terça-feira, 21 de abril de 2015

Todos ralham e muitos batem...

O enunciado em epígrafe constitui uma tentativa de adaptação ao status hodierno do velho provérbio que a sabedoria popular plasmou na memória coletiva e que parece estender a todos a inevitável penúria de razão, quando falta o pão e tudo o que este elemento fundamental da alimentação se torna supinamente ausente dos lares, sobretudo daqueles que já conheceram melhores dias.
Marcelo Rebelo de Sousa, com José Alberto de Carvalho, na charla televisiva do passado domingo, dia 19 de abril, tentou reformular o provérbio “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão” resultando outro mais adequado, “casa onde não há pão, todos ralham e batem e ninguém tem razão” ou “casa onde não há pão, todos ralham e bate quem pode e ninguém tem razão”.
É óbvio que nem Marcelo, com seu perfil académico de alto coturno, nem José Alberto, com todo o seu poder comunicacional, e muito menos eu, que não passo de um teimoso empedernido, temos estofo suficiente de sabedoria haurida do coração do povo para inventarmos ou reinventarmos um provérbio como aqueles que já suportaram a crestação de séculos e resistiram à erosão do tempo.
A tentativa de Marcelo e de José Alberto pretendia explicar a onda de violência doméstica que, sobretudo nos últimos tempos, se exprime no assassinato de crianças em idades muito tenras perpetrado por padrastos, pais e mães, o femicídio e a crescente violência no namoro. Por outro lado, verifica-se a notória intensificação do combate à violência doméstica por vários meios, evidenciando-se a sinalização à respetiva Comissão Concelhia de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) em perigo e/ou a comunicação à associação de apoio à vitima de violência doméstica (APAV). Também os números parecem apontar para algum decréscimo da quantidade no crime organizado, mas, em contrapartida para a cumulação de violência em cada crime cometido.
Porém, reduzir a origem desta situação psicossocial à crise económico-financeira revela-se extremamente redutor e manifestamente insuficiente. Mas ela tem de ser tida em consideração. A situação drástica de pobreza, sobretudo para quem já viveu desafogadamente; a perda efetiva do emprego, sobretudo se atinge ambos os membros do casal, ou a iminência da sua perda; o ónus da precariedade ou a sobrecarga de trabalho, tantas vezes prestado em condições infra-humanas e atentatórias da dignidade humana, social e profissional (veja-se o caso das lactentes que foram coagidas à prova do leite ou o das mulheres que tiveram que se a comprometer a não engravidar); e o aumento do horário de trabalho e o tempo de vida ativa, secundado pelo abaixamento de salários e de pensões – todos estes são fatores de instabilidade psicossocial que se abate sobre a pessoa e sobre a família, começando pelos mais próximos e que não ofereçam resistência.
Mas os contornos do crime contra indefesos visíveis nos últimos tempos não são explicáveis somente pelos dados da crise económica-financeira-social-psicológica. Temos que chamar as coisas pelos seus nomes. É a falta de valores éticos. Quem se habituou a dispor do dinheiro para resolver todas as situações de insuficiência, incluindo a conquista de um lugar de trabalho, a satisfação de prazeres ou a exposição pública de mando ou de prestígio, não resiste aos fortes impactos da crise na convivência ou na relação familiar e grupal. Quem não reconhece a liberdade dos outros ou se habituou a afrontar a autoridade do Estado ou dos dirigentes no trabalho, nas associações e sociedades, quem se habituou a ter tudo e a de tudo dispor a seu bel-prazer, é óbvio que não admite ser contrariado.
Ademais, um Estado que não sabe granjear o acatamento da sua autoridade e dos seus agentes ou deixa impunemente campear a impunidade, o facilitismo ou a banalização das instituições, desautorizando quem pugna pela ordem, pela regra, pela exigência e pela ética torna-se responsável pela existência das situações caóticas emergentes e pelos comportamentos desviantes dos cidadãos, sobretudo se banaliza a cidadania e a ação política. E, se os altos dirigentes do Estado, em vez de servirem, se locupletam, se faltam ao que prometem, se caem nas malhas da corrupção e do abuso do poder ou se não pagam os seus impostos e contribuições, vêm depois lamentar-se de quê? Do mau exemplo que dão?
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De há uns anos a esta parte, o país entrou em poderoso défice de confiança coletiva, seja pelo lado da economia, em especial na falta do investimento público e privado, seja do lado da política e da governança, seja do lado da justiça, das forças armadas, do fisco e da autoridade em geral. A este ambiente não escapa nenhum dos setores da vida pública ou privada, desde a saúde à educação, da polícia aos tribunais, da segurança social às forças armadas. É comum dizer-se que os sucessivos governos menosprezam as forças armadas e não fazem da justiça uma prioridade. Cresce a desresponsabilização do Estado pela educação, pela saúde e, pelos vistos, pela segurança social (basta que se perca a maior parte do tempo a apregoar a sua insustentabilidade); subestima-se a autoridade da polícia, degrada-se a formação militar, afrouxa-se a lecionação nas escolas, pela sobrecarga de trabalho docente, desautorização dos docentes e desacreditação das suas funções e do seu perfil. Atacam-se os funcionários públicos, veda-se a inscrição na CGA e desmotiva-se a inscrição na ADSE. Depois, prega-se o alto custo de pensões e de gastos na saúde dos servidores do Estado! É a brincadeira governativa…
É óbvio que nesta “Casa” nem todos têm razão. Há mesmo os culpados. Mais: a maior parte já nem ralha; tem medo de ser apontada, de perder o emprego. É que a avaliação de desempenho, que se torna cada vez mais determinante, constitui, em muitos dos casos, uma verdadeira farsa.
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O comboio, ora TGV, vem de estação bem longínqua, passando por umas tantas bem significativas: um governante menosprezou uma tolerância de ponto e, ante forças de bloqueio ditas incontornáveis, assumiu não se candidatar mais a chefe de partido e de governo; outro, alegando não querer ver o país à beira do pântano, em consequência de derrota em eleições autárquicas, demitiu-se e, mais tarde, foi tratar de todos os refugiados do mundo; o sucessor, garantindo o choque fiscal pela diminuição dos impostos, afirmou, no debate parlamentar de apresentação do seu programa de governo, que o país estava de tanga, e, em vez de baixar impostos, aumentou o IVA em dois pontos percentuais, passando a ler os maus resultados de eleições europeias com a ida para a presidência da comissão da UE; o continuador da legislatura, com o anúncio do possível encerramento da refinaria de Matosinhos e a metáfora da incubadora, sofreu de interrupção involuntária do voo governativo, em resultado da bomba atómica dissolvente de parlamento de alegada maioria política. E o socrático protagonista da governação durante mais de seis anos, de choque em choque – o da alteração da idade e cálculo da aposentação, o da desastrada reforma educativa contra os professores, mas com os pais, o da reestruturação da administração pública, o da revisão das bases da segurança interna e da segurança social ou o da reposição das forças armadas – assumindo que a situação era bem diferente do que pensavam, aumentou o IVA em mais dois pontos percentuais, reduziu drasticamente o défice das contas públicas, pelos vistos à custa dos que sempre pagam, e multiplicou os programas setoriais, acabando por colocar o país sob proteção externa, acolitado por Portas e Passos; e o atual governante mor, fazendo tábua rasa do que prometeu, instalou no país e nas famílias o caos austeritário, a espiral recessiva, a situação explosiva, o êxodo dos cérebros, o aumento brutal dos impostos querendo agora fazer crer que o país está melhor porque a troika se foi embora.
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Porém, a confiança ausentou-se (espera-se que não de vez), porque ninguém despiu o país da tanga que tinha, para, depois de lavado e limpo, o enroupar contra as intempéries internas ou os tufões adventícios. E, concomitantemente às crises internacionais, Portugal de estagnação e, mesmo recessão económica, e esfacelamento no setor financeiro passou a crescimento económico facial anémico e os grupos sociais e económicos mais sensíveis entraram em erupção e mesmo em desconjuntamento. Presentemente, depois que militares, policias, professores e funcionários públicos abrandaram a contestação nas ruas, estão na ribalta da ação contestatária os prejudicados do BES, os trabalhadores da ferrovia e os pilotos.
Por seu turno, os bulldozers governamentais, empurrados por doutas iluminações ditas tecnocientíficas, não olham para quem está à frente, tentam levar tudo por diante…
Enquanto isto, a par do grupo dos cidadãos que cresce vergastados pelas dificuldades económicas, cada vez mais agravadas, o escol dos ditos privilegiados diminui, mas com o engrossamento do pecúlio e proliferação de mordomias por aqui e por ali (veja-se, por exemplo, o que se passa com a administração da RTP, os administradores do BPI e os colaboradores no Banco de Portugal).
No espectro internacional, as crises têm visitado um pouco os recantos do orbe. E, ao lado das potências emergentes, somam-se as dificuldades de subsistência das classes médias resultantes, em parte, da descida de juros decidida pelo BCE, sucessora da escandalosa subida antes decretada pelos bancos centrais; aumenta o número dos pobres e a intensidade da pobreza; estala a crise generalizada dos combustíveis, cuja drástica decida de preço se sucede à desenfreada subida que tanto custou a famílias e povos; e irrompe o abalo financeiro, a ponto de os governos terem de intervir para garantia da sustentabilidade de algumas unidades bancárias, evitando a contaminação de todo o sistema.
Mas, tanto na casa nacional à beira do caos psicossocial como na ecocasa dos cidadãos do mundo, perante as diversas modulações da crise, não se trata de ninguém ter razão. Trata-se, sim, de apurar ou não responsabilidades, sejam elas políticas, comerciais, financeiras, económicas, comunicacionais ou mesmo criminais. Não se atribua somente ao capitalismo ou ao estatismo as culpas. Apurem-se as responsabilidades de quem quer que seja e castiguem-se os culpados. As responsabilidades têm rosto, mesmo que esteja tapado!
A razão existe. E está do lado daqueles que pagam, dos que pagam com mais impostos, com mais tempo de trabalho, com fé na propaganda, com mais constrições de toda a ordem, com pior serviço público, com desemprego, com falta de apoio na doença ou na velhice.

Por isso, em vez do provérbio tradicional ou das diversas tentativas da sua reescrita, perfilho o aforismo reformulado e na interrogativa: “Casa onde não há pão, os culpados onde estão?”.

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