A
batalha de la Lys ficou como a principal marca da participação portuguesa na
frente de combate da Flandres, no quadro da I Guerra Mundial.
Não
se pode esquecer, apesar de tudo, que Portugal combateu naquela Grande Guerra
em quatro frentes ou teatros de operações bélicas: Angola (sul), desde 1914; Moçambique (norte), desde 1914; no mar, mais
propriamente no Atlântico Central e Sul e no Pacífico, desde 1914; e na
Flandres (França/Bélgica),
desde 1917 (cf Brandão Ferreira, in O Diabo, de 7 de abril, pg 17).
A
grande razão por que Portugal interveio na guerra, com exceção do teatro de
operações no Continente Europeu, foi a defesa das suas colónias. Com a
transição da Monarquia para República, não se alterou a política ultramarina. E,
não obstante as querelas partidárias que, dentro do país, pareciam consumir
todas as energias e tornar “estéril qualquer ação concertada e objetiva” (cf
Ferreira, ib) – o
que fez dizer ao Barão de Rosen, ministro alemão em Lisboa, que o país estava
tão dividido em lutas de partidos e conspirações internas que nem dava pelo
perigo que ameaçava o Ultramar – a defesa das colónias e o espaço oceânico
mobilizaram as tropas lusas. Não foi desta que a Alemanha e a Inglaterra
levaram por diante a execução do seu acordo secreto gizado em 1913 para repartir
os territórios ultramarinos de Portugal com o fito de dirimir os graves conflitos
existentes entre si.
***
Porém,
a questão mais polémica foi a participação portuguesa na Europa. Entendiam os governantes
portugueses que, em nome da aliança multissecular luso-britânica, deviam
fornecer o contributo ativo do país ao teatro das operações bélicas. Os
ingleses tiveram extrema relutância em aceitar a posição da governança
portuguesa. As tropas, que não podiam atravessar a Espanha, que se declarara
neutral, tiveram que se sujeitar à disponibilidade dos navios britânicos e do “tempo”
do governo de Sua Majestade. Assim, enquanto aguardavam, sofriam a falta de
tudo e mesmo a da instrução militar em termos aceitáveis.
Neste
contexto, pelos piores motivos e com o sacrifício mortal de praticamente metade
das suas tropas na efeméride, ficou como referência da participação lusa na
frente continental da I Guerra Mundial a batalha de la Lys. Este recontro de
trincheiras – que ficou marcado pela perda de milhares de homens, entre mortos,
feridos, desparecidos e prisioneiros – pode sintetizar-se em termos como os
seguintes:
A
Flandres passou por um violento despertar na madrugada do dia 9 de abril de
1918. As tropas portuguesas, que ocupavam aquela parcela quadricular foram
sovadas pela descomunalmente superior força alemã.
Os
alemães, que invadiram o terreno, denominaram aquele confronto por “operação
Georgete” e o seu objetivo era furar as linhas aliadas, separar as forças
britânicas das francesas e urgir uma alteração estratégica militar na frente
ocidental. Assim, 8 divisões alemãs, com perto de 100 mil homens e mais de mil
peças de artilharia, avançaram sobre os 11 quilómetros abrangidos pelas forças
portuguesas, enquadradas em apenas 2 divisões de cerca de 20 mil homens.
Apesar
de trucidadas as hostes lusas, ofereceram uma resistência que fez ganhar tempo
suficiente aos aliados para que pudessem reforçar a sua frente de luta e suster
a ofensiva.
Os
portugueses perderam sensivelmente metade dos seus homens – registaram-se, à
data, 1300 mortos, 4000 feridos, 2000 desaparecidos e mais de 7000
prisioneiros.
***
Já
se disse que os militares portugueses, na sua maioria analfabetos, tiveram uma
preparação bélica insuficiente; sofreram, antes da partida, a demora do tempo;
sofreram as agruras da viagem, que decorreu em magotes espaçados no tempo e nos
meios de transporte. E não podemos esquecer que a decisão política revestiu a
modalidade do franco-atirador, não sendo desejada pela velha aliada, que acabou
por a tolerar.
Entretanto,
a situação política portuguesa alterou-se com a tomada da Presidência da
República e do Governo pelo major Sidónio Pais. As tropas portuguesas deixaram
de ser rendidas, o que originou uma situação de cansaço, desgaste e espírito de
revolta nas tropas de vanguarda e grande decréscimo da disciplina na
retaguarda.
Nas
vésperas da batalha La Lys, as condições de permanência do CEP (Corpo
Expedicionário Português)
tinham-se degradado grandemente. As tropas das linhas da frente continuavam
quase sem rotação, mas com atividade militar gradualmente intensificada até
atingir um patamar de intensidade continuada não aguentável. Março de 1918 foi
enormemente penoso, com combates em número muito superior ao usual (nos
dias 2, 7, 9, 12 e 18),
para lá de pequenas escaramuças e contínuos bombardeamentos infligidos pela artilharia
inimiga.
O
comando português deu-se conta da diminuição do moral das tropas à medida que estas
se apercebiam de sinais de um crescendo de atividade nas linhas alemãs,
prenúncio de preparação de ação de maior escala. O comando britânico sob cuja
tutela estava o português não valorizou a situação, alegando que o ataque
principal dos alemães não ocorreria naquela zona. Só a 6 de abril foi dada
execução às mudanças que a situação impunha, em conformidade com o novo acordo
assinado com Portugal. Às tropas portuguesas foi ordenada a manutenção apenas
da 2.ª Divisão na linha da frente, comandada pelo general Gomes da Costa,
passando para o comando do XI Corpo de Exército britânico. Todavia, na prática,
a extensão da linha manteve-se nos 12 quilómetros anteriores, sendo retirado só
um batalhão, ficando a linha com menor densidade de forças. O tempo para
consolidar a execução das mudanças táticas planeadas foi curto. A visita do
general Horne ao comando da 2.ª Divisão, a 7 de abril, determinava que a
Divisão consolidasse a defesa da 2.ª linha (a linha B). A decisão, a 8 de abril, de
substituir a 2.ª Divisão por uma divisão britânica, que deveria começar a
efetuar-se no dia seguinte, revelou-se tardia.
As
tropas portuguesas ofereciam uma vontade de lutar e uma disposição de ânimo
muito baixas, o que ficou agravado com a perspetiva de saírem da linha da
frente.
O
ataque alemão, a 9 de abril, inseriu-se na estratégia de rotura da frente em
setores estreitos servida pela grande superioridade de meios. Os alemães sabiam
ser esta a última oportunidade de conseguirem o objetivo. Planearam e
prepararam bem o ataque (também ao nível da artilharia) e executaram-no de forma eficaz.
Escolheram bem o dia, melhor a madrugada, dado o espesso nevoeiro que se
formara sobre as linhas portuguesas. O assalto ocorreu de acordo com as táticas
consolidadas pela longa experiência da guerra de trincheiras: preparação de
fogos, ataque frontal, envolvimentos setoriais, contrabateria, ataques em
profundidade, progressão no terreno e consolidação do avanço. Do lado português
tornou-se impossível organizar uma defesa consistente, dado o desequilíbrio de
meios, as condições do terreno e a disposição psicológica dos homens.
Em
seis horas ficou anulada a resistência das primeiras linhas; no fim do dia, o
setor português estava tomado e consolidada a penetração inimiga. Apenas em
Lacouture se resistiu até ao dia seguinte (dia 10), mercê da denodada ação de um pequeno
grupo luso-britânico. Neste ambiente, ficou célebre, apesar de tudo, o heroísmo
do soldado Milhões, que, segundo o que afirmam alguns, com a sua metralhadora
protegeu a retirada de muitos portugueses, causando forte ilusão nas tropas
inimigas.
Segundo
o major David Magno, citado por Aniceto Afonso, “a política fez por lá muito
mal, mas o CEP tinha de sofrer um desaire devido às suas dificuldades, natas ou
invencíveis, como estas da impossibilidade de ser reforçado e muito menos de
ser rendido”.
Se
os políticos pensassem e os comandos avaliassem as condições do terreno…
***
Pode
dizer-se que há um CEP antes e um CEP depois da ofensiva alemã de 9 de abril.
Para os portugueses o dia ficou conhecido pela batalha de La Lys. Do CEP, que se
foi deformando por força das circunstâncias antes de La Lys, não era possível
esperar outra coisa para lá do sucedido. Sem reforços de Portugal e com um
enquadramento de oficiais que se ia debilitando, o estado físico e moral do CEP
já não era confiável. Por isso, o General Gomes da Costa quando, a 3 de abril
de 1918, foi designado para, três dias depois, assumir o comando da 2.ª Divisão,
à qual competia a defesa do setor português, declinou toda a responsabilidade
sobre o que pudesse resultar do facto de ter de guarnecer uma frente tão
extensa com um efetivo tão excessivamente reduzido. Para um homem com vasta
experiência militar em África e já com grandes responsabilidades de um setor
desde 16 de junho de 1917, na Europa, não se tratava de fugir às responsabilidades,
mas de avaliar com realismo a situação que todos sabiam, mas de cuja afirmação
se esquivavam. A mesma informação foi claramente transmitida a 7 de abril ao
recém-chegado comandante do XI Corpo Britânico, unidade à qual a Divisão
portuguesa passou a ficar subordinada em termos táticos desde 6 de abril. Desde
fevereiro que o comando britânico propunha a retirada das tropas portuguesas da
linha da frente, com Lisboa a resistir até meados de março, altura em que a aceita,
mas cuja operacionalização só veio a realizar-se, depois de sucessivos
adiamentos – agora por imposição britânica – para o dia 9 de abril.
Os
alemães, por seu turno, escolheram deliberadamente o setor português sabendo,
com base no estudo que lograram fazer do terreno, que aquele seria o elo mais
fraco. E atacaram justamente no dia em que as tropas portuguesas estavam em
vias de serem rendidas. Existiram muitos atos de bravura e sacrifício, mas o
grande número de mortos, feridos, prisioneiros e desaparecidos deixou a imagem
dum coletivo desagregado e pouco coeso. A Divisão portuguesa deixava de contar
como unidade militar. Os que não tinham sido mortos ou feitos prisioneiros
retiravam desorganizadamente para a retaguarda.
A
seguir à ofensiva, o que restava das brigadas do CEP foi cedido a duas Divisões
britânicas, mas ainda no fim desse mês de abril o Comando Britânico dispensou
qualquer empenhamento operacional dos portugueses. Na prática, as tropas
portuguesas foram enviadas para trabalhos de reorganização do terreno,
autênticos “batalhões de trabalhadores” – situação inadmissível para Lisboa e
humilhante para todos no CEP, que os assimilou ao trabalho dos chineses.
Este
outro CEP percorreu “um penoso calvário” e já com um outro Comandante
empenhou-se por renascer enquanto força expedicionária combatente. O que fazer
com os homens que restavam do CEP foi assunto de intenso debate entre
britânicos e portugueses, com os primeiros a insistir no descarte de quaisquer
possibilidades de reintegrar o que restava do CEP nas linhas da frente (a
não ser que comandados por oficiais britânicos), ao passo que os portugueses tentavam recuperar a
imagem de aliado credível, de nação soberana e independente. Não obstante, este
outro CEP vivia agora sob o estigma do abandono por parte de Portugal e da
indiferença britânica, traduzindo-se numa falta de utilidade bélica, terreno
fértil para a insubordinação. Neste contexto, o estado desigual do CEP permitia
equacionar, no mesmo mês de outubro de 1918, a existência de dois batalhões
prontos para regressar à frente em missões de combate e outros tantos casos de
insubordinação grave, um dos quais foi resolvido pelo fogo de metralhadora de
unidades companheiras.
Assinado
que foi o Armistício em 11 de novembro de 1918, para Lisboa e comandantes
portugueses no terreno, a guerra do CEP não terminava ainda. Era imperioso
percorrer a mesma caminhada dos aliados vencedores, pelo que a batalha seguinte
era a garantia da participação no desfile da Vitória, em Paris.
A
sociedade portuguesa em geral e as Forças Armadas em particular não ficaram indiferentes
ao regresso, entre abril e junho de 1919, de um contingente que chegou a mais
de 55.000 homens dos quais quase 7.000 foram repatriados dos campos de
prisioneiros na Alemanha. Formou-se a Liga dos Combatentes e a Comissão dos
Padrões da Grande Guerra – que foram as conhecidas e perenes iniciativas
realizadas para minorar a sensação de logro na participação bélica portuguesa e
perpetuar o esforço e os sacrifícios reais que os militares fizeram.
Tornando-se
impossível a identificação individual de todos os militares que tombaram e a
avaliação de todo o esforço humano da Guerra, as nações, a exemplo da França,
começaram a erigir monumentos ao “soldado desconhecido”. Também em Portugal, a
18 de março de 1921, o Governo autorizou a transladação de dois “Soldados
Desconhecidos”, um da França (Flandres) e outro da África (Moçambique), para o Panteão do Mosteiro da
Batalha. Foi também decidido pelo Governo que a cerimónia de tumulação do “Soldado
Desconhecido” seria efetuada no dia 9 de abril de 1921 e para tal decretado esse
dia como feriado nacional.
A
cerimónia constituiu um alto momento do esforço coletivo que se fez no sentido
de reabilitar a participação portuguesa na Guerra. Porém, sucedia tardiamente, três
anos após o fim das hostilidades, mas no começo dum longo processo de catarse
necessário aos traumas adquiridos.
Nunca
é demais fazer jus à memória dos mortos em combate e daí inferir a nova
alvorada da Pátria!
Cf Afonso, A. (2013). Grandes Batalhas da História de Portugal.
Lisboa: Expresso
Freiria, F. (1918). Os Portugueses na Flandres. Lisboa: Tipografia
da Cooperativa Militar
Gilbert, Martin (2013).
História do Século XX. (trad.
Francisco Agarez). Vol. 2. Lisboa: Expresso
Marques, I. P. (2002). Os Portugueses nas Trincheiras. Um
Quotidiano de Guerra. Entroncamento: GODAL - Indústria Gráfica e Comércio
Marques, I. P. (2004). Memórias do General 1915-1919. Viseu:
SACRE Fundação Mariana Seixas
Telo, A. J. (2004). Os começos do Século. Nova História Militar
de Portugal, Vol. 3. Círculo de Leitores
Telo, A. J. (2010). Primeira República I. Do sonho à realidade.
Lisboa: Editorial Presença.
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