terça-feira, 14 de abril de 2015

A Batalha de la Lys ou a mudança de opção político-estratégica

A batalha de la Lys ficou como a principal marca da participação portuguesa na frente de combate da Flandres, no quadro da I Guerra Mundial.
Não se pode esquecer, apesar de tudo, que Portugal combateu naquela Grande Guerra em quatro frentes ou teatros de operações bélicas: Angola (sul), desde 1914; Moçambique (norte), desde 1914; no mar, mais propriamente no Atlântico Central e Sul e no Pacífico, desde 1914; e na Flandres (França/Bélgica), desde 1917 (cf Brandão Ferreira, in O Diabo, de 7 de abril, pg 17).
A grande razão por que Portugal interveio na guerra, com exceção do teatro de operações no Continente Europeu, foi a defesa das suas colónias. Com a transição da Monarquia para República, não se alterou a política ultramarina. E, não obstante as querelas partidárias que, dentro do país, pareciam consumir todas as energias e tornar “estéril qualquer ação concertada e objetiva” (cf Ferreira, ib) – o que fez dizer ao Barão de Rosen, ministro alemão em Lisboa, que o país estava tão dividido em lutas de partidos e conspirações internas que nem dava pelo perigo que ameaçava o Ultramar – a defesa das colónias e o espaço oceânico mobilizaram as tropas lusas. Não foi desta que a Alemanha e a Inglaterra levaram por diante a execução do seu acordo secreto gizado em 1913 para repartir os territórios ultramarinos de Portugal com o fito de dirimir os graves conflitos existentes entre si.
***
Porém, a questão mais polémica foi a participação portuguesa na Europa. Entendiam os governantes portugueses que, em nome da aliança multissecular luso-britânica, deviam fornecer o contributo ativo do país ao teatro das operações bélicas. Os ingleses tiveram extrema relutância em aceitar a posição da governança portuguesa. As tropas, que não podiam atravessar a Espanha, que se declarara neutral, tiveram que se sujeitar à disponibilidade dos navios britânicos e do “tempo” do governo de Sua Majestade. Assim, enquanto aguardavam, sofriam a falta de tudo e mesmo a da instrução militar em termos aceitáveis.
Neste contexto, pelos piores motivos e com o sacrifício mortal de praticamente metade das suas tropas na efeméride, ficou como referência da participação lusa na frente continental da I Guerra Mundial a batalha de la Lys. Este recontro de trincheiras – que ficou marcado pela perda de milhares de homens, entre mortos, feridos, desparecidos e prisioneiros – pode sintetizar-se em termos como os seguintes:
A Flandres passou por um violento despertar na madrugada do dia 9 de abril de 1918. As tropas portuguesas, que ocupavam aquela parcela quadricular foram sovadas pela descomunalmente superior força alemã.  
Os alemães, que invadiram o terreno, denominaram aquele confronto por “operação Georgete” e o seu objetivo era furar as linhas aliadas, separar as forças britânicas das francesas e urgir uma alteração estratégica militar na frente ocidental. Assim, 8 divisões alemãs, com perto de 100 mil homens e mais de mil peças de artilharia, avançaram sobre os 11 quilómetros abrangidos pelas forças portuguesas, enquadradas em apenas 2 divisões de cerca de 20 mil homens.
Apesar de trucidadas as hostes lusas, ofereceram uma resistência que fez ganhar tempo suficiente aos aliados para que pudessem reforçar a sua frente de luta e suster a ofensiva.
Os portugueses perderam sensivelmente metade dos seus homens – registaram-se, à data, 1300 mortos, 4000 feridos, 2000 desaparecidos e mais de 7000 prisioneiros.
***
Já se disse que os militares portugueses, na sua maioria analfabetos, tiveram uma preparação bélica insuficiente; sofreram, antes da partida, a demora do tempo; sofreram as agruras da viagem, que decorreu em magotes espaçados no tempo e nos meios de transporte. E não podemos esquecer que a decisão política revestiu a modalidade do franco-atirador, não sendo desejada pela velha aliada, que acabou por a tolerar.
Entretanto, a situação política portuguesa alterou-se com a tomada da Presidência da República e do Governo pelo major Sidónio Pais. As tropas portuguesas deixaram de ser rendidas, o que originou uma situação de cansaço, desgaste e espírito de revolta nas tropas de vanguarda e grande decréscimo da disciplina na retaguarda. 
Nas vésperas da batalha La Lys, as condições de permanência do CEP (Corpo Expedicionário Português) tinham-se degradado grandemente. As tropas das linhas da frente continuavam quase sem rotação, mas com atividade militar gradualmente intensificada até atingir um patamar de intensidade continuada não aguentável. Março de 1918 foi enormemente penoso, com combates em número muito superior ao usual (nos dias 2, 7, 9, 12 e 18), para lá de pequenas escaramuças e contínuos bombardeamentos infligidos pela artilharia inimiga.
O comando português deu-se conta da diminuição do moral das tropas à medida que estas se apercebiam de sinais de um crescendo de atividade nas linhas alemãs, prenúncio de preparação de ação de maior escala. O comando britânico sob cuja tutela estava o português não valorizou a situação, alegando que o ataque principal dos alemães não ocorreria naquela zona. Só a 6 de abril foi dada execução às mudanças que a situação impunha, em conformidade com o novo acordo assinado com Portugal. Às tropas portuguesas foi ordenada a manutenção apenas da 2.ª Divisão na linha da frente, comandada pelo general Gomes da Costa, passando para o comando do XI Corpo de Exército britânico. Todavia, na prática, a extensão da linha manteve-se nos 12 quilómetros anteriores, sendo retirado só um batalhão, ficando a linha com menor densidade de forças. O tempo para consolidar a execução das mudanças táticas planeadas foi curto. A visita do general Horne ao comando da 2.ª Divisão, a 7 de abril, determinava que a Divisão consolidasse a defesa da 2.ª linha (a linha B). A decisão, a 8 de abril, de substituir a 2.ª Divisão por uma divisão britânica, que deveria começar a efetuar-se no dia seguinte, revelou-se tardia.
As tropas portuguesas ofereciam uma vontade de lutar e uma disposição de ânimo muito baixas, o que ficou agravado com a perspetiva de saírem da linha da frente.
O ataque alemão, a 9 de abril, inseriu-se na estratégia de rotura da frente em setores estreitos servida pela grande superioridade de meios. Os alemães sabiam ser esta a última oportunidade de conseguirem o objetivo. Planearam e prepararam bem o ataque (também ao nível da artilharia) e executaram-no de forma eficaz. Escolheram bem o dia, melhor a madrugada, dado o espesso nevoeiro que se formara sobre as linhas portuguesas. O assalto ocorreu de acordo com as táticas consolidadas pela longa experiência da guerra de trincheiras: preparação de fogos, ataque frontal, envolvimentos setoriais, contrabateria, ataques em profundidade, progressão no terreno e consolidação do avanço. Do lado português tornou-se impossível organizar uma defesa consistente, dado o desequilíbrio de meios, as condições do terreno e a disposição psicológica dos homens. 
Em seis horas ficou anulada a resistência das primeiras linhas; no fim do dia, o setor português estava tomado e consolidada a penetração inimiga. Apenas em Lacouture se resistiu até ao dia seguinte (dia 10), mercê da denodada ação de um pequeno grupo luso-britânico. Neste ambiente, ficou célebre, apesar de tudo, o heroísmo do soldado Milhões, que, segundo o que afirmam alguns, com a sua metralhadora protegeu a retirada de muitos portugueses, causando forte ilusão nas tropas inimigas.
Segundo o major David Magno, citado por Aniceto Afonso, “a política fez por lá muito mal, mas o CEP tinha de sofrer um desaire devido às suas dificuldades, natas ou invencíveis, como estas da impossibilidade de ser reforçado e muito menos de ser rendido”.
Se os políticos pensassem e os comandos avaliassem as condições do terreno…
***
Pode dizer-se que há um CEP antes e um CEP depois da ofensiva alemã de 9 de abril. Para os portugueses o dia ficou conhecido pela batalha de La Lys. Do CEP, que se foi deformando por força das circunstâncias antes de La Lys, não era possível esperar outra coisa para lá do sucedido. Sem reforços de Portugal e com um enquadramento de oficiais que se ia debilitando, o estado físico e moral do CEP já não era confiável. Por isso, o General Gomes da Costa quando, a 3 de abril de 1918, foi designado para, três dias depois, assumir o comando da 2.ª Divisão, à qual competia a defesa do setor português, declinou toda a responsabilidade sobre o que pudesse resultar do facto de ter de guarnecer uma frente tão extensa com um efetivo tão excessivamente reduzido. Para um homem com vasta experiência militar em África e já com grandes responsabilidades de um setor desde 16 de junho de 1917, na Europa, não se tratava de fugir às responsabilidades, mas de avaliar com realismo a situação que todos sabiam, mas de cuja afirmação se esquivavam. A mesma informação foi claramente transmitida a 7 de abril ao recém-chegado comandante do XI Corpo Britânico, unidade à qual a Divisão portuguesa passou a ficar subordinada em termos táticos desde 6 de abril. Desde fevereiro que o comando britânico propunha a retirada das tropas portuguesas da linha da frente, com Lisboa a resistir até meados de março, altura em que a aceita, mas cuja operacionalização só veio a realizar-se, depois de sucessivos adiamentos – agora por imposição britânica – para o dia 9 de abril.
Os alemães, por seu turno, escolheram deliberadamente o setor português sabendo, com base no estudo que lograram fazer do terreno, que aquele seria o elo mais fraco. E atacaram justamente no dia em que as tropas portuguesas estavam em vias de serem rendidas. Existiram muitos atos de bravura e sacrifício, mas o grande número de mortos, feridos, prisioneiros e desaparecidos deixou a imagem dum coletivo desagregado e pouco coeso. A Divisão portuguesa deixava de contar como unidade militar. Os que não tinham sido mortos ou feitos prisioneiros retiravam desorganizadamente para a retaguarda.
A seguir à ofensiva, o que restava das brigadas do CEP foi cedido a duas Divisões britânicas, mas ainda no fim desse mês de abril o Comando Britânico dispensou qualquer empenhamento operacional dos portugueses. Na prática, as tropas portuguesas foram enviadas para trabalhos de reorganização do terreno, autênticos “batalhões de trabalhadores” – situação inadmissível para Lisboa e humilhante para todos no CEP, que os assimilou ao trabalho dos chineses.
Este outro CEP percorreu “um penoso calvário” e já com um outro Comandante empenhou-se por renascer enquanto força expedicionária combatente. O que fazer com os homens que restavam do CEP foi assunto de intenso debate entre britânicos e portugueses, com os primeiros a insistir no descarte de quaisquer possibilidades de reintegrar o que restava do CEP nas linhas da frente (a não ser que comandados por oficiais britânicos), ao passo que os portugueses tentavam recuperar a imagem de aliado credível, de nação soberana e independente. Não obstante, este outro CEP vivia agora sob o estigma do abandono por parte de Portugal e da indiferença britânica, traduzindo-se numa falta de utilidade bélica, terreno fértil para a insubordinação. Neste contexto, o estado desigual do CEP permitia equacionar, no mesmo mês de outubro de 1918, a existência de dois batalhões prontos para regressar à frente em missões de combate e outros tantos casos de insubordinação grave, um dos quais foi resolvido pelo fogo de metralhadora de unidades companheiras.
Assinado que foi o Armistício em 11 de novembro de 1918, para Lisboa e comandantes portugueses no terreno, a guerra do CEP não terminava ainda. Era imperioso percorrer a mesma caminhada dos aliados vencedores, pelo que a batalha seguinte era a garantia da participação no desfile da Vitória, em Paris.
A sociedade portuguesa em geral e as Forças Armadas em particular não ficaram indiferentes ao regresso, entre abril e junho de 1919, de um contingente que chegou a mais de 55.000 homens dos quais quase 7.000 foram repatriados dos campos de prisioneiros na Alemanha. Formou-se a Liga dos Combatentes e a Comissão dos Padrões da Grande Guerra – que foram as conhecidas e perenes iniciativas realizadas para minorar a sensação de logro na participação bélica portuguesa e perpetuar o esforço e os sacrifícios reais que os militares fizeram.
Tornando-se impossível a identificação individual de todos os militares que tombaram e a avaliação de todo o esforço humano da Guerra, as nações, a exemplo da França, começaram a erigir monumentos ao “soldado desconhecido”. Também em Portugal, a 18 de março de 1921, o Governo autorizou a transladação de dois “Soldados Desconhecidos”, um da França (Flandres) e outro da África (Moçambique), para o Panteão do Mosteiro da Batalha. Foi também decidido pelo Governo que a cerimónia de tumulação do “Soldado Desconhecido” seria efetuada no dia 9 de abril de 1921 e para tal decretado esse dia como feriado nacional.
A cerimónia constituiu um alto momento do esforço coletivo que se fez no sentido de reabilitar a participação portuguesa na Guerra. Porém, sucedia tardiamente, três anos após o fim das hostilidades, mas no começo dum longo processo de catarse necessário aos traumas adquiridos.
Nunca é demais fazer jus à memória dos mortos em combate e daí inferir a nova alvorada da Pátria!
Cf Afonso, A. (2013). Grandes Batalhas da História de Portugal. Lisboa: Expresso
Freiria, F. (1918). Os Portugueses na Flandres. Lisboa: Tipografia da Cooperativa Militar
Gilbert, Martin (2013). História do Século XX. (trad. Francisco Agarez). Vol. 2. Lisboa: Expresso
Marques, I. P. (2002). Os Portugueses nas Trincheiras. Um Quotidiano de Guerra. Entroncamento: GODAL - Indústria Gráfica e Comércio
Marques, I. P. (2004). Memórias do General 1915-1919. Viseu: SACRE Fundação Mariana Seixas
Telo, A. J. (2004). Os começos do Século. Nova História Militar de Portugal, Vol. 3. Círculo de Leitores

Telo, A. J. (2010). Primeira República I. Do sonho à realidade. Lisboa: Editorial Presença.

Sem comentários:

Enviar um comentário