domingo, 19 de abril de 2015

Bento XVI foi eleito Papa há precisamente dez anos

Faz justamente hoje, dia 19 de abril, dez anos que o cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, até então decano do Sacro Colégio e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – e, por este motivo, considerado o guardião da doutrina católica – foi eleito o 65.º Papa, logo no entardecer do segundo dia do conclave, em que assumiu o nome de Bento XVI.
A sua primeira saudação aos peregrinos e curiosos reunidos na Praça de São Pedro, antes da sua primeira bênção apostólica Urbi et Orbi, foi tão simples e sintética que dá para transcrever na íntegra:
Depois do grande Papa João Paulo II, os Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor. Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes. E, sobretudo, recomendo-me às vossas orações.
Na alegria do Senhor Ressuscitado, confiantes na sua ajuda permanente, vamos em frente. O Senhor ajudar-nos-á. Maria, sua Mãe Santíssima, está connosco. Obrigado!
Quando o Papa Francisco se recomendou às orações dos fiéis antes de conceder a sua bênção, poucos se lembraram de que Bento fizera coisa semelhante, embora sem aquele carisma que suscita a empatia das multidões, assim como também fez uma referência elogiosa ao seu antecessor. Porém é de registar a consciência de que Deus “sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes” e a referência explícita ao fundamental da fé, “na alegria do Senhor Ressuscitado” e a evocação da presença materna de Maria.
Ficará Bento XVI na História dos pontificados romanos como um Papa teólogo e professor – o que também neste âmbito lhe granjeou algumas antipatias, dado que não é fácil os homens da funda ciência, mesmo teológica, estarem de acordo em tudo. Mas escreveu obra teológica pessoal e manteve encontros com seus antigos alunos durante a vigência do seu pontificado, sua sponte disponível para a crítica e a contestação.
No entanto – e apesar de ser olhado de soslaio por alguns pelo facto de ter proscrito a maior parte das teses da teologia da libertação por alegada consonância com o marxismo, de haver silenciado alguns dos seus confrades em matéria teológica e terem eclodido, nos seus quase oito anos de sumo pontificado, as principais polémicas e escândalos sobre pedofilia (e outros abusos sexuais de menores) por parte de clérigos, alguns deles notáveis, corrupção e fuga de documentos confidenciais – não se pode subestimar a sua palavra de orientação na promoção da doutrina, no combate à ditadura do relativismo e do culto do provisório, na denúncia das desigualdades e da ostracização dos pobres, na defesa da nova ordem internacional no âmbito da justiça, da economia e da economia e no incentivo à denodada ação pastoral e apostólica.
O que se afirma de Ratzinguer sobre rigidez teológica é contradito pela lucidez pastoral, pela cultura da relação de proximidade e de afeto, pela atenção aos mais diversos pormenores e pelos trilhos da via puclchritudinis. Ademais, foi o Pontífice que provocou, num curto espaço de tempo, na Igreja forte e alargada reflexão com a proclamação do Ano Paulino, do Ano Sacerdotal e do Ano da Fé. Por outro lado, imprimiu um modo pessoal de acompanhar as jornadas mundiais da juventude, os sínodos dos bispos, a pastoral da família, as questões culturais, a diplomacia da Santa Sé, as 24 viagens apostólica fora de Itália e umas 30 em Itália.
É pena que incidentes como o sucedido em Ratisbona, o levantamento da excomunhão a um bispo da Fraternidade de São Pio X, que, entretanto, negara a existência do holocausto, ou a displicência pela eficácia do preservativo no combate ao vírus do HIV tenham ofuscado muitas das suas boas iniciativas e a invectiva clara e ousada contra a opressão de alguns governos sobre as populações, a corrupção ao mais alto nível, o enriquecimento abusivo dos poderosos, a inutilidade e crueldade da guerra, sobretudo em nome de Deus, e a perseguição religiosa.
Com a idade de 85 anos, Bento XVI foi o primeiro Papa em sete séculos a renunciar ao cargo. No anúncio que fez da sua intenção de proceder àquele ato, dali a dezassete dias (de 11 a 28 de fevereiro), explicou que não se sentia em condições “físicas e do espírito” para responder aos desafios de um mundo em rápida mudança, numa decisão histórica mal compreendida por alguns dos prelados, mas elogiada por tantos quase como se fosse a única atitude meritória que tomara.
A 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI anunciou aos cardeais a demissão, efetiva a 28 de fevereiro – “uma decisão tomada livremente, sem qualquer pressão”, sublinha o arcebispo Georg Ganswein, seu secretário particular e também Prefeito da Casa Pontifícia no pontificado de Francisco. Durante esse período de tempo, teve encontros de grande conteúdo e afeto com os peregrinos a São Pedro (sobretudo nas audiências gerais), com os cardeais, com a Cúria Romana e com o clero da diocese de Roma e produziu ainda um Motu próprio para agilizar alguns procedimentos do conclave, dado que o seguinte iria ocorrer não por motivo do óbito do Pontífice.
A 28 de fevereiro de 2013, um helicóptero levou o papa emérito do Vaticano para a residência pontifícia de CastelGandolfo, no sul de Roma, onde se despediu da multidão, que o aclamava.
Bento XVI foi rapidamente esquecido da opinião publicada, em benefício do sucessor Francisco, que conquistou os fiéis e a imprensa, mas o emérito continua a ser uma referência no Vaticano e na Igreja.
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Feito papa aos 78 anos, Ratzinger foi o primeiro alemão a chefiar a Igreja Católica em muitos séculos e um seguidor da linha mais dogmática da Igreja, numa solução de continuidade do papado de João Paulo II, um pouco ao invés daquilo que mostrava por ocasião dos trabalhos conciliares como perito, mas agora como paladino duma leitura do Vaticano II tida como mais ortodoxa.
Com um complexo de ideias que frequentemente chocam com as correntes liberais do país de origem em matéria teológica, o nome de Ratzinger, que Paulo VI fez sucessivamente bispo auxiliar de Munique e depois arcebispo (da mesma arquidiocese) e cardeal, surgiu em muitas das polémicas no seio da Igreja Católica por tentar travar as tentativas de reforma dos correligionários mais progressistas, como Hans Küng e mesmo Bernard Häring ou o cardeal Karl Lehmann, presidente da Conferência Episcopal alemã.
Depois do anúncio da renúncia, melhor no próprio dia da renúncia, Bento XVI prometeu aos cardeais respeitar o sucessor e obedecer-lhe incondicionalmente:
E entre vós, entre o Colégio Cardinalício, está também o futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha reverência e obediência incondicionadas (Da saudação de despedida aos cardeais presentes em Roma, 28 de fevereiro de 2013).
A 13 de março de 2013, duas semanas após a renúncia do papa teólogo e pastor – “uma renúncia expressa livremente, sem qualquer pressão”, segundo palavras do seu secretário particular e do próprio renunciante – a Igreja Católica elegeu Francisco, primeiro papa do hemisfério sul, sensação planetária imediata graças à capacidade de afastar, com alguns gestos, as pompas vaticanas que, segundo dizem, o antecessor respeitava escrupulosamente.
Bento XVI prometeu, como se disse acima, não se imiscuir nos assuntos do sucessor e manteve a sua palavra. Instalado no Vaticano, no mosteiro Mater Ecclesiae, o papa emérito lê e reza, recebe algumas visitas, sobretudo de teólogos e prelados, passeia nos jardins e toca piano. Para sublinhar que já não é papa, pediu aos interlocutores alemães que o chamem “padre Bento” e não “Santo Padre”. Leal como é, não critica o sucessor. Francisco, por seu turno, telefona-lhe regularmente, visita-o algumas vezes, mesmo com alguma notoriedade, convida-o em várias ocasiões. Para o papa argentino a presença de Bento XVI no Vaticano é como a de “um avô numa casa”, que dá um conselho sábio quando lho solicitam.
De vez em quando vêm à tona de alguma Comunicação Social algumas vozes da pretensa existência de um “duplo poder” ou de uma “concorrência surda” entre os “dois papas”, sempre e atempadamente desmentidas.
O vaticanista Andrea Tornielli afiança que “Bento XVI é discreto. Quando aparece em público, é a pedido de Francisco. A situação não deixa de ser uma novidade: um papa retirado recebe visitas a algumas centenas de metros do papa em exercício”.
O seu secretário particular assinala que, dois anos depois de ter anunciado a decisão histórica de se demitir, Bento XVI continua, aos 88 anos, a tocar Mozart no piano (e outras peças que lhe vêm à mente, que ele toca de memória) e, embora tenha alguns problemas com as pernas, “a sua cabeça funciona perfeitamente”, como que a contrariar a falta do “vigor quidam corporis et animae necessarius de que falava na declaração de renúncia.
Numa entrevista ao jornal Corriere della Sera, o arcebispo alemão Georg Ganswein, seu secretário particular e responsável pela organização dos encontros oficiais de Francisco, alude ao ritmo “muito metódico” do papa emérito no antigo mosteiro 'Mater Ecclesiae', numa colina do Vaticano. O papa emérito e o sucessor “são diferentes, às vezes muito diferentes. Mas têm em comum a substância, o 'depositum fidei' (o conteúdo da fé), para anunciar, defender e promover”.
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Além do que acima foi referido, o legado do relativamente breve pontificado de Bento XVI espelha-se em três encíclicas e na preparação de uma quarta assumida e publicada apelo sucessor; em quatro exortações apostólicas (três delas pós-sinodais); nas dezassete cartas apostólicas; nos onze documentos Motu Proprio; no compêndio do Catecismo da Igreja Católica, na criação do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização; em dezoito orações emblemáticas; em dezenas e dezenas de constituições apostólicas, cartas, mensagens e discursos; na delegação de competências e tarefas; e, apesar de algumas contradições, no impulso ao movimento ecuménico e ao diálogo inter-religioso e com os não crentes. Recebia todos os anos o Prior de Taizé e chegou a declarar que talvez fosse conveniente repensar o exercício do ministério petrino.

Um património doutrinal, disciplinar e cultural a ter em conta e a incorporar. Não se joga fora um Pontificado deste jaez!

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