terça-feira, 14 de abril de 2015

Não ao estatuto de laboratório teológico para a Cúria Romana

O Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), o cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller, numa entrevista concedida ao jornal francês La Croix, afirmou que “a chegada à Cátedra de Pedro de um teólogo como Bento XVI é provavelmente uma exceção”. Entende que, tal como João XXIII não era um teólogo de ofício, também o Papa Francisco é mais pastor. Sendo assim, sugere uma nova missão para o dicastério que Müller dirige, a missão da estruturação teológica do pontificado, competência que nunca surgiu no elenco das atribuições da CDF nem para a sua antecessora, a do Santo Ofício.
Há quem veja nesta formulação o motivo por que o “autonotabilizado” Prefeito faz questão em multiplicar as suas intervenções públicas – algo a que as Congregações Romanas não nos tinham habituado.
Pensava eu que, ao reclamar a atenuação da tendência em virar as atenções predominantemente para a figura do Papa, o cardeal, que jurou fidelidade e obediência a este Sumo Pontífice tal como o fizera ao seu antecessor, estaria a tentar a mobilização das atenções para o dinamismo da Igreja como um todo e atuante em todas e cada uma das Igrejas locais, em comunhão com o Bispo de Roma e na liberdade pujante das suas diversidades. Mas, pelos vistos, enganei-me. O Prefeito parece entender que o Papa se deve amoldar às diretrizes da poderosa Congregação e não é a Congregação que deve seguir as linhas de orientação do Pontífice. É que alegadamente este é pastor e não teólogo. Como pastor age, mas não sabe ou não age fundamentadamente. Por isso, é preciso – pensa o eminentíssimo cardeal – estruturar-lhe teologicamente o pontificado, talvez – digo eu – para saber o que e como há de ensinar (!) – o que escapou a João XXIII.
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Mas não é assim. Foi a Pedro – e não a outro apóstolo ou a um evangelista ou teólogo – que Jesus confiou a tarefa de confirmar os irmãos na fé (cf Lc 22,32), como foi a ele que o Pastor do pastores entregou o apascentamento dos cordeiros (cf Jo 21,15) e das ovelhas (cf Jo 21,16.17), como contrapartida do amor do Apóstolo (cf Jo 21,15.16.17).
A Lumen Gentium, Constituição Dogmática sobre a Igreja, embora coloque em primeiro lugar a Igreja como Povo de Deus, declara, no seu n.º 18, o primado do Papa como sucessor de Pedro:
Jesus Cristo, pastor eterno, edificou a Igreja tendo enviado os Apóstolos como Ele fora enviado pelo Pai (cf. Jo 20,21); e quis que os sucessores deles, os Bispos, fossem pastores na Sua Igreja até ao fim dos tempos. Mas, para que o mesmo episcopado fosse uno e indiviso, colocou o bem-aventurado Pedro à frente dos outros Apóstolos e nele instituiu o princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade de fé e comunhão.
Isto não dispensa de atentar na missão dos bispos e de a aceitar, segundo o mesmo documento conciliar, no seu n.º 20, não se reconhecendo nos cardeais em si mesmos uma competência atribuída por direito divino, mas uma missão enquanto colaboradores especiais do Papa e como eleitores do futuro Papa, como escrevi em “A missão dos cardeais” (vd CIC, can 349):
Os Bispos receberam, com os seus colaboradores os presbíteros e diáconos, o encargo da comunidade, presidindo em lugar de Deus ao rebanho de que são pastores como mestres da doutrina, sacerdotes do culto sagrado, ministros do governo. E assim como permanece o múnus confiado pelo Senhor singularmente a Pedro, primeiro entre os Apóstolos, e que se devia transmitir aos seus sucessores, assim permanece o múnus dos Apóstolos de apascentar a Igreja, que deve ser exercido perpetuamente pela sagrada Ordem dos Bispos. Ensina, pois, o sagrado Concílio que, por instituição divina, os Bispos sucedem aos Apóstolos, como pastores da Igreja; quem os ouve, ouve a Cristo; quem os despreza, despreza a Cristo e Aquele que enviou Cristo (cf. Lc 10,16).
Por seu turno, o Decreto Conciliar Christus Dominus, sobre o múnus pastoral dos Bispos na Igreja, ao abordar a doutrina da sucessão de Pedro e dos Apóstolos, explicita no seu n.º 2, sobre o Papa:
Nesta Igreja de Cristo, o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, a quem o mesmo Cristo mandou que apascentasse as suas ovelhas e os seus cordeiros, está revestido, por instituição divina, de poder supremo, pleno, imediato e universal, em ordem à cura das almas. Por isso, tendo sido enviado como pastor de todos os fiéis para promover o bem comum da Igreja universal e o de cada uma das igrejas particulares, ele tem a supremacia do poder ordinário sobre todas as igrejas.
E sobre os Bispos:
Também os Bispos, constituídos pelo Espírito Santo, sucedem aos Apóstolos como pastores das almas e, juntamente com o Sumo Pontífice e sob a sua autoridade, foram enviados a perpetuar a obra de Cristo, Pastor eterno. Na verdade, Cristo deu aos Apóstolos e a seus sucessores o mandato e o poder de ensinar todas as gentes, de santificar os homens na verdade e de os apascentar. Por isso, foram os Bispos constituídos, pelo Espírito Santo que lhes foi dado, verdadeiros e autênticos mestres, pontífices e pastores.
É de acentuar que os textos não relevam a teologia, mas o magistério, a santificação e o pastoreio. Parece, pois, que ao Papa em relação à sua diocese e à Igreja universal cabe a superior direção e o dever e o direito de entregar tarefas e pedir conselho a instituições permanentes (por exemplo, os diversos dicastérios, o sínodo dos bispos, academias, serviços…) e eventuais (as comissões que entender criar em razão de matérias e eventos), bem como a peritos diversos (cardeais, bispos, sacerdotes, leigos, teólogos, filósofos, médicos, juristas, economistas…) – vd CIC, can 334 e 1Cor 12,4-10.
Analogamente devem proceder os bispos no governo das suas dioceses e no desempenho da solicitude pelas outras Igrejas, mormente quando participam nos trabalhos das conferências episcopais, no concílio ecuménico e provinciais ou nos sínodos locais ou da Igreja Universal.
Quero dizer: o Papa e os Bispos devem procurar apoio teológico e científico, mas ninguém lhes deve impor uma teologia, um ensino, um estilo. A Cúria Romana ou algum dos seus dicastérios não podem autoconstituir-se em laboratório científico ou numa Universidade para construir doutrina ou experimentar enunciados e métodos e impô-los ou oferecê-los a Sua Santidade, como se tivesse “a obrigação de aprender a ser Papa”. Analogamente se deve falar a propósito dos bispos para o exercício do seu múnus. De resto, não faltam universidades pontifícias universidades católicas e universidades civis, que podem prestar todo o serviço solicitado.
O mesmo decreto Christus Dominus situa os diferentes Dicastérios da Cúria Romana sua missão e renovação, explicitando no seu n.º 9:
No exercício do poder supremo, pleno e imediato sobre a Igreja universal, o Romano Pontífice serve-se dos Dicastérios da Cúria Romana, que, por isso, trabalham em seu nome e com a sua autoridade, para bem das igrejas e em serviço dos sagrados pastores. Desejam os Padres do sagrado Concílio que estes Dicastérios, que prestaram, sem dúvida, precioso auxílio ao Romano Pontífice e aos pastores da Igreja, sejam reorganizados, segundo as necessidades dos tempos, das regiões e dos ritos, sobretudo quanto ao número, nome, competência e modo de proceder de cada um, bem como no que respeita à coordenação recíproca dos trabalhos. Desejam também que, tendo em conta o múnus pastoral próprio dos Bispos, se determinem mais claramente as atribuições dos Núncios pontifícios.
Quanto à composição dos Dicastérios da Cúria Romana, o n.º 10 dispõe:
Tendo sido criados estes Dicastérios para bem da Igreja universal, deseja-se que os seus membros, oficiais e consultores, e do mesmo modo os Núncios do Romano Pontífice, provenham mais, quanto for possível, das diversas regiões da Igreja, de modo que os serviços ou órgãos centrais da Igreja católica tenham caráter verdadeiramente universal. Fazem-se igualmente votos por que, entre os membros dos Dicastérios, se contem também alguns Bispos, sobretudo diocesanos, que possam manifestar mais plenamente ao Sumo Pontífice a mentalidade, os anseios e as necessidades de todas as igrejas. Por último, os Padres conciliares julgam muito útil que estes Dicastérios ouçam mais os leigos que se distinguem pela virtude, ciência e experiência, para que também estes influam, quanto convém, nas coisas da Igreja.
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Müller quer trazer ao ordenamento jurídico-pastoral da santa Sé uma novidade que, em certa medida contraria, como vimos, a doutrina, mas também o direito. O Código de Direito Canónico (CIC), como recordou Francisco durante o encerramento do Sínodo de 2014, estabelece, no § 1 do can. 749, que o Papa, em virtude do seu cargo, goza de infalibilidade no magistério, quando, “como supremo Pastor e Doutor de todos os fiéis, a quem pertence conformar na fé os seus irmãos, proclama por um ato definitivo que tem de ser aceite uma doutrina acerca da fé ou dos costumes”. Também o cânone 331 também estabelece:
O Bispo da Igreja de Roma, em quem permanece o múnus pelo Senhor de forma singular a Pedro, o primeiro dos Apóstolos, para ser transmitido aos seus sucessores, é a cabeça do Colégio dos Bispos, Vigário de Cristo e Pastor da Igreja Universal neste mundo; o qual, por consequência, em razão do cargo, goza na Igreja de poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, que pode exercer sempre livremente.
Depois, a Constituição Apostólica Pastor Bonus, sobre a Cúria Romana, promulgada por João Paulo II em 1988, determina que “o trabalho próprio da Congregação para a Doutrina da Fé é promover e tutelar a doutrina da fé e os costumes em todo o orbe católico”.
Até há poucas décadas (o último que o fez foi o Papa Montini) era o próprio Sumo Pontífice que presidia pessoalmente à CDF, justamente em razão desta tarefa que só recai sobre o Pontífice, em virtude do primado petrino – primado que pertence ao Bispo de Roma e que, em síntese, consiste em presidir “na caridade” e, caso surjam, também dirimir questões teológicas.
Sobre a Cúria Romana, diz a Pastor Bonus, no seu artigo 1:
A Cúria Romana é o conjunto dos Dicastérios e dos Organismos que coadjuvam o Romano Pontífice no exercício do seu supremo múnus pastoral, para o bem e o serviço da Igreja Universal e das Igrejas particulares, exercício com o qual se reforçam a unidade de fé e a comunhão do Povo de Deus e se promove a missão própria da Igreja no mundo.
Exerce um serviço de coadjuvação ao Papa para o bem e serviço da Igreja Universal e das Igrejas locais. Não é um serviço de supremacia nem de superintendência.
Quando à CDF, temos de assentar em que se trata também de um instrumento nas mãos do Papa (e não ao contrário): ao serviço da Igreja Universal para a salvaguarda e a promoção de fé em vista do bem das almas. A atual organização e os vários encargos exercidos por ela vêm especificados na predita Constituição nos nn. 48-55.
Tem como função “promover e tutelar a doutrina sobre a fé e os costumes em todo o mundo católico”: é da sua competência “tudo o que de qualquer modo se refira a essa matéria” (cf art. 48). No cumprimento da função de promover a doutrina, “ela favorece os estudos destinados a fazer aumentar o entendimento da fé e para que aos novos problemas derivados do progresso das ciências ou da civilização se possa dar resposta à luz da fé” (art.49). Mais: “Serve de ajuda aos Bispos, quer individualmente quer reunidos nos seus organismos, no exercício da missão pela qual são constituídos como autênticos mestres e doutores da fé e pela qual devem guardar e promover a integridade da mesma fé” (art. 50).
E, para tutelar a verdade da fé e a integridade dos costumes, ela empenha-se por que a fé e os costumes não sofram dano por causa de erros de qualquer modo divulgados. Portanto, tem o dever de exigir que os livros e outros escritos, publicados pelos fiéis e referentes à fé e aos costumes, sejam submetidos ao prévio exame da Autoridade competente; examina os escritos e opiniões que se mostrem contrários à reta fé e perigosos, e, quando resultem opostos à doutrina da Igreja, dada ao seu autor a possibilidade de explicar completamente o seu pensamento, reprova-os tempestivamente, depois de ter informado o Ordinário interessado, e usando, se oportuno, os remédios adequados; e cuida, enfim, de que não falte uma adequada refutação dos erros e das doutrinas perigosas, difundidos no meio do povo cristão (cf art. 51).
Julga os delitos contra a fé e os delitos mais graves cometidos contra a moral ou na celebração dos Sacramentos, que lhe sejam comunicados e, se necessário, procede a declarar ou aplicar as sanções canónicas de acordo com o direito, tanto comum como próprio (cf art. 52). Compete-lhe também julgar, em linha de direito e de facto, tudo o que concerne ao “privilegium fidei” (cf art. 53) – ou seja, as questões relativas ao matrimónio celebrado entre não batizados, sucedendo que um deles recebe o batismo e o outro não adere e quer separar-se (CIC, can 1143 a 1149).
Devem-lhe ser submetidos previamente os documentos a publicar por outros dicastérios, no caso de eles se referirem à doutrina acerca da fé e dos costumes (cf art. 54).
Junto da CDF estão constituídas a Pontifícia Comissão Bíblica e a Comissão Teológica Internacional, que atuam segundo as leis próprias e são presididas pelo Cardeal Prefeito da Congregação (cf art. 55).
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Embora me pareça que a CDF tem poderes a mais, nomeadamente os dos artigos 52 e 53, que deveriam competir aos tribunais da Santa Sé (Rota Romana; Penitenciaria, nalguns foros; e Assinatura Apostólica), nada indica que se sobreponha ao Pontífice nem lhe dê linhas de orientação, a menos que ele, no legítimo uso do seu discernimento, lho solicite. Depois, parece que no diálogo com um teólogo, mais do que censura ou sanção penal, a CDF deveria solicitar a investigação científica; e, quanto ao que não embata diretamente contra a doutrina, mas contra posição oficial da Igreja, o discurso deveria ser de reconhecimento do direito à opinião e de advertência de que não deverá ser ensinado este ou aquele enunciado como doutrina da Igreja, mas apenas como entendimento pessoal. Nada de reduzir ao silêncio ou retirar a cátedra!
Também não se compreende que Müller entenda que não se devem dar competências doutrinais às Conferências Episcopais (contrariando o art. 50), quando os bispos, como sucessores dos apóstolos, em união com o Papa são mestres da fé. O próprio cardeal fez em Esztergom, a 13 de janeiro de 2015, um discurso sobre A natureza teológica das Comissões Doutrinais e a tarefa dos Bispos como mestres da fé. Ora, se o são nas suas dioceses, também o serão na solicitude pelas Igrejas e obviamente no quadro da Conferência Episcopal que integram.

Não cabe à Cúria a função de laboratório científico ou de Universidade do Papa – o que não contraria o trabalho das Comissões, Academias, Conselhos e Fundações que se colocam ao serviço da Ciência e da Cultura – ao serviço da Igreja, mas não como ensino ao Papa.  

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