O
enunciado em epígrafe constitui uma tentativa de adaptação ao status hodierno do velho provérbio que
a sabedoria popular plasmou na memória coletiva e que parece estender a todos a
inevitável penúria de razão, quando falta o pão e tudo o que este elemento
fundamental da alimentação se torna supinamente ausente dos lares, sobretudo
daqueles que já conheceram melhores dias.
Marcelo
Rebelo de Sousa, com José Alberto de Carvalho, na charla televisiva do passado
domingo, dia 19 de abril, tentou reformular o provérbio “casa onde não há pão,
todos ralham e ninguém tem razão” resultando outro mais adequado, “casa onde
não há pão, todos ralham e batem e ninguém tem razão” ou “casa onde não há pão,
todos ralham e bate quem pode e ninguém tem razão”.
É
óbvio que nem Marcelo, com seu perfil académico de alto coturno, nem José
Alberto, com todo o seu poder comunicacional, e muito menos eu, que não passo
de um teimoso empedernido, temos estofo suficiente de sabedoria haurida do
coração do povo para inventarmos ou reinventarmos um provérbio como aqueles que
já suportaram a crestação de séculos e resistiram à erosão do tempo.
A
tentativa de Marcelo e de José Alberto pretendia explicar a onda de violência
doméstica que, sobretudo nos últimos tempos, se exprime no assassinato de
crianças em idades muito tenras perpetrado por padrastos, pais e mães, o
femicídio e a crescente violência no namoro. Por outro lado, verifica-se a notória
intensificação do combate à violência doméstica por vários meios,
evidenciando-se a sinalização à respetiva Comissão Concelhia de Proteção de
Crianças e Jovens (CPCJ) em perigo e/ou a comunicação à associação de apoio à vitima de
violência doméstica (APAV). Também os números parecem apontar para algum decréscimo da
quantidade no crime organizado, mas, em contrapartida para a cumulação de
violência em cada crime cometido.
Porém,
reduzir a origem desta situação psicossocial à crise económico-financeira
revela-se extremamente redutor e manifestamente insuficiente. Mas ela tem de
ser tida em consideração. A situação drástica de pobreza, sobretudo para quem
já viveu desafogadamente; a perda efetiva do emprego, sobretudo se atinge ambos
os membros do casal, ou a iminência da sua perda; o ónus da precariedade ou a
sobrecarga de trabalho, tantas vezes prestado em condições infra-humanas e
atentatórias da dignidade humana, social e profissional (veja-se o caso das
lactentes que foram coagidas à prova do leite ou o das mulheres que tiveram que
se a comprometer a não engravidar); e o aumento do horário de trabalho e o tempo
de vida ativa, secundado pelo abaixamento de salários e de pensões – todos
estes são fatores de instabilidade psicossocial que se abate sobre a pessoa e
sobre a família, começando pelos mais próximos e que não ofereçam resistência.
Mas
os contornos do crime contra indefesos visíveis nos últimos tempos não são
explicáveis somente pelos dados da crise
económica-financeira-social-psicológica. Temos que chamar as coisas pelos seus
nomes. É a falta de valores éticos. Quem se habituou a dispor do dinheiro para
resolver todas as situações de insuficiência, incluindo a conquista de um lugar
de trabalho, a satisfação de prazeres ou a exposição pública de mando ou de
prestígio, não resiste aos fortes impactos da crise na convivência ou na
relação familiar e grupal. Quem não reconhece a liberdade dos outros ou se
habituou a afrontar a autoridade do Estado ou dos dirigentes no trabalho, nas
associações e sociedades, quem se habituou a ter tudo e a de tudo dispor a seu
bel-prazer, é óbvio que não admite ser contrariado.
Ademais,
um Estado que não sabe granjear o acatamento da sua autoridade e dos seus
agentes ou deixa impunemente campear a impunidade, o facilitismo ou a
banalização das instituições, desautorizando quem pugna pela ordem, pela regra,
pela exigência e pela ética torna-se responsável pela existência das situações
caóticas emergentes e pelos comportamentos desviantes dos cidadãos, sobretudo se
banaliza a cidadania e a ação política. E, se os altos dirigentes do Estado, em
vez de servirem, se locupletam, se faltam ao que prometem, se caem nas malhas
da corrupção e do abuso do poder ou se não pagam os seus impostos e
contribuições, vêm depois lamentar-se de quê? Do mau exemplo que dão?
***
De
há uns anos a esta parte, o país entrou em poderoso défice de confiança
coletiva, seja pelo lado da economia, em especial na falta do investimento
público e privado, seja do lado da política e da governança, seja do lado da justiça,
das forças armadas, do fisco e da autoridade em geral. A este ambiente não
escapa nenhum dos setores da vida pública ou privada, desde a saúde à educação,
da polícia aos tribunais, da segurança social às forças armadas. É comum
dizer-se que os sucessivos governos menosprezam as forças armadas e não fazem
da justiça uma prioridade. Cresce a desresponsabilização do Estado pela
educação, pela saúde e, pelos vistos, pela segurança social (basta que se perca a
maior parte do tempo a apregoar a sua insustentabilidade); subestima-se a
autoridade da polícia, degrada-se a formação militar, afrouxa-se a lecionação
nas escolas, pela sobrecarga de trabalho docente, desautorização dos docentes e
desacreditação das suas funções e do seu perfil. Atacam-se os funcionários
públicos, veda-se a inscrição na CGA e desmotiva-se a inscrição na ADSE. Depois,
prega-se o alto custo de pensões e de gastos na saúde dos servidores do Estado!
É a brincadeira governativa…
É
óbvio que nesta “Casa” nem todos têm razão. Há mesmo os culpados. Mais: a maior
parte já nem ralha; tem medo de ser apontada, de perder o emprego. É que a
avaliação de desempenho, que se torna cada vez mais determinante, constitui, em
muitos dos casos, uma verdadeira farsa.
***
O
comboio, ora TGV, vem de estação bem longínqua, passando por umas tantas bem
significativas: um governante menosprezou uma tolerância de ponto e, ante
forças de bloqueio ditas incontornáveis, assumiu não se candidatar mais a chefe
de partido e de governo; outro, alegando não querer ver o país à beira do
pântano, em consequência de derrota em eleições autárquicas, demitiu-se e, mais
tarde, foi tratar de todos os refugiados do mundo; o sucessor, garantindo o
choque fiscal pela diminuição dos impostos, afirmou, no debate parlamentar de
apresentação do seu programa de governo, que o país estava de tanga, e, em vez
de baixar impostos, aumentou o IVA em dois pontos percentuais, passando a ler
os maus resultados de eleições europeias com a ida para a presidência da
comissão da UE; o continuador da legislatura, com o anúncio do possível
encerramento da refinaria de Matosinhos e a metáfora da incubadora, sofreu de
interrupção involuntária do voo governativo, em resultado da bomba atómica
dissolvente de parlamento de alegada maioria política. E o socrático protagonista
da governação durante mais de seis anos, de choque em choque – o da alteração
da idade e cálculo da aposentação, o da desastrada reforma educativa contra os
professores, mas com os pais, o da reestruturação da administração pública, o
da revisão das bases da segurança interna e da segurança social ou o da
reposição das forças armadas – assumindo que a situação era bem diferente do
que pensavam, aumentou o IVA em mais dois pontos percentuais, reduziu
drasticamente o défice das contas públicas, pelos vistos à custa dos que sempre
pagam, e multiplicou os programas setoriais, acabando por colocar o país sob
proteção externa, acolitado por Portas e Passos; e o atual governante mor,
fazendo tábua rasa do que prometeu, instalou no país e nas famílias o caos
austeritário, a espiral recessiva, a situação explosiva, o êxodo dos cérebros, o
aumento brutal dos impostos querendo agora fazer crer que o país está melhor
porque a troika se foi embora.
***
Porém,
a confiança ausentou-se (espera-se que não de vez), porque ninguém despiu o país da tanga que
tinha, para, depois de lavado e limpo, o enroupar contra as intempéries
internas ou os tufões adventícios. E, concomitantemente às crises
internacionais, Portugal de estagnação e, mesmo recessão económica, e
esfacelamento no setor financeiro passou a crescimento económico facial anémico
e os grupos sociais e económicos mais sensíveis entraram em erupção e mesmo em
desconjuntamento. Presentemente, depois que militares, policias, professores e
funcionários públicos abrandaram a contestação nas ruas, estão na ribalta da
ação contestatária os prejudicados do BES, os trabalhadores da ferrovia e os
pilotos.
Por
seu turno, os bulldozers governamentais, empurrados por doutas iluminações
ditas tecnocientíficas, não olham para quem está à frente, tentam levar tudo
por diante…
Enquanto
isto, a par do grupo dos cidadãos que cresce vergastados pelas dificuldades
económicas, cada vez mais agravadas, o escol dos ditos privilegiados diminui,
mas com o engrossamento do pecúlio e proliferação de mordomias por aqui e por
ali (veja-se,
por exemplo, o que se passa com a administração da RTP, os administradores do
BPI e os colaboradores no Banco de Portugal).
No
espectro internacional, as crises têm visitado um pouco os recantos do orbe. E,
ao lado das potências emergentes, somam-se as dificuldades de subsistência das
classes médias resultantes, em parte, da descida de juros decidida pelo BCE,
sucessora da escandalosa subida antes decretada pelos bancos centrais; aumenta
o número dos pobres e a intensidade da pobreza; estala a crise generalizada dos
combustíveis, cuja drástica decida de preço se sucede à desenfreada subida que
tanto custou a famílias e povos; e irrompe o abalo financeiro, a ponto de os
governos terem de intervir para garantia da sustentabilidade de algumas
unidades bancárias, evitando a contaminação de todo o sistema.
Mas,
tanto na casa nacional à beira do caos psicossocial como na ecocasa dos
cidadãos do mundo, perante as diversas modulações da crise, não se trata de
ninguém ter razão. Trata-se, sim, de apurar ou não responsabilidades, sejam
elas políticas, comerciais, financeiras, económicas, comunicacionais ou mesmo
criminais. Não se atribua somente ao capitalismo ou ao estatismo as culpas.
Apurem-se as responsabilidades de quem quer que seja e castiguem-se os
culpados. As responsabilidades têm rosto, mesmo que esteja tapado!
A
razão existe. E está do lado daqueles que pagam, dos que pagam com mais
impostos, com mais tempo de trabalho, com fé na propaganda, com mais
constrições de toda a ordem, com pior serviço público, com desemprego, com
falta de apoio na doença ou na velhice.
Por
isso, em vez do provérbio tradicional ou das diversas tentativas da sua
reescrita, perfilho o aforismo reformulado e na interrogativa: “Casa onde não
há pão, os culpados onde estão?”.
Sem comentários:
Enviar um comentário