Faz
justamente hoje, dia 19 de abril, dez anos que o cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, até então decano
do Sacro Colégio e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – e, por este
motivo, considerado o guardião da doutrina católica – foi eleito o 65.º Papa,
logo no entardecer do segundo dia do conclave, em que assumiu o nome de Bento
XVI.
A sua primeira saudação aos
peregrinos e curiosos reunidos na Praça de São Pedro, antes da sua primeira bênção
apostólica Urbi et Orbi, foi tão
simples e sintética que dá para transcrever na íntegra:
Depois do
grande Papa João Paulo II, os Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde
trabalhador na vinha do Senhor. Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e
agir também com instrumentos insuficientes. E, sobretudo, recomendo-me às
vossas orações.
Na alegria
do Senhor Ressuscitado, confiantes na sua ajuda permanente, vamos em frente. O
Senhor ajudar-nos-á. Maria, sua Mãe Santíssima, está connosco. Obrigado!
Quando o Papa Francisco se
recomendou às orações dos fiéis antes de conceder a sua bênção, poucos se
lembraram de que Bento fizera coisa semelhante, embora sem aquele carisma que
suscita a empatia das multidões, assim como também fez uma referência elogiosa
ao seu antecessor. Porém é de registar a consciência de que Deus “sabe trabalhar e agir também com instrumentos
insuficientes” e a referência explícita ao fundamental da fé, “na alegria do Senhor Ressuscitado” e a evocação da
presença materna de Maria.
Ficará Bento XVI na História
dos pontificados romanos como um Papa teólogo e professor – o que também neste
âmbito lhe granjeou algumas antipatias, dado que não é fácil os homens da funda
ciência, mesmo teológica, estarem de acordo em tudo. Mas escreveu obra
teológica pessoal e manteve encontros com seus antigos alunos durante a
vigência do seu pontificado, sua sponte
disponível para a crítica e a contestação.
No entanto – e apesar de ser
olhado de soslaio por alguns pelo facto de ter proscrito a maior parte das
teses da teologia da libertação por alegada consonância com o marxismo, de
haver silenciado alguns dos seus confrades em matéria teológica e terem eclodido,
nos seus quase oito anos de sumo pontificado, as principais polémicas e
escândalos sobre pedofilia (e outros abusos sexuais de
menores) por
parte de clérigos, alguns deles notáveis, corrupção e fuga de documentos
confidenciais – não se pode subestimar a sua palavra de orientação na promoção
da doutrina, no combate à ditadura do relativismo e do culto do provisório, na
denúncia das desigualdades e da ostracização dos pobres, na defesa da nova
ordem internacional no âmbito da justiça, da economia e da economia e no
incentivo à denodada ação pastoral e apostólica.
O que se afirma de
Ratzinguer sobre rigidez teológica é contradito pela lucidez pastoral, pela
cultura da relação de proximidade e de afeto, pela atenção aos mais diversos
pormenores e pelos trilhos da via
puclchritudinis. Ademais, foi o Pontífice que provocou, num curto espaço de
tempo, na Igreja forte e alargada reflexão com a proclamação do Ano Paulino, do
Ano Sacerdotal e do Ano da Fé. Por outro lado, imprimiu um modo pessoal de
acompanhar as jornadas mundiais da juventude, os sínodos dos bispos, a pastoral
da família, as questões culturais, a diplomacia da Santa Sé, as 24 viagens apostólica
fora de Itália e umas 30 em Itália.
É pena que incidentes como o
sucedido em Ratisbona, o levantamento da excomunhão a um bispo da Fraternidade
de São Pio X, que, entretanto, negara a existência do holocausto, ou a
displicência pela eficácia do preservativo no combate ao vírus do HIV tenham
ofuscado muitas das suas boas iniciativas e a invectiva clara e ousada contra a
opressão de alguns governos sobre as populações, a corrupção ao mais alto
nível, o enriquecimento abusivo dos poderosos, a inutilidade e crueldade da
guerra, sobretudo em nome de Deus, e a perseguição religiosa.
Com a idade de 85 anos, Bento XVI foi o primeiro Papa
em sete séculos a renunciar ao cargo. No anúncio que fez da sua intenção de
proceder àquele ato, dali a dezassete dias (de 11 a 28 de fevereiro), explicou que não se sentia em condições “físicas e
do espírito” para responder aos desafios de um mundo em rápida mudança, numa
decisão histórica mal compreendida por alguns dos prelados, mas elogiada por
tantos quase como se fosse a única atitude meritória que tomara.
A 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI anunciou aos
cardeais a demissão, efetiva a 28 de fevereiro – “uma decisão tomada livremente,
sem qualquer pressão”, sublinha o arcebispo Georg Ganswein, seu secretário
particular e também Prefeito da Casa Pontifícia no pontificado de Francisco.
Durante esse período de tempo, teve encontros de grande conteúdo e afeto com os
peregrinos a São Pedro (sobretudo nas audiências gerais), com os cardeais, com a Cúria Romana e com o clero
da diocese de Roma e produziu ainda um Motu
próprio para agilizar alguns procedimentos do conclave, dado que o seguinte
iria ocorrer não por motivo do óbito do Pontífice.
A 28 de fevereiro de 2013, um helicóptero levou o papa
emérito do Vaticano para a residência pontifícia de CastelGandolfo, no sul de
Roma, onde se despediu da multidão, que o aclamava.
Bento XVI foi rapidamente esquecido da opinião
publicada, em benefício do sucessor Francisco, que conquistou os fiéis e a
imprensa, mas o emérito continua a ser uma referência no Vaticano e na Igreja.
***
Feito papa aos 78 anos, Ratzinger foi o primeiro
alemão a chefiar a Igreja Católica em muitos séculos e um seguidor da linha
mais dogmática da Igreja, numa solução de continuidade do papado de João Paulo
II, um pouco ao invés daquilo que mostrava por ocasião dos trabalhos conciliares
como perito, mas agora como paladino duma leitura do Vaticano II tida como mais
ortodoxa.
Com um complexo de ideias que frequentemente chocam
com as correntes liberais do país de origem em matéria teológica, o nome de Ratzinger,
que Paulo VI fez sucessivamente bispo auxiliar de Munique e depois arcebispo (da mesma arquidiocese) e cardeal, surgiu em muitas das polémicas no seio da
Igreja Católica por tentar travar as tentativas de reforma dos correligionários
mais progressistas, como Hans Küng e mesmo Bernard Häring ou o cardeal Karl
Lehmann, presidente da Conferência Episcopal alemã.
Depois do anúncio da renúncia, melhor no próprio dia da
renúncia, Bento XVI prometeu aos cardeais respeitar o sucessor e obedecer-lhe incondicionalmente:
E entre vós, entre o Colégio Cardinalício, está também o
futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha reverência e obediência
incondicionadas (Da saudação de despedida
aos cardeais presentes em Roma, 28 de fevereiro de 2013).
A 13 de março de 2013, duas semanas após a renúncia do
papa teólogo e pastor – “uma renúncia
expressa livremente, sem qualquer pressão”, segundo palavras do seu secretário
particular e do próprio renunciante – a Igreja Católica elegeu Francisco,
primeiro papa do hemisfério sul, sensação planetária imediata graças à
capacidade de afastar, com alguns gestos, as pompas vaticanas que, segundo
dizem, o antecessor respeitava escrupulosamente.
Bento XVI prometeu, como se disse acima, não se
imiscuir nos assuntos do sucessor e manteve a sua palavra. Instalado no
Vaticano, no mosteiro Mater Ecclesiae,
o papa emérito lê e reza, recebe algumas visitas, sobretudo de teólogos e
prelados, passeia nos jardins e toca piano. Para sublinhar que já não é papa,
pediu aos interlocutores alemães que o chamem “padre Bento” e não “Santo Padre”.
Leal como é, não critica o sucessor. Francisco, por seu turno, telefona-lhe
regularmente, visita-o algumas vezes, mesmo com alguma notoriedade, convida-o
em várias ocasiões. Para o papa argentino a presença de Bento XVI no Vaticano é
como a de “um avô numa casa”, que dá um conselho sábio quando lho solicitam.
De vez em quando vêm à tona de alguma Comunicação
Social algumas vozes da pretensa existência de um “duplo poder” ou de uma “concorrência
surda” entre os “dois papas”, sempre e atempadamente desmentidas.
O vaticanista Andrea Tornielli afiança que “Bento XVI
é discreto. Quando aparece em público, é a pedido de Francisco. A situação não
deixa de ser uma novidade: um papa retirado recebe visitas a algumas centenas
de metros do papa em exercício”.
O seu secretário particular assinala que, dois anos
depois de ter anunciado a decisão histórica de se demitir, Bento XVI continua,
aos 88 anos, a tocar Mozart no piano (e outras
peças que lhe vêm à mente, que ele toca de memória) e, embora tenha
alguns problemas com as pernas, “a sua cabeça funciona perfeitamente”,
como que a contrariar a falta do “vigor quidam
corporis et animae necessarius” de que
falava na declaração de renúncia.
Numa entrevista ao jornal Corriere della Sera, o
arcebispo alemão Georg Ganswein, seu secretário particular e responsável pela
organização dos encontros oficiais de Francisco, alude ao ritmo “muito metódico”
do papa emérito no antigo mosteiro 'Mater Ecclesiae', numa colina do Vaticano. O
papa emérito e o sucessor “são diferentes, às vezes muito diferentes. Mas têm
em comum a substância, o 'depositum fidei' (o conteúdo da fé), para anunciar, defender e promover”.
***
Além do que acima foi referido,
o legado do relativamente breve pontificado de Bento XVI espelha-se em três
encíclicas e na preparação de uma quarta assumida e publicada apelo sucessor; em
quatro exortações apostólicas (três delas pós-sinodais); nas dezassete cartas
apostólicas; nos onze documentos Motu
Proprio; no compêndio do Catecismo da Igreja Católica, na criação do Pontifício
Conselho para a Promoção da Nova Evangelização; em dezoito orações emblemáticas;
em dezenas e dezenas de constituições apostólicas, cartas, mensagens e discursos;
na delegação de competências e tarefas; e, apesar de algumas contradições, no
impulso ao movimento ecuménico e ao diálogo inter-religioso e com os não
crentes. Recebia todos os anos o Prior de Taizé e chegou a declarar que talvez
fosse conveniente repensar o exercício do ministério petrino.
Um património doutrinal,
disciplinar e cultural a ter em conta e a incorporar. Não se joga fora um Pontificado
deste jaez!
Sem comentários:
Enviar um comentário