A
ribalta pública tem sido em grande parte ocupada com os casos de crianças que
foram vítimas mortais de agressores familiares e que estavam sinalizadas há
mais de meio ano pelas respetivas Comissões Concelhias de Proteção de Crianças
e Jovens (CCPCJ),
cujo funcionamento e trabalho são fiscalizados pela Comissão Nacional de
Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR). Porém, esta fiscalização, no
dizer de Rute Coelho no DN de hoje,
tem-se revelado “insuficiente para detetar e corrigir falhas graves numa área
em que está em causa a vida de menores”.
Também
se diz que os casos de sinalização de há muito tempo acontecem sem que sejam
decretadas quaisquer medidas de proteção previstas na lei.
É
óbvio que está em causa o trabalho das comissões, mas não só. O debate
televisivo de ontem, dia 20, o “Prós e Contras” sobre a matéria foi
elucidativo, embora tenha havido momentos de certa nebulosidade, dado que a
moderadora não se conteve, como é seu hábito, com deixar seguir o raciocínio
dos intervenientes, tentando antecipar conclusões do mesmos ou fazendo
comentários que, por vezes, sugerem contradição com aquilo que cada um vem
afirmando.
O
presidente da CNPCJR entende que o sistema foi bem concebido e funciona, embora
com deficiências localizadas, declarou que se evoluiu bastante na proteção de
menores e aceita como necessária a regular autoavaliação do funcionamento e a
avaliação por entidade externa, tendo esta sido feita pela última vez em 2006.
No
entanto, houve quem tenha sugerido que este sistema tem de ser posto em causa,
mesmo que seja para que se mantenha nos seus termos essenciais, já que qualquer
sistema carece de autoavaliação permanente e de avaliação externa.
Quanto
aos testemunhos veiculados pelas comissões provindas de todo o país, eles
dividem-se em exemplos de trabalho árduo e em rede e em exemplos de pessoas
menos empenhadas, sem ligação a outras entidades e com marcas de algum
amadorismo, dado que alguns dos intervenientes não têm formação adequada para o
efeito. Mas ficaram no ar as questões da falta de meios para que as comissões
possam cumprir eficazmente a sua missão. Desde logo, a falta de formação de
alguns técnicos que integram as comissões, a retirada, sobretudo pela Segurança
Social, de técnicos que fizeram formação adequada e a falta de tomada de
medidas de proteção da parte de quem de direito.
É
de referir que, muito embora as Comissões tenham um papel relevante e autonomia
funcional, não lhes compete propriamente a tomada de decisões que vinculem
necessariamente os seus destinatários. As equipas de primeira linha serão
naturalmente os centros de saúde, as creches e infantários, as escolas, as
forças de segurança, as paróquias, algumas IPSS… Depois, da sinalização à CCPCJ
pela entidade que anote qualquer ocorrência excecional, por exemplo uma ida a
urgência reiterada com marcas corporais que façam levantar suspeição ou
episódios de violência escolar, cabe ao tribunal de família e menores (TFM) o
papel de maior relevo, mas sempre em diálogo com as outras entidades – o que
nem sempre acontece, dada a preponderância do papel tradicional dos tribunais.
António
Fialho, juiz Tribunal de Família e Menores do Barreiro, verifica (vd
DN, cit) que “alguns casos vêm com falhas ao nível da
sinalização inicial”, apontando o dedo sobretudo às escolas. Refere, ainda, que
as medidas a aplicar passam pelo acompanhamento do menor em risco integrado na
família e, nalguns casos, pelo internamento de crianças e jovens, retirando-os
às famílias. Diz que, muitas vezes, as famílias não aceitam o acompanhamento
dos técnicos.
Acresce
que muitas comissões nem sabem quem é o procurador de ligação entre a CCPCJ e o
TFM, quando ele deve fazer a visita à Comissão ao menos uma vez por ano.
O
presidente da CNPCJR, por um lado, enaltece o trabalho das comissões, por
outro, reconhece a falta de meios. No entanto, assegura a sensibilidade para a
matéria da parte de todos os partidos com assento parlamentar e do próprio
governo, que o presidente tem contactado assiduamente. Porém, os outros
intervenientes no predito debate, a que faltou a intervenção governamental e
mesmo a da Segurança Social, notável pela ausência, relevaram outros aspetos,
como a exiguidade das verbas destinadas à formação, o excesso de proteção em
situações menos gravosas (alguém disse que algumas crianças
são demasiado protegidas a ponto de se tornarem tiranetes em relação aos pais) e a deficiência de proteção em
circunstâncias graves, a solenidade que rodeia nalguns TFM as declarações das
crianças para memória futura, o facto de o Estado criar necessidades a que
depois nega a resposta adequada, situações nas CCPCJ decorrentes das
vicissitudes inerentes ao poder local (alguns autarcas
aplicam-se a sério, mas outros desconhecem os problemas e fazem-se representar
com demasiada facilidade, às vezes, por técnicos pouco preparados).
***
O sistema de proteção das crianças e jovens foi estabelecido pela Lei de Proteção de Crianças e jovens em
Perigo (LPCJP), aprovada Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, alterada pela Lei n.º
31/2003. Este ordenamento jurídico vem reforçar e consolidar a ação e a experiência
anteriores, nomeadamente as estabelecidas pelo DL n.º189/91, de 17 de maio, e
já pelas normas do DL n.º 314/78, de 27 de outubro, e mantém em vigor o DL n.º
98/98, de 18 de abril, que cria e regulamenta a CNPCJR.
Esta LPCJP, no seu artigo 3.º, define a legitimidade da intervenção e as
circunstâncias em que a criança ou o jovem (até aos 18
anos ou até aso 21, se for requerida a continuação do apoio iniciado antes dos
18) são considerados
em perigo.
Assim, o n.º 1, refere que “a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em
perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda
de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou
desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros
ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado
a removê-lo”.
Portanto, são várias as pessoas que podem ocasionar o risco para a criança
ou o jovem.
Também o n.º 2 do mesmo artigo considera que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se
encontra numa das seguintes situações:
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos
sexuais;
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação
pessoal;
d) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua
idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou
desenvolvimento;
e) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afectem
gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
f) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem
gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem
que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes
oponham de modo adequado a remover essa situação.
São de relevar como contraindicações a colocação do menor em mendicidade e
da exploração do trabalho (ambas contra a alínea d), a violência doméstica e o abuso sexual.
Do
artigo 4.º, que define os princípios da intervenção, saliento o da privacidade
e o da precocidade. Ou seja, a intervenção não deve ser publicitada para não
correr o risco de ser ineficaz e ofensiva do bom nome da criança ou jovem e da família;
e deve ser precoce, não vá acontecer que uma intervenção demasiado tardia já
não tenha qualquer utilidade.
Por outro lado, os artigos 9.º e 10.º fazem depender a intervenção das
Comissões do “consentimento expresso dos pais, do representante legal ou da
pessoa que tenha a guarda, de facto (art.º 9.º), bem como da não oposição da criança ou
do jovem com idade igual ou superior a 12 anos, devendo a oposição da criança
com idade inferior ser apreciada consoante a sua capacidade de entender o
sentido da intervenção (art.º 10.º).
Mas, no caso do predito não consentimento ou no da oposição referida, o
caso tem solução pelo lado da intervenção judicial, que também ocorrerá noutras
circunstâncias, conforme preceitua o art.º 11.º, ou seja, a intervenção
judicial tem lugar quando:
a) Não
esteja instalada CCPCJ com competência no município ou na freguesia da respetiva
área da residência ou ela não tenha competência, nos termos da lei, para aplicar
a medida de promoção e proteção adequada;
b) Não seja prestado ou seja retirado o consentimento necessário à
intervenção da CCPCJ ou quando o acordo de promoção de direitos e de proteção
seja reiteradamente não cumprido;
c) A criança ou o jovem se oponham legitimamente à intervenção da CCPCJ;
d) A CCPCJ não obtenha a disponibilidade dos meios necessários para aplicar
ou executar a medida que considere adequada, nomeadamente por oposição de um
serviço ou entidade;
e) Decorridos seis meses após o conhecimento da situação pela CCPCJ não
tenha sido proferida qualquer decisão;
f) O Ministério Público considere a decisão da CCPCJ ilegal ou inadequada à
promoção dos direitos ou à proteção da criança ou do jovem;
g) O tribunal decida a apensação do processo da CCPCJ ao processo judicial,
nos termos do n.º 2 do art.º 81.º, que estabelece que a dita apensação referida no número anterior só será
determinada relativamente ao processo de promoção e proteção a correr termos na
CCPCJ se o juiz, por despacho fundamentado, entender
que existe ou pode existir incompatibilidade das respetivas medidas ou
decisões.
***
Finalmente, é de referir quem integra as Comissões.
A comissão de proteção funciona em modalidade
alargada ou restrita, designadas habitualmente de comissão alargada e de comissão
restrita, respetivamente (art.º 16.º).
A comissão alargada, que funciona em
plenário ou por grupos de trabalho para assuntos específicos, devendo o plenário reunir com a periodicidade
exigida pelo cumprimento das suas funções, no mínimo de dois em dois meses (cf art.º 19.º), é composta por:
a) Um representante do município, a indicar pela
câmara municipal, ou das freguesias, a indicar por estas, no caso previsto no
n.º 2 do art.º 15.º [quando num município há mais que uma comissão], de entre
pessoas com especial interesse ou aptidão na área das crianças e jovens em
perigo;
b) Um representante da segurança social, de
preferência designado de entre técnicos com formação em serviço social,
psicologia ou direito;
c) Um representante dos serviços do Ministério da
Educação, de preferência professor com especial interesse e conhecimentos na
área das crianças e dos jovens em perigo;
d) Um médico, em representação dos serviços de
saúde;
e) Um representante das instituições particulares
de solidariedade social (IPSS) ou de outras organizações não governamentais que
desenvolvam, na área de competência territorial da comissão de proteção,
atividades de carácter não institucional, em meio natural de vida, destinadas a
crianças e jovens;
f) Um representante das IPSS ou de outras
organizações não governamentais que desenvolvam, na área de competência
territorial da CCPCJ, atividades em regime de colocação institucional de
crianças e jovens;
g) Um representante das associações de pais
existentes na área de competência da CCPCJ;
h) Um representante das associações ou outras
organizações privadas que desenvolvam, na área de competência da CCPCJ,
atividades desportivas, culturais ou recreativas destinadas a crianças e
jovens;
i) Um representante das associações de jovens
existentes na área de competência da CCPCJ ou um representante dos serviços de
juventude;
j) Um ou dois representantes das forças de
segurança, conforme na área de competência territorial da CCPCJ existam apenas
a GNR ou a PSP, ou ambas;
l) Quatro pessoas designadas pela assembleia
municipal, ou pela assembleia de freguesia, nos casos previstos no n.º 2 do art.º
15.º [quando num município há mais que uma comissão], de entre cidadãos
eleitores preferencialmente com especiais conhecimentos ou capacidades para
intervir na área das crianças e jovens em perigo;
m) Os técnicos que venham a ser cooptados pela comissão,
com formação, designadamente, em serviço social, psicologia, saúde ou direito,
ou cidadãos com especial interesse pelos problemas da infância e juventude. (vd
art.º 17.º).
A comissão restrita é composta sempre
por um número ímpar, nunca inferior a cinco dos membros que integram a comissão
alargada.
São seus membros, por inerência, o presidente da
comissão de proteção e os representantes do município ou das freguesias, no caso
previsto no n.º 2 do art.º 15.º [quando num município há mais que uma comissão], e
da segurança social, quando não exerçam a presidência.
Os restantes membros são designados pela comissão
alargada, devendo a designação de, pelo menos, um deles ser feita de entre os
representantes de instituições particulares de solidariedade social ou de
organizações não governamentais. Devem
ser escolhidos de forma que a Comissão tenha uma composição interdisciplinar e
interinstitucional, incluindo, sempre que possível, pessoas com formação nas
áreas de serviço social, psicologia, direito, educação e saúde.
Não sendo possível obter a composição nos termos
do número anterior, a designação dos membros aí referidos é feita por
cooptação, nomeadamente de entre os técnicos a que se refere a alínea m) do
art.º 17.º (cf art.º 20.º).
A comissão restrita funciona em permanência. O seu plenário reúne sempre que
convocado pelo presidente, no mínimo com periodicidade quinzenal, e distribui
entre os seus membros as diligências a efetuar nos processos de promoção dos
direitos e proteção das crianças e jovens em perigo. Os membros exercem funções em regime
de tempo completo ou de tempo parcial, a definir na respetiva portaria de
instalação.
Porém, a comissão restrita
funcionará sempre que se verifique situação qualificada de emergência que o
justifique. (cf art.º 22.º).
Ademais, as instalações e os meios materiais de
apoio, necessários ao funcionamento das CCPCJ são assegurados pelo respetivo
município.
A lei existe, embora já polvilhada de momentos de
especificação nem sempre mais adequados à celeridade e justeza das medidas que
a necessidade impõe, e de muita jurisprudência. Não é, assim, por falta de lei
que as crianças e jovens (até
aos 18 anos) morrem. Porque será então?
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