A celebração do Batismo do Senhor evoca o momento em que
Jesus, ungido pelo Espírito Santo e apresentado aos homens como “Filho Amado”
de Deus, abraça a missão que o Pai Lhe entregou: recriar o Mundo, fazer nascer
o Homem Novo – implicando que nos comprometamos seriamente com o desígnio
celeste, o Reino de Deus na Terra.
A primeira
leitura (Is 42,1-4.6-7) apresenta um
Servo, eleito de Deus e enviado para instaurar a justiça e a paz sem fim.
Investido do Espírito de Deus, realizará a missão com humildade e simplicidade,
sem o poder, a imposição, a prepotência, que não são esquemas de Deus.
O trecho em causa pertence ao “Livro da Consolação” do
Deuteroisaías (Is 40-55), profeta anónimo que exerceu o ministério na Babilónia,
na reta final do Exílio. Passaram dezenas de anos desde que Nabucodonosor
destruíra Jerusalém e arrastara para o cativeiro a maior parte dos habitantes
de Judá. Os cativos desesperam, pois o tempo passa e a libertação não acontece.
O profeta sente que Deus o envia a dizer aos concidadãos,
exilados e desanimados, palavras de esperança. Cumprindo o mandato de Deus, fala
da iminência da libertação, comparando-a ao antigo êxodo, quando Deus salvou o Povo
da escravidão do Egipto, e anuncia a reconstrução de Jerusalém, cidade que a
guerra destruiu, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz.
Contudo, neste anúncio consolador surgem quatro textos
que se desviam desta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa
e enigmática, o “Servo de Javé”. Não sabemos se será Jeremias, o profeta que
tanto sofreu por causa da missão, se o Deuteroisaías, chamado a dar testemunho
de Deus num cenário tão difícil, se o rei dos persas, Ciro, que libertará, alguns
anos depois, os judeus exilados e autorizará o seu regresso a Jerusalém. Seja
como for, este “Servo de Javé” é um predileto de Javé, chamado para o serviço
de Deus, enviado por Deus aos homens de todo o Mundo. A sua missão cumpre-se no
sofrimento e na incondicional entrega à Palavra. E o sofrimento do profeta tem
valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo.
Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar
diante dos seus detratores e adversários.
O trecho assumido como primeira leitura da festa tem
duas partes. Ambas partem do mesmo lugar e terminam da mesma forma: a eleição
do “Servo” e a sua missão. Porém, enquanto a primeira desenvolve mais a
dimensão do chamamento, a segunda define melhor a missão.
Começa por sobressair o “Servo” como um “eleito”
(“behir”) de Deus, alguém que Deus Se dignou “escolher” (“bahar”), entre
muitos, com vista a uma missão especial. É o contexto da “eleição”, o contexto
em que Deus, por iniciativa soberana e deliberada da sua vontade, destaca
alguém de entre muitos para o seu serviço. A investidura do “Servo” realiza-se
através do dom do Espírito (“ruah”), que dará ao “eleito” o alento de Javé, a
capacidade para levar a cabo a missão: é o Espírito que Deus derrama sobre os
chefes carismáticos de Israel. Animado por esse Espírito, o “Servo” levará “a justiça
(“mishpat”) às nações”. É, pois, uma missão de abrangência universal, que
consistirá na implementação das decisões justas dos tribunais, base de ordem
social consentânea com o desígnio e os esquemas de Deus. A instauração dessa ordem
não se dará pela força, pela violência, por gestos espetaculares, mas pela
intervenção marcada pela bondade, pela mansidão, pela simplicidade – sinais que
identificam o estilo de Deus. Sobretudo, o “Servo” atuará com humildade, sem
nada impor e sem desanimar ante as dificuldades.
Depois, temos a confirmação de que o “Servo” foi
escolhido por Deus para instaurar “a justiça” (“tzedeq” – ordenamento social
reto, de acordo com as indicações de Deus). O “Servo”, agindo no quadro da
missão que Deus lhe confiou, será uma luz que brilha no meio das nações; e
todas as vítimas da injustiça, da exploração ou da violência conhecerão a nova
esperança, pois o “Servo” abrirá os olhos aos cegos, tirará do cárcere os
prisioneiros e da prisão os que habitam nas trevas. A sua missão é, pois, de
libertação e de salvação.
A figura enigmática do Servo evidencia pontos de
contacto com Jesus. Aliás, os primeiros cristãos – ante a dificuldade de
explicar como fora o Messias condenado e pregado na cruz – utilizam os cânticos
do “Servo”, para justificar o sofrimento e o aparente fracasso humano de Jesus:
Ele é o eleito de Deus que recebeu a plenitude do Espírito, que veio ao
encontro dos homens trazer a justiça e a paz definitivas, que sofreu e morreu,
para ser fiel à missão que o Pai Lhe confiou.
***
No Evangelho
(Lc 3,15-16.21-22), sobressai a
concretização da promessa de Isaías: Jesus é o “Filho-Servo” enviado pelo Pai,
sobre Ele repousa o Espírito e a sua missão é a libertação dos homens.
Obedecendo ao Pai, identificou-Se com as fragilidades dos homens, caminhou ao
lado deles, a fim de os promover e de os levar à Vida em plenitude.
Estamos no vale do Jordão, nas imediações do deserto
de Judá, lugar que a tradição diz coincidir com o atual Qasr El Yahud, na
margem oriental do rio, a cerca de 10 quilómetros do Mar Morto.
Foi aí que João, o Batista, começara, no final do ano
27 ou no início do ano 28, a exercer a sua missão. A sua mensagem, centrada na
urgência da conversão (pois julgava iminente a intervenção definitiva de Deus
na História, para destruir o mal), incluía um rito de purificação pela água.
O judaísmo tinha vários ritos de imersão, associados a
contextos de purificação ou de mudança de vida. Um desses ritos era usado na integração
dos prosélitos (pagãos que aderiam ao judaísmo) na comunidade do Povo de Deus.
A imersão na água sugeria a rutura com o passado e o ressurgir para a vida
nova, novo nascimento, novo começo. No atinente ao batismo ministrado por João,
estamos ante um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceita este
batismo renuncia ao pecado, converte-se à vida nova e passa a integrar a
comunidade que esperava o Messias. Jesus, que vivia em Nazaré, na Galileia,
ouviu falar de João e da sua pregação. Procurou-o nas margens do Jordão e
escutou o seu apelo à conversão. O facto ocorreu, provavelmente, por volta do
ano 28. E Jesus também quis receber esse batismo.
Para Lucas, o Batista é a última testemunha de um
tempo salvífico que está a chegar ao fim: o tempo da Antiga Aliança. O
aparecimento em cena de Jesus significa o começo do novo tempo, o tempo da Nova
Aliança, o tempo em que Deus Se encontra com os homens para lhes oferecer a
vida e a salvação. O momento em que Jesus é batizado no Jordão é o momento em que
se revela a identidade e a missão de Jesus.
A secção do Evangelho de onde foi retirado o trecho
que a liturgia do dia nos oferece poderia intitular-se “prelúdio da missão
messiânica”. Para a compor, Lucas utiliza o texto de Marcos, completado com
tradições provenientes de outra “fonte”, formada por “ditos” de Jesus.
O trecho em referência apresenta dois quadros. No
primeiro, a figura central é João, que anuncia a chegada iminente daquele “que
há de vir” (vv. 15-16); no segundo (vv. 21-22), a figura central é Jesus,
batizado por João, identificado por Deus Pai e ungido pelo Espírito.
Em plena ebulição messiânica, na Palestina, surgem
conjeturas sobre o possível messianismo da figura e da atividade de João, isto
é, se era Ele o “ungido de Deus” (“Mashiah”, Messias”), cuja missão é libertar
Israel da dominação estrangeira e dar ao Povo de Deus vida em abundância.
João não alimenta qualquer expetativa messiânica em
relação à si; antes avisa os que vão ao seu encontro de que está para chegar
alguém “mais forte”, a quem não é digno de desatar as correias das sandálias.
“Desatar as correias das sandálias” era tarefa de escravos, pelo que a tradição
rabínica proibia ao discípulo desatar as correias das sandálias do mestre. Assim,
a imagem define João como aquele cuja missão é estar ao serviço desse que está
prestes a chegar. João diz que esse “mais forte” batizará “com o Espírito e com
o fogo”. Estas palavras, que soam de forma enigmática, apontam claramente numa
direção: a fortaleza e a unção do Espírito estão associadas, na tradição
religiosa de Israel, ao Messias esperado. João está convicto da iminente
chegada do “ungido de Deus” que os profetas anunciaram, aquele que vai batizar
o Povo “com o Espírito Santo e com o fogo”, que limpará Israel dos seus
pecados, o livrará da opressão e da maldade e inaugurará o tempo novo de
felicidade e de vida abundante.
Na perspetiva lucana, esta “profecia” concretizar-se-á
no Pentecostes: o “fogo” do “Messias”, o “fogo do Espírito”, derramado sobre os
discípulos reunidos no cenáculo, fará nascer o Povo novo e livre, a comunidade
do Messias, a comunidade da nova Aliança.
Depois, vem o quadro do batismo de Jesus. Lucas não
descreve o momento da imersão de Jesus nas águas do Jordão; está mais
interessado no que vem depois: a unção de Jesus com o Espírito. E relata que,
“quando todo o povo recebeu o batismo, Jesus também foi batizado”. Ou seja, Jesus
surge misturado com a multidão que recebe o batismo de conversão para a
remissão dos pecados.
Jesus não precisava desse batismo purificador, pois não
tinha pecados. Todavia, ao entrar na água com os que pediam o batismo de João,
Jesus coloca-se ao lado do povo pecador e afirma a sua solidariedade – a inefável
solidariedade de Deus – com todos os homens e mulheres que o pecado envolve e
marca. É consequência do mistério da encarnação: Ele veio colocar-Se ao lado do
homem pecador, para lhe dar a mão, para o ajudar a sair da sua situação e o
levar à Vida nova.
De acordo com Lucas, depois de sair da água, Jesus
fica em oração. É um pormenor que só aparece no 3.º Evangelho. Está, contudo,
na lógica da teologia de Lucas: Jesus mantém um diálogo contínuo com o Pai,
particularmente, nos momentos mais decisivos. É, pelo diálogo que descobre o desígnio
do Pai e encontra forças para o cumprir. Faz sentido que Jesus, quando é ungido
pelo Espírito e se dispõe a começar a missão, dialogue com o Pai.
O batismo de Jesus é marcado por três factos estranhos
que devem ser entendidos em referência a factos e a símbolos do Antigo
Testamento (AT).
O primeiro é a “abertura do céu”, inspirada em Is 63,19, com o profeta a pedir a Deus
que “abra os céus” e desça ao Povo, refazendo a relação que o pecado do Povo
interrompeu. A presença de Jesus na História dos homens relança a comunhão
entre Deus e a Humanidade pecadora.
O segundo elemento é a descida do Espírito, como uma
pomba, sobre Jesus. O Espírito que desce sobre Jesus é o sopro de vida de Deus
que cria, renova, transforma e cura os seres vivos. Leva-nos ao Espírito de
Deus que, na criação, “pairava sobre a superfície das águas”. Ungido com a
força do Espírito, Jesus parte ao encontro dos homens para fazer nascer a nova
Humanidade.
O terceiro elemento é a voz vinda do céu. Os rabis
usavam a “voz do céu” como forma de exprimir a opinião de Deus acerca de uma
pessoa ou de um acontecimento. A voz declara que Jesus é o Filho de Deus; e
fá-lo com fórmula tomada do cântico do “Servo de Javé”. Jesus é o eleito de
Deus, o Filho no qual o Pai “pôs toda a sua complacência”, enviado ao encontro
dos homens para recriar a Humanidade; mas a missão de Jesus, como a do Servo de
Javé, não se desenrola no triunfalismo, mas na total obediência ao Pai; não se
cumprirá com poder e prepotência, mas na suavidade, na simplicidade, na
humildade, no respeito pelos homens (“não gritará, nem levantará a voz; não
quebrará a cana fendida, nem apagará a torcida que ainda fumega” – Is 42,2-3).
Assim, tudo fica definido: Jesus, batizado no
Espírito, ungido com a força de Deus, capacitado para cumprir o projeto do Pai,
partirá ao encontro do Mundo a concretizar a missão.
***
A segunda
leitura (At 10,34-38) reafirma
que Jesus é o Filho amado que o Pai enviou ao Mundo para concretizar um
desígnio de salvação em favor dos homens.
Os “Atos dos Apóstolos” são uma catequese sobre a
“etapa da Igreja”, isto é, sobre a forma como os discípulos assumiram ou
continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram – após a partida de Jesus
deste Mundo – a todos os homens do Mundo então conhecido. O livro divide-se em
duas partes. Na primeira, a reflexão centra-se na difusão do Evangelho dentro
das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; na segunda, conta-se a
expansão do Evangelho fora da Palestina (sobretudo, por ação de Paulo): no
Mediterrâneo, na Ásia Menor, na Grécia, até atingir Roma, o coração do império.
O trecho em apreço integra-se na primeira parte, numa perícopa que descreve a
atividade missionária de Pedro na planície do Sharon, junto da orla
mediterrânica palestina.
No seu discurso, em casa do romano Cornélio, em
Cesareia Marítima, Pedro reconhece que a salvação oferecida por Deus e trazida
por Cristo é universal e se destina a todas as pessoas, sem distinção de
qualquer tipo. Israel foi o primeiro recetor da Palavra de Deus, mas Cristo
veio trazer a “boa nova da paz” a todos. Ao partir ao encontro do Pai, Jesus
ressuscitado enviou ao Mundo os discípulos e mandou que levassem a todos os
homens a Boa Nova da salvação. Os discípulos, testemunhas e arautos de Jesus,
devem cumprir o mandato e fazer chegar o anúncio da salvação a todos os homens
e mulheres, sem distinção de raça, de cor ou de estatuto social.
Depois de definir os contornos universais da salvação
de Deus, Pedro faz uma espécie de resumo da fé primitiva. É pôr em ato a missão
fundamental dos discípulos: anunciar Jesus e testemunhar a salvação que deve
chegar a todos os homens. O trecho em causa apenas conserva a parte inicial do
“kérigma” primitivo e resume a atividade de Jesus que, depois de ter sido
ungido com a força Espírito Santo no Jordão, “passou pelo mundo fazendo o bem e
curando todos os que eram oprimidos pelo demónio, porque Deus estava com Ele”.
Porém, o anúncio petrino continua com a catequese sobre a morte, sobre a
ressurreição e sobre a dimensão salvífica da vida de Jesus.
Cornélio e família acolhem o “kérigma” cristão
proclamado por Pedro, abraçam a fé, recebem o Espírito, são batizados e passam
a integrar a comunidade de Jesus.
***
Por tudo isto, fiéis ao sério compromisso com o Reino
de Deus, que fervilha na comunidade dos crentes e quer expandir-se a toda a
Terra, é justo cantar como o salmista, em torno do estribilho “O Senhor
abençoará o seu povo na paz”.
“Tributai ao
Senhor, filhos de Deus, / tributai ao Senhor glória e poder.
Tributai ao Senhor a glória do seu nome, / adorai o Senhor com ornamentos
sagrados.
A voz do
Senhor ressoa sobre as nuvens, / o Senhor está sobre a vastidão das águas.
A voz do Senhor é poderosa, / a voz do Senhor é majestosa.
A majestade
de Deus faz ecoar o seu trovão / e no seu templo todos clamam: Glória!
Sobre as águas do dilúvio senta-Se o Senhor, / o Senhor senta-Se como rei
eterno.”
2025.01.13 – Louro de Carvalho
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