quarta-feira, 22 de abril de 2015

Proteção de Crianças e Jovens em Perigo. Que rumo?

A ribalta pública tem sido em grande parte ocupada com os casos de crianças que foram vítimas mortais de agressores familiares e que estavam sinalizadas há mais de meio ano pelas respetivas Comissões Concelhias de Proteção de Crianças e Jovens (CCPCJ), cujo funcionamento e trabalho são fiscalizados pela Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR). Porém, esta fiscalização, no dizer de Rute Coelho no DN de hoje, tem-se revelado “insuficiente para detetar e corrigir falhas graves numa área em que está em causa a vida de menores”.
Também se diz que os casos de sinalização de há muito tempo acontecem sem que sejam decretadas quaisquer medidas de proteção previstas na lei.
É óbvio que está em causa o trabalho das comissões, mas não só. O debate televisivo de ontem, dia 20, o “Prós e Contras” sobre a matéria foi elucidativo, embora tenha havido momentos de certa nebulosidade, dado que a moderadora não se conteve, como é seu hábito, com deixar seguir o raciocínio dos intervenientes, tentando antecipar conclusões do mesmos ou fazendo comentários que, por vezes, sugerem contradição com aquilo que cada um vem afirmando.
O presidente da CNPCJR entende que o sistema foi bem concebido e funciona, embora com deficiências localizadas, declarou que se evoluiu bastante na proteção de menores e aceita como necessária a regular autoavaliação do funcionamento e a avaliação por entidade externa, tendo esta sido feita pela última vez em 2006.
No entanto, houve quem tenha sugerido que este sistema tem de ser posto em causa, mesmo que seja para que se mantenha nos seus termos essenciais, já que qualquer sistema carece de autoavaliação permanente e de avaliação externa.
Quanto aos testemunhos veiculados pelas comissões provindas de todo o país, eles dividem-se em exemplos de trabalho árduo e em rede e em exemplos de pessoas menos empenhadas, sem ligação a outras entidades e com marcas de algum amadorismo, dado que alguns dos intervenientes não têm formação adequada para o efeito. Mas ficaram no ar as questões da falta de meios para que as comissões possam cumprir eficazmente a sua missão. Desde logo, a falta de formação de alguns técnicos que integram as comissões, a retirada, sobretudo pela Segurança Social, de técnicos que fizeram formação adequada e a falta de tomada de medidas de proteção da parte de quem de direito.
É de referir que, muito embora as Comissões tenham um papel relevante e autonomia funcional, não lhes compete propriamente a tomada de decisões que vinculem necessariamente os seus destinatários. As equipas de primeira linha serão naturalmente os centros de saúde, as creches e infantários, as escolas, as forças de segurança, as paróquias, algumas IPSS… Depois, da sinalização à CCPCJ pela entidade que anote qualquer ocorrência excecional, por exemplo uma ida a urgência reiterada com marcas corporais que façam levantar suspeição ou episódios de violência escolar, cabe ao tribunal de família e menores (TFM) o papel de maior relevo, mas sempre em diálogo com as outras entidades – o que nem sempre acontece, dada a preponderância do papel tradicional dos tribunais.
António Fialho, juiz Tribunal de Família e Menores do Barreiro, verifica (vd DN, cit) que “alguns casos vêm com falhas ao nível da sinalização inicial”, apontando o dedo sobretudo às escolas. Refere, ainda, que as medidas a aplicar passam pelo acompanhamento do menor em risco integrado na família e, nalguns casos, pelo internamento de crianças e jovens, retirando-os às famílias. Diz que, muitas vezes, as famílias não aceitam o acompanhamento dos técnicos.
Acresce que muitas comissões nem sabem quem é o procurador de ligação entre a CCPCJ e o TFM, quando ele deve fazer a visita à Comissão ao menos uma vez por ano.
O presidente da CNPCJR, por um lado, enaltece o trabalho das comissões, por outro, reconhece a falta de meios. No entanto, assegura a sensibilidade para a matéria da parte de todos os partidos com assento parlamentar e do próprio governo, que o presidente tem contactado assiduamente. Porém, os outros intervenientes no predito debate, a que faltou a intervenção governamental e mesmo a da Segurança Social, notável pela ausência, relevaram outros aspetos, como a exiguidade das verbas destinadas à formação, o excesso de proteção em situações menos gravosas (alguém disse que algumas crianças são demasiado protegidas a ponto de se tornarem tiranetes em relação aos pais) e a deficiência de proteção em circunstâncias graves, a solenidade que rodeia nalguns TFM as declarações das crianças para memória futura, o facto de o Estado criar necessidades a que depois nega a resposta adequada, situações nas CCPCJ decorrentes das vicissitudes inerentes ao poder local (alguns autarcas aplicam-se a sério, mas outros desconhecem os problemas e fazem-se representar com demasiada facilidade, às vezes, por técnicos pouco preparados).
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O sistema de proteção das crianças e jovens foi estabelecido pela Lei de Proteção de Crianças e jovens em Perigo (LPCJP), aprovada Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, alterada pela Lei n.º 31/2003. Este ordenamento jurídico vem reforçar e consolidar a ação e a experiência anteriores, nomeadamente as estabelecidas pelo DL n.º189/91, de 17 de maio, e já pelas normas do DL n.º 314/78, de 27 de outubro, e mantém em vigor o DL n.º 98/98, de 18 de abril, que cria e regulamenta a CNPCJR.
Esta LPCJP, no seu artigo 3.º, define a legitimidade da intervenção e as circunstâncias em que a criança ou o jovem (até aos 18 anos ou até aso 21, se for requerida a continuação do apoio iniciado antes dos 18) são considerados em perigo.
Assim, o n.º 1, refere que “a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”.
Portanto, são várias as pessoas que podem ocasionar o risco para a criança ou o jovem.
Também o n.º 2 do mesmo artigo considera que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: 
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria; 
b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; 
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; 
d) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; 
e) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; 
f) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
São de relevar como contraindicações a colocação do menor em mendicidade e da exploração do trabalho (ambas contra a alínea d), a violência doméstica e o abuso sexual.
Do artigo 4.º, que define os princípios da intervenção, saliento o da privacidade e o da precocidade. Ou seja, a intervenção não deve ser publicitada para não correr o risco de ser ineficaz e ofensiva do bom nome da criança ou jovem e da família; e deve ser precoce, não vá acontecer que uma intervenção demasiado tardia já não tenha qualquer utilidade.
Por outro lado, os artigos 9.º e 10.º fazem depender a intervenção das Comissões do “consentimento expresso dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda, de facto (art.º 9.º), bem como da não oposição da criança ou do jovem com idade igual ou superior a 12 anos, devendo a oposição da criança com idade inferior ser apreciada consoante a sua capacidade de entender o sentido da intervenção (art.º 10.º).
Mas, no caso do predito não consentimento ou no da oposição referida, o caso tem solução pelo lado da intervenção judicial, que também ocorrerá noutras circunstâncias, conforme preceitua o art.º 11.º, ou seja, a intervenção judicial tem lugar quando: 
a) Não esteja instalada CCPCJ com competência no município ou na freguesia da respetiva área da residência ou ela não tenha competência, nos termos da lei, para aplicar a medida de promoção e proteção adequada; 
b) Não seja prestado ou seja retirado o consentimento necessário à intervenção da CCPCJ ou quando o acordo de promoção de direitos e de proteção seja reiteradamente não cumprido; 
c) A criança ou o jovem se oponham legitimamente à intervenção da CCPCJ; 
d) A CCPCJ não obtenha a disponibilidade dos meios necessários para aplicar ou executar a medida que considere adequada, nomeadamente por oposição de um serviço ou entidade; 
e) Decorridos seis meses após o conhecimento da situação pela CCPCJ não tenha sido proferida qualquer decisão; 
f) O Ministério Público considere a decisão da CCPCJ ilegal ou inadequada à promoção dos direitos ou à proteção da criança ou do jovem; 
g) O tribunal decida a apensação do processo da CCPCJ ao processo judicial, nos termos do n.º 2 do art.º 81.º, que estabelece que a dita apensação referida no número anterior só será determinada relativamente ao processo de promoção e proteção a correr termos na CCPCJ se o juiz, por despacho fundamentado, entender que existe ou pode existir incompatibilidade das respetivas medidas ou decisões.
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Finalmente, é de referir quem integra as Comissões.
A comissão de proteção funciona em modalidade alargada ou restrita, designadas habitualmente de comissão alargada e de comissão restrita, respetivamente (art.º 16.º).
A comissão alargada, que funciona em plenário ou por grupos de trabalho para assuntos específicos, devendo o plenário reunir com a periodicidade exigida pelo cumprimento das suas funções, no mínimo de dois em dois meses (cf art.º 19.º), é composta por:
 a) Um representante do município, a indicar pela câmara municipal, ou das freguesias, a indicar por estas, no caso previsto no n.º 2 do art.º 15.º [quando num município há mais que uma comissão], de entre pessoas com especial interesse ou aptidão na área das crianças e jovens em perigo; 
b) Um representante da segurança social, de preferência designado de entre técnicos com formação em serviço social, psicologia ou direito; 
c) Um representante dos serviços do Ministério da Educação, de preferência professor com especial interesse e conhecimentos na área das crianças e dos jovens em perigo; 
d) Um médico, em representação dos serviços de saúde; 
e) Um representante das instituições particulares de solidariedade social (IPSS) ou de outras organizações não governamentais que desenvolvam, na área de competência territorial da comissão de proteção, atividades de carácter não institucional, em meio natural de vida, destinadas a crianças e jovens; 
f) Um representante das IPSS ou de outras organizações não governamentais que desenvolvam, na área de competência territorial da CCPCJ, atividades em regime de colocação institucional de crianças e jovens; 
g) Um representante das associações de pais existentes na área de competência da CCPCJ; 
h) Um representante das associações ou outras organizações privadas que desenvolvam, na área de competência da CCPCJ, atividades desportivas, culturais ou recreativas destinadas a crianças e jovens; 
i) Um representante das associações de jovens existentes na área de competência da CCPCJ ou um representante dos serviços de juventude; 
j) Um ou dois representantes das forças de segurança, conforme na área de competência territorial da CCPCJ existam apenas a GNR ou a PSP, ou ambas; 
l) Quatro pessoas designadas pela assembleia municipal, ou pela assembleia de freguesia, nos casos previstos no n.º 2 do art.º 15.º [quando num município há mais que uma comissão], de entre cidadãos eleitores preferencialmente com especiais conhecimentos ou capacidades para intervir na área das crianças e jovens em perigo; 
m) Os técnicos que venham a ser cooptados pela comissão, com formação, designadamente, em serviço social, psicologia, saúde ou direito, ou cidadãos com especial interesse pelos problemas da infância e juventude. (vd art.º 17.º).
A comissão restrita é composta sempre por um número ímpar, nunca inferior a cinco dos membros que integram a comissão alargada.
São seus membros, por inerência, o presidente da comissão de proteção e os representantes do município ou das freguesias, no caso previsto no n.º 2 do art.º 15.º [quando num município há mais que uma comissão], e da segurança social, quando não exerçam a presidência.
Os restantes membros são designados pela comissão alargada, devendo a designação de, pelo menos, um deles ser feita de entre os representantes de instituições particulares de solidariedade social ou de organizações não governamentais. Devem ser escolhidos de forma que a Comissão tenha uma composição interdisciplinar e interinstitucional, incluindo, sempre que possível, pessoas com formação nas áreas de serviço social, psicologia, direito, educação e saúde. 
Não sendo possível obter a composição nos termos do número anterior, a designação dos membros aí referidos é feita por cooptação, nomeadamente de entre os técnicos a que se refere a alínea m) do art.º 17.º (cf art.º 20.º).
A comissão restrita funciona em permanência. O seu plenário reúne sempre que convocado pelo presidente, no mínimo com periodicidade quinzenal, e distribui entre os seus membros as diligências a efetuar nos processos de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo. Os membros exercem funções em regime de tempo completo ou de tempo parcial, a definir na respetiva portaria de instalação. 
Porém, a comissão restrita funcionará sempre que se verifique situação qualificada de emergência que o justifique. (cf art.º 22.º).
Ademais, as instalações e os meios materiais de apoio, necessários ao funcionamento das CCPCJ são assegurados pelo respetivo município.

A lei existe, embora já polvilhada de momentos de especificação nem sempre mais adequados à celeridade e justeza das medidas que a necessidade impõe, e de muita jurisprudência. Não é, assim, por falta de lei que as crianças e jovens (até aos 18 anos) morrem. Porque será então?

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