quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Donald Trump ataca, a sério, as questões de género

 

Na sequência da proclamação presidencial de que, nos Estados Unidos da América (EUA), só haverá dois géneros – homem e mulher (masculino e feminino) – o presidente Donald Trump já passou aos decretos em concreto. Assim, a 28 de janeiro, assinalou publicar o decreto que restringe drogas e cirurgias de “mudança de sexo” para menores. Os EUA “não vão financiar, patrocinar, promover, ajudar ou apoiar” esse tipo de procedimento, disse o presidente.

O decreto “Protegendo Crianças de Mutilação Química e Cirúrgica” considera que, em todo o país, “profissionais médicos estão a mutilar e a esterilizar um número cada vez maior de crianças impressionáveis”, sobre a “alegação falsa e radical de que adultos podem mudar o sexo de uma criança, através de uma série de intervenções médicas irreversíveis”. 

O decreto, preconizando que “essa tendência perigosa será uma mancha na História da nossa nação e que isso tem de acabar”, estabelece que, para oferecer bolsas de pesquisa ou de estudo a instituições médicas, todas as agências federais têm de se assegurar de que as instituições beneficiadas não fazem procedimentos de “mudança de sexo” em menores. Mais determina que o secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) “tome toda a ação apropriada” para “dar fim à mutilação química e cirúrgica de crianças”.

O decreto pretende acabar com o uso do que chama de “ciência-lixo” promovida pela Associação Profissional Mundial para Saúde Transgénero (WPATH). A organização foi criticada por apoiar o que os críticos chamam de “pseudociência” da “mudança de sexo”. Um inquérito interno, em 2024, revelou que membros da WPATH admitiram que as crianças são muito jovens para entenderem as consequências de tais procedimentos.

As agências federais “devem rescindir ou alterar todas as políticas” com base na orientação da WPATH, diz o decreto de Trump. Enquanto isso, o HHS vai fazer e publicar uma revisão das “melhores práticas, para promover a saúde de crianças que sentem a disforia de género”, distúrbio que seria o responsável por algumas pessoas se identificarem com o sexo oposto.

Em dezembro, o então presidente eleito prometeu assinar decretos para acabar com cirurgias de mudança de sexo em crianças, para impedir que homens que se identificam como mulheres pratiquem desportos femininos e para acabar com a promoção da ideologia de género nas escolas e nas forças armadas. E, na primeira semana do seu governo, assinou o decreto “Defendendo as mulheres do extremismo da ideologia de género”, que restaura a “verdade biológica”. Entre outras medidas abrangentes, estabeleceu um reconhecimento governamental da realidade do sexo natural, incluindo a afirmação explícita de que só há dois sexos, masculino e feminino.

Trump, que se concentrou na questão da ideologia de género em grande parte da sua campanha presidencial, em 2024, assinou, a 20 de janeiro, no primeiro dia do retorno à presidência dos EUA, a congruente ordem executiva. Este é um dos aspetos em que a Igreja Católica (assim como outras Igrejas cristãs) apoia, na linha dos princípios, a política trumpiana. Com efeito, a ideologia de género é a militância política baseada na teoria de que a sexualidade humana é independente do sexo e se manifesta em géneros mais variados do que homem e mulher, ao arrepio do enunciado bíblico: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher Ele os criou” (Gn 1,27).

O número 369 do Catecismo da Igreja Católica diz: “O homem e a mulher foram criados, quer dizer, foram queridos por Deus: em perfeita igualdade enquanto pessoas humanas, por um lado; mas, por outro, no seu respetivo ser de homem e de mulher. Ser homem, ser mulher é realidade boa e querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade inamissível, que lhes vem de Deus, seu Criador. O homem e a mulher são, com a mesma dignidade, ‘à imagem de Deus’. No seu ‘ser homem’ e no seu ‘ser mulher’, refletem a sabedoria e a bondade do Criador.”

Ora, “em todo o país, os ideólogos que negam a realidade biológica do sexo usam, cada vez mais, meios legais e outros meios socialmente coercitivos para permitir que homens se identifiquem como mulheres e acedam a espaços e a atividades íntimas de só um sexo projetados para mulheres, desde abrigos para mulheres até chuveiros femininos no local de trabalho. Isso está errado”, diz a ordem executiva.

Uma ordem executiva é abrangente por natureza. A sua aplicação incluirá a remoção de orientações, comunicações, políticas e formulários de ideologia de género de agências governamentais. Assim, a ordem diz que a palavra ‘mulher’ significa ‘mulher humana adulta’ e ordena que a identificação do governo, como em passaportes e em registos pessoais, reflita a realidade natural e “não a identidade de género autoavaliada”. Estabelece o reconhecimento, em todo o governo dos EUA, da realidade do sexo natural, incluindo a afirmação explícita de que só há dois sexos, masculino e feminino. Põe fim à prática de colocar homens em prisões femininas e ao uso do dinheiro de imposto para financiar tratamentos hormonais ou cirúrgicos para disforia de género, distúrbio que leva a pessoa a identificar-se com o sexo oposto de reclusos. E determina que a Procuradoria-geral dos EUA “emita orientações para garantir a liberdade de expressar a natureza binária do sexo e o direito a espaços do mesmo sexo, em locais de trabalho, e a entidades financiadas pelo governo federal cobertas pela Lei dos Direitos Civis de 1964”.

Num comício em Washington, D.C., a 19 de janeiro, Trump disse à multidão que pretende “manter os homens fora dos desportos femininos.

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Antes do decreto “Protegendo Crianças de Mutilação Química e Cirúrgica”, o presidente assinou, no dia 27, um decreto para acabar com a “ideologia radical de género” nas forças armadas (FA), revertendo a diretriz do ex-presidente Joe Biden que aceitava pessoas que se identificam com o sexo oposto nas FA. Essa ordem, que se efetiva em 30 dias, diz que qualquer pessoa que expresse “falsa ‘identidade de género’ divergente do sexo de um indivíduo não consegue satisfazer os padrões rigorosos necessários para o serviço militar”. E estipula que “o serviço militar deve ser reservado para os aptos, mental e fisicamente, para o serviço”. Ora, segundo um relatório da agência do governo dos EUA Congressional Research Service, atualizado a 10 de janeiro, o Departamento de Defesa dos EUA gastou cerca de 15 milhões de dólares em tratamentos para mudança de sexo de integrantes das FA, de 1 de janeiro de 2016 a 14 de maio de 2021.

Também entram em vigor, em 30 dias, todas as instalações para dormir, trocar de roupa e tomar banho, que serão separadas com base no sexo natural, independentemente da identidade de género autoafirmada pela pessoa.

Outra disposição determina que o secretário de Defesa dos EUA emita ordem a proibir o uso de pronomes inconsistentes com o sexo natural. “Além das intervenções médicas hormonais e cirúrgicas envolvidas, a adoção de identidade de género inconsistente com o sexo do indivíduo entra em conflito com o compromisso do soldado com um estilo de vida honrado, verdadeiro e disciplinado, mesmo na vida pessoal”, diz o decreto, sustentando que “a afirmação de um homem de que é mulher, e a sua exigência de que outros afirmem essa falsidade, não é consistente com a humildade e com a abnegação exigidas de um membro do serviço”.

“É política do governo dos EUA estabelecer altos padrões de prontidão das tropas, de letalidade, de coesão, de honestidade, de humildade, de uniformidade e de integridade”, diz o decreto, segundo o qual a principal missão dos militares é “proteger o povo americano e a nossa pátria como a força de combate mais letal e eficaz do Mundo”. “O sucesso nessa missão existencial requer o foco no desenvolvimento do ethos guerreiro necessário e a procura da excelência militar não pode ser diluída para acomodar agendas políticas ou outras ideologias prejudiciais à coesão da unidade”, diz o texto.

Além de rever as políticas de género do Departamento de Defesa, o presidente assinou três outros decretos ligados às FA, no dia 27, um dos quais encerra iniciativas de diversidade, de equidade e de inclusão (DEI). “Essas ações minam a liderança, o mérito e a coesão da unidade, corroendo assim a letalidade e a prontidão da força”, diz o decreto, nos termos do qual violam a consciência dos Americanos, ao envolverem discriminação racial e sexual odiosa”.

Outro decreto reintegra membros das FA que foram dispensados, ​​por se recusarem a tomar vacina contra a covid-19, e determina o pagamento de salários atrasados ​​e benefícios para eles.

O presidente restaurou, no dia 24, a Política da Cidade do México, que proíbe usar dinheiro do governo federal americano para financiar organizações estrangeiras que façam e promovam o aborto, revogando a diretriz de 2021 de Joe Biden, que eliminou tal política.

A proibição foi adotada pelo presidente republicano Ronald Reagan, em 1985. Desde então, foi revogada por todos os presidentes democratas e restaurada por todos os republicanos. Trump expandiu a regra, no primeiro mandato, para cobrir várias novas iniciativas de saúde do governo. A regra proíbe o financiamento pelos pagadores de impostos americanos de organizações não-governamentais (ONG) estrangeiras que promovam ou façam abortos como método de planeamento familiar, mas não abrange governos estrangeiros e alguns grupos internacionais.

A medida foi anunciada, pela primeira vez, pelos EUA, em 1984, na II Conferência Internacional sobre População da Organização das Nações Unidas (ONU), na Cidade do México, dando origem ao seu nome popular. É uma das ordens executivas emitidas por Trump, na primeira semana de exercício do cargo. O presidente deu diretrizes sobre políticas climáticas, sobre a pena de morte, sobre a imigração e sobre a ideologia de género, algumas das quais foram criticadas pela Conferência dos Bispos Católicos dos EUA (USCCB), bem como pela bispa episcopaliana de Washington. A ordem executiva sobre o aborto recebeu elogios de ativistas pró-vida. “Grande movimento do presidente Trump, ao restaurar a política da Cidade do México, que garante que os contribuintes americanos não financiem a matança de bebés no exterior!”, escreveu Lila Rose, fundadora do grupo pró-vida Live Action, na rede social X, no dia 24.

“A vida está a vencer na América”, escreveu Mike Pence, vice-presidente dos EUA, no primeiro governo Trump, também na rede social X.

Antes da ordem executiva sobre o aborto, o deputado republicano Chris Smith, do Estado de Nova Jersey, disse à CNA esperar que a restauração da regra permita que o Congresso dos EUA reveja os programas internacionais que recebem financiamento federal do governo americano. “Temos grandes esperanças e expectativas. É precisa a revisão completa desses programas. Precisamos de perguntar o que estão a fazer com o dinheiro”, declarou à CNA o deputado que, tendo assumido o cargo, em 1981, se tornou um defensor original da política da Cidade do México, quando o presidente Ronald Reagan a implementou, pela primeira vez, e defendeu a necessidade de supervisão do dinheiro federal que vai para grupos internacionais, citando o escândalo em que fundos do Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da AIDS (PEPFAR) foram usados ​​para fazer abortos em Moçambique.

Esses abortos são “absolutamente a ponta do iceberg”, disse Smith, que previu uma “grande luta, neste ano”, por ativistas pró-vida a tentar barrar o financiamento internacional federal do aborto.

A senadora democrata Patty Murray, do estado de Washington, disse que a regra da Cidade do México é política perigosa que restringe “serviços de saúde reprodutiva que salvam vidas”.

Ao prever mais ações pró-vida do governo Trump, Murray disse que os democratas “vão reagir de todas as maneiras que puderem”.

Em outra ordem do dia 24, Trump revogou o que diz serem diretrizes do governo Biden que violaram a Emenda Hyde, que proíbe o uso de fundos federais, para financiar abortos nos EUA.

A emenda entrou em vigor, pela primeira vez, em 1980, mas o governo Biden “desconsiderou essa política estabelecida e de senso comum, ao incorporar o financiamento forçado de abortos seletivos pelos contribuintes em ampla variedade de programas federais, disse Trump.

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É óbvio que a Igreja Católica e as outras Igrejas cristãs não renunciam, coerentemente, à doutrina condenatória do aborto, bem como às questões atinentes à identidade de género. Porém, não podem ignorar o sofrimento de tantas pessoas (como vincou a bispa de Washington), que, por motivos existenciais, as atinge de forma brutal, secundada pela forma ostracizante com que muitos setores da sociedade as encaram (o estado não pode discriminar as pessoas, mas tratá-las por igual e como diferentes no que são diferentes; e as Igrejas devem acolhê-las e tentar compreendê-las e acompanhá-las). É o caso das pessoas que se sentem constrangidas pelo padrão dos géneros masculino e feminino. A este respeito, devo dizer que acho abusivo submeter crianças à mudança de sexo, pois não têm capacidade de decisão e é matéria em que os pais devem coibir-se de decidir, até para que não venham a ser apontados pelos intervencionados por uma decisão irreversível.

Quanto ao aborto, gostaria de acompanhar a postura do movimento pró-vida nos EUA, mas, pelo que é dado observar, a questão coloca-se a nível económico: o estado, os contribuintes vão deixar de pagar abortos no estrangeiro, mas o decreto isenta governos estrangeiros e alguns grupos internacionais. Brinca-se à doutrina, à moral, à saúde, à de democracia?    

2025.01.30 – Louro de Carvalho

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