 4,14-21), na sinagoga de Nazaré, Jesus proclama a Palavra de Deus e atualiza-a. Ele, que é a Palavra feita carne, apresenta o programa que se propõe concretizar no Mundo: libertar os seres humanos de tudo o que os priva de vida e lhes rouba a dignidade.

Este dia chama-nos à atenção para os doentes da lepra (doença que tem cura, mas que requer tratamento), tantas vezes estigmatizados e sem reconhecimento da sua dignidade humana.

Com Jesus começa o tempo novo, o jubileu de alegria, de graça, de paz e de felicidade infindas.

No prólogo, o evangelista apresenta a finalidade do seu escrito: fazer a narração “dos factos que se realizaram entre nós” e que se referem a Jesus (vida, propostas, projeto, destino), como o transmitiram as “testemunhas oculares”, os que viram e escutaram Jesus e se fizeram “servidores da Palavra”. Para tanto, Lucas “tudo investigou, cuidadosamente, desde as origens”, para ajudar todos os que se interessam por Jesus a terem “conhecimento seguro” das coisas que lhes foram ensinadas. Numa altura (anos 80 do século I) em que as “testemunhas oculares” de Jesus já praticamente tinham desaparecido e em que já surgiam heresias e desvios doutrinais que punham em causa a identidade cristã, era preciso recordar aos crentes as suas raízes e a solidez da doutrina recebida da tradição apostólica. E a obra lucana garante a autenticidade da fé que nos foi transmitida e que não se esgota no tempo, pois destina-se aos discípulos de qualquer época.

A segunda parte do trecho em referência leva-nos ao início da vida pública de Jesus. Jesus passara um tempo com João Batista no deserto de Judá; mas, cônscio do desígnio do Pai, regressou à Galileia. E, num sumário, Lucas descreve os passos iniciais da profecia de Jesus na Galileia: impelido pelo Espírito, pregava nas sinagogas, suscitava a admiração dos que O escutavam.

Para sabermos o que Jesus pretendia, de que proposta era portador e a quem se dirigia, Lucas leva-nos à sinagoga de Nazaré onde, numa manhã de sábado, Jesus participa no ofício sinagogal com os conterrâneos. Provavelmente, a convite do chefe da sinagoga, “levantou-se para fazer a leitura”. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e Jesus leu a passagem de Is 61,1-2.

Para os contemporâneos de Jesus, as primeiras palavras do oráculo de Isaías lidas por Jesus aludiam a um profeta, ungido e impulsionado pelo Espírito de Deus, que viria iniciar uma era de prosperidade, de justiça, de paz e de vida em abundância. Para tanto, a sua missão seria “anunciar a boa nova aos pobres”, “proclamar a redenção aos cativos”, dar “vista aos cegos”, “restituir a liberdade aos oprimidos”, “proclamar o ano da graça do Senhor”. No comentário subsequente, Jesus associa a Si este profeta e relaciona a missão deste profeta com a sua: “Cumpriu-se, hoje mesmo, esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4,21).

O programa de Jesus tem vários pontos. Desde logo, o anúncio de uma boa notícia aos pobres (“ptôkhoí”: os desprovidos de bens materiais e das seguranças humanas), que vivem pobremente, com humildade e simplicidade, muitas vezes, magoados e explorados pelos ricos e poderosos, mas que esperam, ansiosamente, a libertação que só Deus lhes pode oferecer. Têm o coração disponível para acolher o dom de Deus e são, pela carência e debilidade, os preferidos de Deus, são os primeiros destinatários da boa notícia que Jesus traz ao Mundo.

Ao mesmo tempo, o programa de Jesus implica levar a redenção aos cativos, iluminar os que vivem nas trevas, libertar todos os que estão presos a qualquer tipo de cadeias ou de servidões: os doentes, os que a sociedade e a religião marginalizam e condenam, os que não têm vez nem voz, os que desprezados e explorados pelos poderosos, os que são vítimas das injustiças, os que a maldade empequenece e desumaniza, os que vivem na noite sem esperança.

Jesus, com a sua ação, com a sua atividade salvadora e curadora, inaugurará um ano jubilar, o tempo novo de salvação, de recomeço, de perdão de todas as dívidas e de todos os pecados, de libertação de tudo o que rouba ao homem a vida e a felicidade.

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O Papa Francisco considerou a segunda parte deste Evangelho “o cumprimento de uma profecia transbordante de Espírito Santo”, a cargo do que vem “com a força do Espírito”: Jesus, o Salvador.

Depois, proclamou que “a Palavra de Deus é viva: através dos séculos caminha connosco e, com a força do Espírito Santo, age na História, mostrando que “o Senhor é sempre fiel à sua promessa, que realiza por amor aos homens”. É “isto que Jesus diz na sinagoga de Nazaré”.

Considera o Pontífice “feliz coincidência” a leitura desta perícopa no Domingo da Palavra de Deus e ainda no início do Jubileu, com Jesus a revelar-Se como o Messias (“ungido”) e enviado “a proclamar um ano favorável da parte do Senhor”. Com efeito, “Jesus é a Palavra viva, em quem a Escritura encontra o pleno cumprimento. E também nós, no hoje da Sagrada Liturgia, tornamo-nos seus contemporâneos e, cheios de admiração, abrimos o coração e a mente para O escutar, porque “é Ele que fala, ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura”.

Quando ouvimos as palavras de Deus, não se trata apenas de as ouvir, de as compreender. É preciso que cheguem ao coração e produzam “admiração”. “A Palavra de Deus surpreende-nos sempre, renova-nos sempre, entra no nosso coração e renova-nos sempre”, Diz o Papa.

Após estes considerandos, em consonância com a atitude de jubilosa fé e com o convite a acolher a profecia agora saída do Coração de Cristo, Francisco detém-se nas cinco ações caraterizadoras da missão do Messias: missão única (“só Ele a pode realizar”) e universal (“quer envolver todos”).

Primeiro. Ele é enviado “para anunciar a Boa-Nova aos pobres”. Ou seja, Jesus proclama: “O Reino de Deus está próximo!” E, quando Deus reina, o homem está salvo. O Senhor visita o seu povo, cuidando dos humildes e dos infelizes. Por isso, o Evangelho é palavra de compaixão, a chamar à caridade, ao perdão ao próximo, ao compromisso social. A proximidade, a misericórdia e a compaixão são o estilo de Deus, pois Ele é “misericordioso, próximo, compassivo”.

Segundo. Cristo vem “proclamar a libertação aos cativos”. Assim, “o mal tem os dias contados”. Com a força do Espírito, Jesus redime-nos de toda a culpa e liberta-nos o coração todas as amarras interiores, trazendo ao Mundo o perdão do Pai. Assim, o Evangelho é palavra de misericórdia, que nos chama a ser testemunhas apaixonadas de paz, de solidariedade, de reconciliação.

Terceiro. Jesus cumpre as profecias, dando “aos cegos, a recuperação da vista”. Abre-nos os olhos do coração, ofuscados pelo fascínio do poder e da vaidade: “doenças da alma, que impedem de reconhecer a presença de Deus e tornam invisíveis os fracos e os sofredores”. O Evangelho é palavra de luz, que chama à verdade, ao testemunho da fé e à coerência de vida.

Quarto. Jesus vem “mandar em liberdade os oprimidos”. Nenhuma escravatura resiste à ação do Messias, que nos faz irmãos. Pelo amoroso poder de Deus, são escancaradas as prisões da perseguição e da morte. Assim, o Evangelho é palavra de liberdade, que nos chama à conversão do coração, à honestidade de pensamento e à perseverança na provação.  

E quinto. Jesus é enviado a proclamar um ano favorável da parte do Senhor”. É o tempo novo, que não consome a vida, mas a regenera; um Jubileu que prepara, com esperança, para o encontro definitivo com o Redentor. O Evangelho é palavra de alegria, que nos chama ao acolhimento, à comunhão e a caminhar, como peregrinos, para o Reino de Deus.

Ao fazer a nossa libertação, Jesus anuncia que Deus Se aproxima da nossa pobreza, nos redime do mal, nos ilumina os olhos, quebra o jugo das opressões e nos faz entrar no júbilo de um tempo e de uma História em que Ele Se faz presente, para caminhar connosco e nos levar à vida eterna. A salvação ainda não se realizou plenamente. Porém, as guerras, as injustiças, a dor, a morte não terão a última palavra, pois “o Evangelho é palavra viva e certa, que nunca desilude”.

No domingo dedicado, de modo especial, à Palavra de Deus, Francisco exorta a que agradeçamos ao Pai por nos ter dirigido o seu Verbo, feito homem para a salvação do Mundo. É o acontecimento de que falam as Escrituras, que têm os homens e o Espírito Santo como verdadeiros autores. Toda a Bíblia faz memória de Cristo e da sua obra, e o Espírito atualiza-a na vida e na História. Quando lemos, rezamos e estudamos as Escrituras, não acolhemos só informações sobre Deus, mas também o Espírito que nos recorda tudo o que Jesus disse e fez. Assim, o nosso coração, inflamado pela fé, aguarda, na esperança, a vinda de Deus, pelo que “temos de nos habituar mais à leitura das Escrituras” e de responder, com ardor, ao alegre anúncio de Cristo. De facto, Ele não falou a ouvintes mudos, mas a testemunhas, chamando-nos a evangelizar em todo o tempos e lugar.

Por fim, o apelo: “Comprometamo-nos todos a levar a Boa-Nova aos pobres, a proclamar a libertação aos cativos e a vista aos cegos, a mandar em liberdade os oprimidos e a proclamar o ano favorável da parte do Senhor. Então […] transformaremos o Mundo segundo a vontade de Deus, que o criou e redimiu por amor.  

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segunda leitura (1Cor 12,12-30) mostra a comunidade gerada e alimentada pela Palavra libertadora de Deus: um corpo, o “corpo de Cristo”, formado por muitos membros, trabalhando cada um em prol do projeto comum e pondo ao serviço de todos os dons que Deus lhe confiou.

O corpo é formado pele pluralidade de membros. Todos e, cada um de forma peculiar, fazem parte do corpo. Os membros não são independentes, não vivem para si próprios, à margem do conjunto ou em confronto com o resto do corpo. São diferentes e têm funções diversas; mas essa diferença e diversidade está ao serviço de todo o corpo, do bem comum. Cada membro, desempenhando a função que lhe compete, trabalha em benefício do todo. Os membros não podem estar divididos, preocupando-se cada um com os seus interesses. Não há membros superiores e inferiores, indecorosos e dignos. Todos contam, cada um tem papel determinante. A sobrevivência do corpo depende da harmonia e do bom funcionamento de todos os membros do corpo, que precisam uns dos outros, pelo que devem preocupar-se uns com os outros e ter apreço pelos outros. A unidade vai de mão dada com o pluralismo e com a preocupação pelo bem comum.

Paulo aplica isto à comunidade cristã, o corpo de Cristo (“vós sois o corpo de Cristo e seus membros, cada um por sua parte”), formado por muitos membros. Todos diferentes e com diferentes funções. A diversidade de funções está ao serviço da construção e da harmonia comunitárias. Batizados no mesmo e único Espírito, todos – independentemente das origens, da situação social ou do papel que desempenham – integram o mesmo corpo, iguais em dignidade. Neste corpo, que é a comunidade cristã, tem de manifestar-se o Cristo total. Ora, não pode Cristo estar dividido; não pode o seu corpo identificar-se com conflitos e rivalidades; não pode o corpo de Cristo dar ao Mundo um testemunho de egoísmo, de autossuficiência, de individualismo, de orgulho, de desprezo pelos pobres e débeis; não pode considerar-se que uma parte deste corpo tem dignidade superior a outra parte.

O corpo de Cristo (a Igreja) é a comunidade de irmãos e de irmãs que de Cristo recebem a vida que os une e a partilham. Sendo uma pluralidade de membros, com diversas funções, respeitam-se, apoiam-se, são solidários e amam-se. “Solidariedade”, “participação”, “corresponsabilidade”, são palavras que definem a teia de relações que une os membros do corpo de Cristo e o papel e o compromisso de cada membro do corpo na construção comunitária.

Definida a igualdade em dignidade de todos os membros do corpo, Paulo define uma hierarquia dos carismas. Os carismas apresentados em primeiro lugar são os atinentes à Palavra, ao anúncio da Boa Nova (apóstolos, profetas, doutores), pois o “corpo de Cristo” é a comunidade que nasce e se alimenta da Palavra: tudo o mais passa a segundo plano, diante da Palavra criadora e vivificadora que Deus dirige à comunidade. A Palavra constrói e articula a Igreja e explicita o sentido dos sacramentos, de que faz parte integrante. O fundamental é que a comunidade cresça, de forma fraterna, harmoniosa, fiel a Deus e ao seu desígnio.

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“O Senhor enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres, a proclamar aos cativos a redenção”.

2025.01.26 – Louro de Carvalho

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