quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Pressão sobre a imigração não é exclusiva de Donald Trump

 

Donald Trump tomou posse, a 20 de janeiro, e não se fez esperar para assinar várias ordens executivas, cerca de 100, impondo algumas das principais bandeiras da campanha. Destas ordens, 78 são revogações de ordens executivas de Joe Biden.

Desde que apresentou a candidatura à Casa Branca, em 2015, a imigração foi tema predileto do candidato e, a seguir, presidente dos Estados Unidos da América (EUA), bem como da ala mais radical do Partido Republicano. Por isso, sem surpresa, algumas das principais ordens executivas assinadas no dia da tomada de posse são centradas neste tema.

O presidente declarou um estado de emergência na fronteira com o México, exigindo que “todas as entradas ilegais sejam impedidas e [que] arranque o processo de deportar milhões e milhões de criminosos”. Isto permite que o exército intervenha na fronteira para reforçar o controlo, mas não se sabe como será a logística e os métodos usados para identificar e expulsar imigrantes do país e que imigrantes. Outra medida polémica, articulada com aquela, aponta o fim do direito à cidadania de qualquer criança que nasça em território norte-americano, ainda que tenha pais imigrantes em situação ilegal. Esta alteração, que entrará em vigor daqui a 30 dias, enfrenta um obstáculo: este direito está consagrado na XIV Emenda da Constituição, o que dá armas a quem pretenda combater judicialmente esta ordem.

A nível ambiental, apoiado por trabalhadores das indústrias mais poluentes, financiado por grandes fundos dos combustíveis fósseis e acolhido por negacionistas das alterações climáticas, Trump sempre foi contra a transição energética e medidas de proteção do Ambiente. Tal agenda continuará, com um conjunto de decisões já tomadas. Uma delas aponta o fim da ordem de Biden que apontava que seriam elétricos, em 2030, pelo menos, metade dos veículos vendidos. Outra ordem (promessa antiga) remove os EUA do Acordo de Paris – o que já acontecera no primeiro mandato de Trump, mas revertido por Biden.

No quadro das relações externas, é expectável que, tal como no primeiro mandato, a relação com o resto do Mundo mude, com o lema “América Primeiro”. Uma ordem executiva declara que os EUA abandonarão a Organização Mundial de Saúde (OMS), nos próximos 12 meses, devido à gestão da covid-19. Trump esteve em conflito com as restrições defendidas pelos especialistas e impulsionou movimentos negacionistas que recusavam proteger-se contra a doença. Ora os EUA são o principal financiador da OMS e a saída, a confirmar-se, será duro golpe para as contas da organização. E Trump ordenou que o Golfo do México seja renomeado Golfo da América, decisão que pode alterar a nomenclatura em documentos oficiais norte-americanos.

O presidente assinou a ordem que suspende por 75 dias a proibição da rede social TikTok e anunciou, no primeiro dia de mandato, que vai perdoar a 1500 pessoas envolvidas no ataque ao Capitólio, de 6 de janeiro de 2021. Falou mesmo em “reféns”, para designar os condenados por uma das páginas mais negras da História norte-americana.

Por fim, decretou que só devem existir dois géneros – homem e mulher – na que será a primeira das medidas contra a comunidade transgénero, contra as respetivas medidas de saúde e contra afirmação de género, que pode afetar várias crianças.

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Já falei da crítica da bispa de Washington às medidas de Trump, atinentes a imigração e a questões de género. Agora, dou a vez aos bispos católicos dos EUA, que se manifestaram, a 22 de janeiro, contra as “profundamente preocupantes” ordens do presidente, nomeadamente as relativas à imigração, à pena de morte e ao Ambiente, alertando que “terão consequências negativas, muitas das quais prejudicarão os mais vulneráveis entre nós”.

Em comunicado da Conferência Episcopal dos EUA (USCCB), assinado pelo seu presidente, Timothy Broglio, são criticadas as restrições à imigração, a diretiva a favor da pena de morte, e a retirada do Acordo de Paris, como “profundamente preocupantes”. “É nossa esperança que a liderança do país reconsidere essas ações que desconsideram, não apenas a dignidade humana de alguns, mas a de todos nós”, pode ler-se.

Vincando que nem a Igreja Católica nem a USCCB alinham com nenhum partido político, vinca-se que o ensino da Igreja permanece inalterado, independentemente da liderança política. “A nossa oração é de esperança de que, como Nação abençoada com muitos dons, as nossas ações demonstrem genuíno cuidado pelas nossas irmãs e irmãos mais vulneráveis, incluindo os não nascidos, os pobres, os idosos e enfermos e os migrantes e refugiados. O justo Juiz não espera nada menos”, reza o texto, prometendo que informações adicionais relativas a ordens executivas específicas serão publicadas no site da USCCB.

Timothy Broglio sustenta que muitas das questões das ordens executivas, juntamente com o que pode ser emitido nos próximos dias, são questões sobre as quais “a Igreja tem muito a oferecer”. Ora, algumas disposições, como as do tratamento de imigrantes e refugiados, da ajuda estrangeira, da expansão da pena de morte e do Ambiente terão consequências negativas, muitas das quais prejudicarão os mais vulneráveis​, ao passo que outras podem ser vistas a uma luz mais positiva, como expor a verdade sobre cada pessoa humana como homem ou mulher. Independentemente de quem ocupe a Casa Branca ou tenha a maioria no Capitólio, o ensino da Igreja permanece inalterado. E o bispo recorda: “O Papa declarou 2025 como um Ano Jubilar da Esperança. Como cristãos, a nossa esperança está sempre em Jesus Cristo, que nos guia através da tempestade e do tempo calmo. Ele é a fonte de toda a verdade.”

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No mesmo dia, era publicado novo comunicado, assinado pelo bispo Mark Seitz (presidente do Comité de Migração da USCCB), a afirmar que “a Igreja Católica está comprometida em defender a santidade de cada vida humana e a dignidade dada por Deus a cada pessoa, independentemente da nacionalidade ou status de imigração”. “O ensino da Igreja reconhece o direito e a responsabilidade de um país de promover a ordem pública, a segurança e a proteção por meio de fronteiras bem reguladas e de limites justos à imigração”, admite Mark Seitz, mas frisando: “No entanto, como pastores, não podemos tolerar a injustiça e enfatizamos que o interesse nacional não justifica políticas com consequências contrárias à lei moral. A generalização abrangente para denegrir qualquer grupo, como descrever todos os imigrantes indocumentados como ‘criminosos’ ou ‘invasores’, para os privar da proteção sob a lei, é afronta a Deus, que criou cada um de nós à sua própria imagem.”

Ao responsável pelo Comité de Migração não restam dúvidas: “Várias das ordens […] têm a intenção de eviscerar as proteções humanitárias consagradas na lei federal e de minar o devido processo, sujeitando famílias e crianças vulneráveis ​​a grave perigo”. E considera “especialmente preocupante” a “implantação ilimitada de ativos militares para dar suporte à aplicação da lei de imigração civil, ao longo da fronteira EUA-México.”

Na ótica do bispo de El Paso, impedir acesso a asilo e outras proteções porá em risco os mais vulneráveis ​​e merecedores de alívio, capacitando gangues e outros predadores a explorá-los. De igual modo, interromper, indefinidamente, o reassentamento de refugiados é imerecido, pois está provado ser um dos caminhos legais mais seguros para os EUA. E Mark Seitz assinala que a interpretação da XIV Emenda para limitar a cidadania por direito de nascença estabelece perigoso precedente, contradizendo a velha interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF).

O bispo recorda que “a Igreja Católica está comprometida em defender a santidade de cada vida humana e a dignidade dada por Deus a cada pessoa, independentemente da nacionalidade ou status. A generalização abrangente para denegrir qualquer grupo é afronta a Deus, que nos criou a todos à sua imagem. O Papa declarou: “Ninguém jamais negará abertamente que [os migrantes] são seres humanos, mas na prática, por nossas decisões e pelo modo como os tratamos, podemos mostrar que os consideramos menos dignos, menos importantes, menos humanos. Para os cristãos, tal modo de pensar e agir é inaceitável”, diz o prelado. 

Embora seja bem-vinda a ênfase no combate ao tráfico, várias ordens executivas intentam eviscerar as proteções humanitárias consagradas na lei federal e minar o devido processo, sujeitando pessoas vulneráveis ​​a grave perigo. A implantação ilimitada de ativos militares para dar suporte à aplicação da lei de imigração civil, ao longo da fronteira EUA-México, é muito preocupante. Enquanto isso, as políticas que proíbem a consideração de quaisquer reivindicações humanitárias, incluindo as de crianças desacompanhadas e vítimas de tráfico, falharam, repetidamente, em reduzir a migração irregular, de forma legal, sustentável e humana. Até a imigração legal não humanitária e pessoas naturalizadas são alvos das políticas de apoio à alegada “identidade americana unificada”. “Pedimos ao presidente Trump que mude essas políticas de execução apenas para soluções justas e misericordiosas, trabalhando de boa-fé com os membros do Congresso, para alcançar uma reforma imigratória significativa e bipartidária que promova o bem comum com um sistema imigratório eficaz e ordenado. […] Apoiaremos isso de todo o modo que pudermos, enquanto continuamos a acompanhar os irmãos e irmãs imigrantes de acordo com o Evangelho da Vida”, conclui o texto.

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A Conferência Episcopal do México publicou o mapa com a localização de pontos de informação, assessoria legal e distribuição de alimentos a que os migrantes e deportados podem recorrer, em caso de necessidade no país, sendo possível identificar cerca de 40 pontos de apoio, dos quais nove estão junto à fronteira com os EUA. E, em declaração publicada nas redes sociais, os bispos lamentam que, num duro inverno, muitos migrantes vivam “momentos de angústia, dor, medo e incerteza”, ante as medidas anunciadas por Trump. “Continuaremos a esforçar-nos para que, nas nossas casas, albergues e centros de acolhimento, encontrem teto e alimento, apoio na atenção à saúde física, emocional e espiritual, ajuda para contactar as famílias e obterem a documentação de que necessitem, assessoria e acompanhamento legal para os trâmites que requeiram realizar”, dizem os bispos, apelando a toda a sociedade a que se una a este esforço, afirmando que os irmãos migrantes são reflexo de Deus (neles vemos o rosto sofrente de Cristo a pedir para ser acolhido, servido e consolado), e dizendo unir-se aos esforços da Pastoral da Mobilidade Humana para oferecer tratamento digno aos conacionais que estão a ser expulsos pelo governo federal dos EUA e convidar todas as dioceses e instituições sociais a serem solidárias nestes momentos.

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A imigração é móbil de conflito do governo dos EUA com a Igreja, desde o início do governo de Trump. O Papa criticou o governo dos EUA, um dia antes de ele começar. Com efeito, a 19 de janeiro, disse a um programa televisivo italiano: “Se ele quiser expulsar imigrantes sem documentos, será uma vergonha. Isso não vai dar certo.”

Em setembro de 2024, Francisco disse de Trump e da democrata Kamala Harris: “Ambos são contra a vida, tanto o que expulsa os migrantes como o que mata os bebés.” E sustentou que os católicos deviam votar no mal menor, ​​sem dizer quem era quem. As pesquisas mostram que a maioria dos católicos que votou escolheu Trump.

O debate sobre imigração acirrou-se desde que Trump o assumiu, há pouco tempo. Às críticas da USCCB responderam repreensões dos católicos “czar da fronteira”, Tom Homan e do vice-presidente, James David Vance. Os dois lados têm aliados e críticos católicos, sobretudo, no espaço online. Para católicos comuns sem muita ligação a partidos, o debate é desconcertante. Há, em ambos os lados, confusão ou leitura seletiva de argumentos e questões conflituantes: imigração em geral, imigração ilegal, direito de asilo, dignidade humana, lei, soberania nacional e direitos dos trabalhadores. O magistério da Igreja, desde a encíclica “Pacem in Terris”, de 1963, até à carta pastoral da USCCB de 2003 “Strangers No longer: Together on the Journey of Hope” são citados para reforçar um lado ou o outro. O que falta, a ambos os lados, é perceber que a migração é controversa, no Mundo, para católicos e para não-católicos.

Em 2024, os principais líderes políticos ocidentais – alguns deles católicos – posicionaram-se contra a imigração, no Canadá, no Reino Unido, na França e na Alemanha. Em todos esses países, os políticos criticavam Trump por isso. Agora, mudaram, porque a opinião popular mudou, tornando-se hostil. E houve menor reação das conferências episcopais desses países, em comparação com a dos EUA. A Conferência Episcopal Italiana criticou Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, mas brandamente, em comparação com a dos EUA.

No Hemisfério Ocidental, a migração é mais atenuada ou matizada, quando os EUA não fazem parte da discussão. O México repatriou milhares de estrangeiros, incluindo Colombianos e Cubanos, com pouca discussão. Dois países da América – Nicarágua e Cuba – usam, agressivamente, a expulsão forçada ou o exílio forçado dos próprios cidadãos como arma política. As críticas das conferências episcopais ou do Vaticano foram atenuadas, porque estes regimes perseguem a Igreja (Nicarágua) ou tentam controlá-la (Cuba).

E, assim como aceitar migrantes ou refugiados se tornou tópico político quente no Ocidente, a migração virou a arma na guerra híbrida e indireta de alguns países contra os vizinhos, exportando populações indesejadas e usando fluxos migratórios, para pressionar outros países para obterem benefícios financeiros ou políticos. Além de Cuba e Nicarágua, cita-se a Argélia, Marrocos, a Turquia e a Bielorrússia como praticantes descarados dessa tática. Lucrar com a extorsão de migrantes-refugiados não se cinge a gangues; inclui estados-nações.

Por exemplo, no Líbano, o ex-presidente Michel Aoun e o ministro das Relações Exteriores à época, Gebran Bassil, católicos maronitas, eram contra hospedar mais de 1,5 milhão de refugiados sírios, o maior número de refugiados per capita do Mundo. Embora houvesse críticas de liberais e de secularistas, tal postura não era pomo de discórdia entre Igreja e líderes políticos católicos, pois a Igreja tem preocupações: o Líbano seria inundado de estrangeiros e a população de refugiados sírios, maioritariamente muçulmana, não iria embora e complicaria a situação demográfica do país. Na África do Sul e noutros estados ricos no Sul Global, o desafio é a migração Sul-Sul. Os africanos tentam chegar à Europa ou aos EUA, mas também vão para o Sul e para o Leste, para entrarem nos ricos Estados do Golfo Árabe. Em 2023, a Arábia Saudita metralhou centenas de etíopes que tentavam entrar. E, na África do Sul, migrantes e refugiados entravam, mas eram vítimas de surtos xenófobos de violência dos moradores locais. Já a maioria dos requerentes de asilo ali (90%) é rejeitada ou é autorizada a ficar, se pagar gorjeta.

Leis e atitudes estão a endurecer na Europa no Mundo. É problema geral, com as permutações, cambiantes e crueldades possíveis e imagináveis. Só não se lhes dá atenção.

2025.01.30 – Louro de Carvalho

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