Sempre
nos habituaram a dizer que os tribunais administravam a justiça e nos ensinavam
que devíamos confiar na justiça porque ela é imparcial, corta a direito, com
espada de dois gumes. E dizem-nos que é cega (mas, se é cega,
é porque quer, já que os seus olhos é que estão vendados). O processo de Cristo mostra
exatamente que a justiça, além de cega, é surda, muda e coxa.
Preso
no Getsémani, Jesus foi entregue, ao amanhecer, ao conselho dos anciãos do
povo, sumos sacerdotes e doutores da Lei, na casa de Anás, sogro de Caifás, o
sumo sacerdote daquele ano, que profetizara que um só homem devia morrer pelo
povo.
Os sumos sacerdotes e todo o sinédrio procuravam um
testemunho contra Jesus para Lhe darem a morte, mas não o encontravam. É certo
que muitos testemunharam falsamente contra Ele, mas os testemunhos não eram
coincidentes. Entretanto, alguns proferiram contra Ele, neste tribunal judaico,
o seguinte depoimento: “Ouvimo-lo
dizer: ‘Demolirei este templo construído pela mão dos homens e, em três dias,
edificarei outro que não será feito pela mão dos homens’.”. Nem neste detalhe o depoimento era concorde.
O Sumo
Sacerdote, por seu turno, ergueu-se na assembleia e interrogou-O: “Não
respondes ao que testemunham contra Ti”? Mas
Ele nada respondia.
O Sumo
Sacerdote voltou a interrogá-Lo: “És Tu o Messias, o Filho do Deus Bendito”? Jesus respondeu: “Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder
e vir sobre as nuvens do céu”.
Posto isto, o Sumo Sacerdote rasgou as vestes e disse: “Que necessidade há
ainda de testemunhas? Ouvistes a
blasfémia! Que vos parece?”. E todos sentenciavam que era réu de morte. Depois, cuspiam-Lhe, cobriam-Lhe o
rosto com um véu e, batendo-lhe, diziam-Lhe que profetizasse. E os guardas
davam-lhe bofetadas.
Pedro, que O
seguira de longe, ao ser interpelado por uma criada e por um dos presentes,
quando estava a aquecer-se ao lume, negou-O por três vezes. Foi quando ouviu o
cantar de um galo pela segunda vez que se recordou da previsão do mestre, pelo
que desatou a chorar.
Enquanto os
sinóticos relatam o episódio da presença de Jesus na casa de Anás e, a seguir,
os três momentos da negação de Pedro, João faz relato alternado: Jesus levado a
Anás, a primeira negação de Pedro, Jesus interrogado por Anás e resposta de
Jesus (seguida da
bofetada dum dos guardas por alegadamente Jesus ter desafiado o Pontífice) e a segunda e terceira negações de
Pedro.
– (cf Mc 14, 53-72; Mt 26,57-75; Lc
22,54,71; Jo 18,12-27).
***
Condenado por
motivos religiosos no tribunal sinedrita, o qual não tinha competência para O
condenar à morte de cruz, levaram Jesus ao pretório e entregaram-No manietado
ao governador romano Pôncio Pilatos, que Lhe perguntou se era Ele o rei dos
Judeus, o que Jesus confirmou, mas sem dar mais qualquer outra resposta útil.
João, por sua vez, regista, no encontro com Pilatos, o testemunho de Jesus
sobre o sentido extramundano da Sua realeza e sobre o Seu nascimento para
testemunho da verdade, de modo que os da Verdade seguem a Sua voz.
Lucas, por
sua vez, insere o episódio do envio de Jesus por Pôncio Pilatos a Herodes, que
tinha jurisdição sobre o território onde se insere a cidade de Jesus e se
encontrava em Jerusalém para a festa, e o subsequente reenvio de Jesus por
Herodes a Pilatos, já que o arguido de crime de morte nada respondera ao rei
Herodes.
Pilatos, não encontrando
nada que merecesse a condenação, tentou soltar Jesus e, em alternativa,
crucificar Barrabás. Mas a multidão furiosa gritava pela libertação de Barrabás,
o salteador (era costume
Pilatos solta rum dos presos pela festa da Páscoa), e pela crucifixão de Jesus de Nazaré, mesmo depois
de flagelado.
Mateus insere
o episódio do remorso e desespero de Judas enquanto Jesus está presente no
tribunal romano.
Pilatos, a
autoridade romana da Judeia, lavando as mãos, declarou-se inocente sobre o
sangue de Jesus. E a multidão reclamou que o sangue de Jesus recaísse sobre e
eles e seus filhos e que, se Pilatos o soltasse, não era amigo de César. Por
isso e porque Ele se fizera filho de Deus, redobraram os rogos de crucifixão. Assim,
Pilatos mandou coroá-Lo de espinhos, entregou-O para ser crucificado e mandou
apor no topo da cruz a causa da morte, em hebraico, grego e latim: “Jesus
Nazareno Rei dos Judeus” (INRI, que ainda hoje se vê).
– (cf Mc 15, 1-20; Mt 27,1-26; Lc
23,1,25; Jo 18,28 –19,1-16).
Sem apontar
as eventuais divergências de datas e duração do processo de Jesus, convém
refletir nos motivos da condenação de Jesus à morte de cruz. Os judeus (os chefes que amotinaram as
multidões, as mesmas que O aclamaram na entrada triunfal em Jerusalém) queriam ver-se livre de Jesus, pois
temiam o povo, que tomando o partido dele, os apeasse da sua autoridade
religiosa e política. Como não encontravam motivo objetivo, resolveram
encontrar um pretexto. Em seu entender, a blasfémia seria motivo suficiente.
Acusaram-No de Se ter afirmado Filho de Deus e de ter garantido que se
destruíssem o Templo, por suas mãos o reconstruiria (nunca perceberam nem quiseram
perceber a mensagem).
Mas, para que a condenação fosse exemplar e credível aos olhos do povo, era
necessário um motivo político e a consequente condenação à morte de cruz (que o tribunal judaico não podia
decretar). Por isso, foi
apresentado ao tribunal romano de Pôncio Pilatos, a quem não interessava saber
se Jesus era ou não filho de Deus e não encontrou n’ Ele nada que justificasse
a morte. Porém, ou por medo da multidão ou por medo de rumores que chegassem a
Roma e levassem à sua destituição, Pilatos acobardou-se, resolveu tentar
alternativas que não resultaram, dada a pertinácia dos acusadores e dos gritos
ululantes da multidão.
Tanto no
tribunal judaico como no tribunal romano, o arguido (ao tempo, o réu) não teve uma única testemunha de
defesa. No tribunal sinedrita, as alegações do arguido não tiveram qualquer
peso; no tribunal romano, as alegações tiveram peso, mas o juiz foi
inconsequente.
Para se
perceber a economia da Paixão de Cristo, importa atentar na força do “tinha de
ser”, “era necessário” – não por força do destino cego, mas por vontade do Pai
e aceitação do Filho. Foi para isto que Ele, segundo as Escrituras e segundo o Credo, veio ao mundo, “propter nos homines et propter nostram salutem,
descendit de caelis et incarnatus est!
***
Levaram-No
para fora da Cidade a fim de O crucificarem. Porém,
vendo-O sem forças, requisitaram, para Lhe levar a cruz, Simão de
Cirene, pai de Alexandre e de Rufo, que passava por ali de regresso dos campos. E conduziram-no ao lugar do Gólgota ou Calvário, que quer dizer ‘lugar do Crânio’. Segundo Lucas, quando
as mulheres de Jerusalém choravam de compunção por Ele, Jesus pediu-lhes que
não chorassem por Ele, mas por elas e seus filhos.
Chegados
ao lugar previsto, querendo dar-Lhe vinho misturado com mirra ou fel, Ele,
provando-o, não quis beber. Depois,
crucificaram-No e repartiram
entre si as suas vestes, tirando-as à sorte, para ver o que cabia a cada
um. Ficaram ali sentados a guardá-Lo. Eram
umas nove horas da manhã (hora de tércia ou tertia
hora),
quando O crucificaram.
Com
Ele crucificaram dois ladrões, um à direita e o outro à esquerda. Assim se cumpriu a passagem da
Escritura que diz: “Foi contado entre os malfeitores”. Jesus,
entretanto, rezava: “Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”!
Os
transeuntes injuriavam-No e, abanando a cabeça, diziam: “Olha o que destrói o Templo
e o reconstrói em três dias! Salva-te
a ti mesmo, descendo da cruz!”. Também os sumos sacerdotes e os doutores da Lei
troçavam entre si: “Salvou os outros mas não pode salvar-se a si mesmo! O Messias, o Rei de Israel! Desça
agora da cruz para nós vermos e acreditarmos!”. E “Confiou
em Deus; Ele que o livre agora, se o ama,
pois disse: ‘Eu sou Filho de Deus’!”.
Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã da sua
mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria de Magdala. Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua
mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho”! Depois, disse ao discípulo: “Eis a tua mãe”! E, desde aquela hora, o
discípulo acolheu-A como sua.
Até
um dos que estavam crucificados com Ele O injuriava: “Não és Tu o Messias?
Salva-te a ti mesmo e a nós também”. Mas o outro, tomando a palavra,
repreendeu-o: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois
recebemos o castigo que as nossas ações mereciam; mas Ele nada praticou de
condenável”. E acrescentou: “Jesus,
lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino”. Ele respondeu-lhe: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no
Paraíso”.
Por
volta do meio-dia (hora de sexta ou sexta hora), as trevas envolveram toda
a terra, até às três da tarde. E,
às três da tarde (hora de noa ou nona hora), Jesus exclamou em alta
voz: “Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?”, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque me
abandonaste? (Mateus
regista a variante aramaica: Eli, Eli, lama sabachtani?).
Ao
ouvi-Lo, alguns que estavam ali disseram: “Está a chamar por Elias”! E, como Ele clamou, “Tenho sede”, um deles correu a embeber uma esponja em vinagre,
pô-la numa cana e deu-Lhe de beber, dizendo: “Esperemos,
a ver se Elias vem tirá-lo dali”.
Jesus serenamente disse: “Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
E os insultos continuavam. Mas Jesus, depois de dizer, “tudo está consumado”, com um grito forte, expirou. E o véu do Templo rasgou-se em dois,
de alto a baixo.
O
centurião que estava em frente d’ Ele, ao vê-Lo expirar daquela maneira, disse:
“Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!”. E a multidão, que se tinha
aglomerado para ver o espetáculo, regressava batendo no peito. De facto, Cristo pagou por nós!
Também
estavam ali a contemplar de longe algumas mulheres, entre elas, Maria de
Magdala, Maria, mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé, que O seguiam e serviam desde quando
Ele estava na Galileia; e muitas outras que tinham subido com Ele a Jerusalém.
(Cf caminhada para o Calvário – Mt 27,32-33; Lc
23,26-32; Jo 19,16-17; crucifixão e
escarnecimento – Mt 27,34-44;
Lc 23,33-43; Jo 19,18-24; morte de
Jesus (Mt 27,45-56; Lc
23,44-49; Jo 19,25.28-30).
Há que meditar: Porquê
e para quê tudo isto? É inefável o coração de Deus!
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