Os
factos e as declarações de responsáveis pela gestão da coisa pública criam, por
vezes, nos cidadãos a sensação de dúvida ou de insegurança em relação à
capacidade do Estado e suas instituições e órgãos suscitarem e manterem a
confiança geral das pessoas singulares e dos titulares e servidores das pessoas
coletivas.
Todos
se lembram da tentação recorrente de membros do governo não assumirem a
responsabilidade política pelos erros e falhas que ocorrem no âmbito dos órgãos
e serviços abrangidos pelas pastas que sobraçam, escudando-se na
responsabilização técnica dos titulares dos respetivos cargos de natureza
administrativa. Foi o caso do CITIUS, no âmbito da Justiça, o da fórmula
matemática, no âmbito da Educação, o da bolsa VIP no âmbito da Administração
Tributária e Aduaneira. O caso dos vistos Gold
revelou um único caso de alguém que haverá tirado consequências políticas,
ficando de fora quem foi responsável material e político pela criação do
mecanismo. E, no caso da resolução do BES o Governo atirou a responsabilidade
para o Banco de Portugal, invocando as competências que a legislação em vigor
lhe atribui, mas esqueceu-se de referir que foi o Governo que à última da hora
preparou a legislação.
Por
outro lado sabemos que a Justiça é cega, lenta, cara e desigual, enquanto
“todos”, embora reconhecendo que ela tem o seu tempo, dizem que confiam na
justiça e esperam que ela faça o seu trabalho.
Não
sei se o levantamento do sigilo bancário se faz sempre por motivos justificados.
Mas viola-se o sigilo fiscal, viola-se o segredo de justiça e alguém põe a
hipótese de contrariar o segredo de Estado. Demasiada gente, muita dela
ilegitimamente, tem possibilidade de aceder ao dossiê fiscal dos contribuintes.
Mais: a máquina fiscal não tem capacidade de fiscalizar o cumprimento dos
deveres fiscais e contributivos dos cidadãos e das empresas. Com a exigência de
solicitação de fatura com o número de contribuinte e com o aceno do sorteio
automóvel, o Estado está a fazer do cidadão um polícia ou um fiscal do seu
fornecedor, do seu vizinho, do seu empresário.
Por
outro lado, quando algo não corre a contento da opinião pública no âmbito da
administração da Justiça, a cada passo os magistrados alijam as
responsabilidades para os políticos como se os magistrados não integrassem o
poder político (no caso dos juízes o poder político
soberano). Criou-se
mesmo a ideia da indiscutibilidade das decisões dos tribunais. Ora o n.º 2 do
artigo 205.º da CRP (Constituição da República Portuguesa) apenas estabelece que “as
decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e
privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades”. Nada refere
que proíba o direito de crítica quer da parte dos cidadãos quer da parte dos
outros poderes.
Mas
um juiz de instrução criminal terá declarado que a prisão preventiva, num
determinado caso, se pecou, não foi por excesso. E afirmou que a quebra do
segredo de justiça era negócio de jornalistas. Um tribunal de relação achou que
um trabalhador embriagado até podia trabalhar com mais alegria e melhor
disposição; outro entendeu que chamar “palhaço” a um autarca não constituía
insulto; e outro, para sustentar acórdão, citou o aforismo “quem cabritos vende e cabras não tem, de
algum lado lhe vêm”. Um desembargador admite que atamancou um projeto de acórdão
porque não percebia de direito administrativo e não tinha dinheiro para comprar
um livro só para um processo. Convém aqui esclarecer, do meu ponto de vista,
que se torna impossível os tribunais funcionarem com juízes especializados academicamente
(não
contrario a pretensão de durante longo tempo o juiz se aplicar a uma matéria específica
por razões de estabilidade).
Todavia, o juiz deve dispor de peritos em determinadas matérias jurídicas que
não domine, tal como dispõe de peritos em psicologia, psiquiatria, medicina,
sociologia, serviço social, educação, etc.
Já
não me refiro a momentos em que governantes do mesmo governo divergem
publicamente uns dos outros e se contradizem reciprocamente, muitos menos
quando acusam sistemática e impiedosamente governos anteriores por todos os
problemas com que aqui e agora têm que se confrontar.
***
Segundo
o Público do passado dia 6 de abril,
uma juíza desembargadora, a coordenadora da jurisdição administrativa e fiscal
no Centro de Estudos Judiciários, onde se formam os magistrados, entende que o
novo Código do Procedimento Administrativo (CPA) “é um avanço no sentido certo”,
porém, “é preciso esperar para ver como a administração pública o aplicará”.
Já
nestas palavras transparece a dúvida sobre a capacidade da Administração
Pública (AP) em aplicar o novo normativo
legal. Porém, a magistrada vai mais longe ao considerar que “este é um código
muito moderno, que responsabiliza mais a administração pública e envolve mais
os particulares”, mas posiciona-se como “expectante para ver se a administração
pública está preparada para lhe dar exato cumprimento”.
Se
é admissível esta desconfiança perante a AP, que dizer das outras entidades,
independentemente da sua índole jurídica, que têm de o aplicar, desde que exerçam a função administrativa (vd CPA, art.º 2.º/1)? Depois, há que
perguntar para que se nomeia um governo, em resultado das eleições
legislativas, já que se trata do “órgão superior
da administração pública” (vd CRP, art.º 182.º)? Será que o Estado não se sente
com a obrigação e a capacidade de angariação de meios para urgir a satisfação
constitucional das atribuições da AP? O art.º 266.º da CRP estabelece os
princípios fundamentais da AP, assegurando no seu n.º1 “a prossecução do interesse
público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos”. Por seu turno, o n.º 2 preceitua que “os órgãos e agentes administrativos
estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas
funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da
justiça, da imparcialidade e da boa fé”.
Vamos
resignar-nos ter a paciência de considerar este artigo como letra morta?
Por
outro lado, o art.º 268.º da CRP estabelece os direitos e garantias dos administrados. Atenhamo-nos ao teor dos seus n.os
4 e 5, que estabelecem:
É garantido aos administrados tutela
jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos,
incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a
impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da
sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos
e a adopção de medidas cautelares adequadas (n.º 4). Os cidadãos têm igualmente
direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos (n.º 5).
Sendo assim, é de questionar porque é que os
tribunais administrativos são lentos a concluir os respetivos processos
garantísticos dos direitos e legítimos interesses dos cidadãos, das pessoas
coletivas lesadas ou dos trabalhadores da AP, sobretudo no caso dos processos
em que há interposição de recurso?
O legislador constituinte não olvidou a
responsabilidade dos tribunais quando estatui a “função jurisdicional” no art.º
202.º da CRP:
1. Os tribunais são os órgãos de
soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
2. Na administração da justiça incumbe
aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e
dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
3. No exercício das suas funções os
tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades.
4. A lei poderá institucionalizar
instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos.
O n.º 1 define a função política soberana dos
tribunais, quando os entende como órgãos de soberania e sendo o seu exercício
desenvolvido em nome do povo. O n.º 2 estabelece as competências genéricas de
“defesa” de direitos e interesses legítimos, “repressão” da violação da
legalidade e “dirimição” de conflitos de interesses. O n.º 4 prevê a
institucionalização de formas não jurisdicionais de composição de conflitos. E
o n.º 3 determina a solidariedade das outras autoridades para com os tribunais.
***
De acordo
com o Público, de 8 de abril, António
Ventinhas, eleito Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
e ora empossado, afirmou que “a justiça nunca foi prioridade de nenhum governo”.
Em maio de 2005, ouvi exatamente isto a um advogado em plena audiência em
tribunal, mas recebeu a consequente repreensão do magistrado judicial. E eu
entendia que, apesar das deficiências, o Estado acarinhava a administração da
Justiça.
Porém,
o aludido magistrado do Ministério Público vai mais longe ao denunciar que “a
escassez de meios não se verifica só no combate ao crime económico, mas em
todos os setores” – em setembro faltavam 140 magistrados do Ministério Público,
mas se juntarmos a isso o número de baixas e de licenças de maternidade seguramente
faltam mais de 200 – e ao acentuar que “no crime económico quem está do outro
lado são pessoas altamente poderosas e com amplos recursos económicos, pelo que
se nota ainda mais essa diferença”. Que diferença? Ele explicita:
“Do
ponto de vista formal a justiça aplica-se a todos de igual forma. Mas do ponto
de vista material existem diferenças consoante se trate de um arguido com
elevados meios económicos ou sem eles”. Diz outrossim que os grandes grupos
recorrem à mediação, escolhendo os árbitros entre si – procedimento inacessível
a grupos mais debilitados.
Sem negar
a verdade das queixas da falta de recursos humanos, financeiros e técnicos, só
me pergunto qual será o setor do Estado que não se queixe com verdade da falta
de meios? Será exceção o restaurante da Assembleia da Republica – a bom
conteúdo e a preço irrisório?
Sobre as
funções e estatuto do Ministério Público, o art.º 219.º da CRP é claro:
1. Ao Ministério Público compete representar
o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com
observância do disposto no número seguinte (o
do estatuto e autonomia, digo eu) e nos termos da lei, participar na execução da
política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer
a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender
a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto
próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3. A lei estabelece formas especiais de
assessoria junto do Ministério Público nos casos dos crimes estritamente militares.
Talvez seja necessário e conveniente lutar mais
pelo reforço do seu estatuto e sugerir melhores leis de meios e mais ágeis leis
processuais. Não se será verdade que os magistrados são ouvidos previamente à
produção legislativa atinente à configuração e à administração da Justiça?
***
Será que,
por falta de meios ou de vontade política ou por inépcia, teremos de
descaraterizar o Estado Português? – Portugal
é uma República soberana, baseada na dignidade
da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa
e solidária (CRP, art.º 1.º, sublinhei).
Será que
os órgãos do Estado, nomeadamente os órgãos de soberania vão deixar de fomentar,
preservar e reforçar o Estado de
direito democrático? – A República
Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no
pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na
garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e
interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica,
social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa (CRP,
art.º 2.º).
Que poder (financeiro, económico, informático…) se estará a sobrepor ao poder político para que se
faça tabula rasa das tarefas
fundamentais do Estado? Veja-se o art.º 9.º da CRP_
São tarefas fundamentais do Estado:
a)
Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas,
sociais e culturais que a promovam;
b)
Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do
Estado de direito democrático;
c)
Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação
democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais;
d)
Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os
portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais
e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas
e sociais;
e)
Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a
natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto
ordenamento do território;
f)
Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a
difusão internacional da língua portuguesa;
g)
Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em
conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e
da Madeira;
h)
Promover a igualdade entre homens e mulheres.
Parece
configurar sacrilégio constitucional a fuga a estes deveres fundamentais por
parte das entidades públicas.
Já agora,
mais do que a crítica ou a loa mútuas e em vez delas, atente-se na definição
constitucional da responsabilidade das
entidades públicas:
O Estado e as
demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com
os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem (CRP,
art.º 22.º).
Não
querem assumir e cumprir? Demitam-se!
***
Com os
melhores cumprimentos, a bem da República, a bem da Nação e sobretudo Deus
guarde Suas Excelências!
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