O Conselho Europeu discute hoje, dia
23 de abril, em cimeira extraordinária em Bruxelas os naufrágios no Mediterrâneo,
precedida do conselho de ministros dos Negócios Estrangeiros e do Interior
realizada na passada segunda-feira, dia 20, no Luxemburgo, para iniciar o
debate da estratégia que venha a impedir tragédias como a que aconteceu no
domingo passado: mais de 700 pessoas terão perdido a vida quando a embarcação em
que viajavam, com destino ao Continente europeu, se afundou junto à costa da
Líbia. Mais casos se registaram nos dias seguintes.
A este respeito, Donald Tusk,
presidente do Conselho Europeu, declarou em mensagem vídeo divulgada na sua
conta na rede social Twitter:
“A
situação no Mediterrâneo é dramática. Não pode continuar assim. Não podemos
aceitar que centenas de pessoas morram ao tentar atravessar o mar rumo à
Europa. É por isso que decidi convocar um Conselho Europeu extraordinário para
esta quinta-feira”.
Para
além das pontuais operações de busca e salvamento, só com mudanças profundas no
modo como a UE lida com refugiados e imigrantes e com medidas ajustadas nos
países de trânsito e origem as tragédias poderão acabar.
Os últimos dados levam-nos a concluir que todos os meses, centenas de imigrantes
clandestinos do norte de África e do Médio Oriente desembarcam na ilha italiana de
Lampedusa que, de paraíso
turístico, passou a ser palco
de crise humanitária. Só este ano
já entraram 160 mil ilegais na Europa pelo sul de Itália. Uma pessoa se afoga a
cada duas horas. Grécia, Chipre e Malta recebem movimento similar embora menos
volumoso.
Os desembarques de imigrantes em
Itália acontecem agora predominantemente na Sicília, mas
Lampedusa, um dos pontos mais a sul da Europa, com a Tunísia a cerca de 100 quilómetros
e a Líbia a um pouco mais, continua a ser porto de chegadas ocasionais e
precárias.
Se
calhar a UE, em vez de exclusivamente fazer contas tão rentes à dívida grega (e
seu défice) e à
dívida italiana, talvez devesse fazer mais contas aos encargos que os países
europeus da orla mediterrânica têm com o combate à preservação das fronteiras
mais débeis da própria UE. E não deveria ficar o negócio de equipamentos como o
dos submarinos entregue à estratégia ou à ambição de Estados-Membros como foi o
caso da Alemanha em relação à Grécia e a Portugal.
Também
não é plausível aceitar o que dizia Durão Barroso ao clamar que a
responsabilidade era dos Estados, já que a Comissão Europeia não tem helicópteros
nem aviões nem navios. Ela também não tem outros equipamentos e, no entanto,
não se coíbe de mandar diretivas e mais diretivas a ponto de asfixiar a
autonomia legislativa dos parlamentos nacionais. Como também se torna diletante
ouvir o que disse hoje um dos responsáveis europeus, que a primeira coisa a
fazer para evitar que as pessoas se afoguem, é impedi-las de entrar nos barcos.
A isto pode responder-se que elas podem precipitar-se no mar ou para ele ser
empurradas!
A
situação do tráfico de escravos dos nossos dias (imigrantes
maltratados e enganados antes do embarcamento; e, se não mortos, convenientemente
explorados) já vem
de longe e é obra de mafias várias. O berço da civilização ocidental
transformou-se progressivamente na vala comum dos deserdados da sorte,
refugiados da guerra e enganados dos poderes políticos e económicos. Aumentou o
tráfico com os conflitos na zona mais setentrional e oriental da África e do
Médio Oriente. Quase não se dava conta disto na UE. Foi preciso um Chefe de
Estado sem poder militar e logístico (o Papa Francisco) ir a Lampedusa em 2013 e gritar
em nome da Igreja:
“A
globalização da indiferença torna-nos a todos «inominados», responsáveis sem
nome nem rosto”… “Quem chorou pela morte destes irmãos e
irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que
traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer
coisa para sustentar as próprias famílias?” (vd homilia de 8 de julho).
A partir daí, a Europa ficou como o miúdo que “parece que tem
bicho no corpo inteiro”: esbraceja, contorce-se, esperneia e brada, mas nada
muda. Morrem
e continuam a morrer...
***
O Público de hoje insere nas suas páginas
dois trabalhos jornalísticos sobre o tema, um de Clara Barata e
outro de João Manuel Rocha. De modo similar o faz a Visão com Teresa Campos.
Clara Barata refere que o primeiro-ministro italiano pediu ajuda aos parceiros na UE “para
combater os traficantes de escravos do século XXI” e as redes criminosas que
deixam um rasto de cadáveres no Mediterrâneo ao contrabandearem seres humanos,
não apenas por questões de “segurança e terrorismo”, mas também de “dignidade humana”.
Mas
resta saber o que discutirão os governantes neste Conselho Europeu, dado que “o
problema atual é a ausência de uma política comum de asilo e de imigração na
Europa”. Citando François Gemenne, do Centro de Estudos e de Investigação
Internacional do Instituto de Ciências Políticas de Paris (Sciences
Po), Clara Barata declara
que, para combater estas vagas humanas, que parecem imparáveis – segundo a ONU,
só este ano, 36 mil pessoas (número muito baixo em confronto com
outros dados) terão
já tentado cruzar o Mediterrâneo, a maior parte a partir da Líbia – o mais
sensato seria abrir as portas da Europa.
Por
seu turno, as economistas francesas, Emmanuelle Auriol, da Escola de Economia de
Toulouse, e Alice Mesnard, da City University de Londres, interrogam-se porque
é que os Estados não vendem vistos de entrada para imigrantes, por um lado, e,
por outro, aumentam a repressão sobre os traficantes e sobre os empregadores,
para que não contratem imigrantes ilegais, de forma não declarada. Esta
interrogação-proposta não colide com a atual política da União Europeia, que
assenta na repressão da imigração ilegal, mas explicita que só com repressão
não será possível eliminar o problema, pois a repressão potencia o tráfico, que
se torna negócio lucrativo.
Porém,
aquelas economistas reconhecem que, para que a sua ideia de vender vistos de
imigração funcionasse, os governantes teriam de enfrentar um ambiente político
que se tornou tóxico, com o crescimento de partidos de extrema-direita e paladinos
da anti-imigração.
Apesar
de estar provado que a repressão se torna contraproducente, o primeiro-ministro
britânico, David Cameron, afirma que é preciso impedir que os imigrantes se
façam ao mar, para “pôr fim a estes cargueiros da morte”. A contrario, François Gemenne, combatendo ideias feitas, defende
que encerrar fronteiras não serve de nada, não evita os fluxos migratórios:
antes os torna mais perigosos. Este especialista em emigração / imigração
salienta que “a Europa continua a ser um destino muito atrativo para os
migrantes, que são cada vez mais numerosos por causa da multiplicação das
crises” – o que, dada a política europeia de não permitir vias legais de acesso
à Europa, potencia negócio altamente lucrativo para os traficantes.
Segundo
aquele especialista, “o único denominador comum é a vigilância e o controlo das
fronteiras, que se tornaram o alfa e o ómega da política de imigração europeia”.
Mais: “ao contrário do que se diz frequentemente, a abertura de fronteiras não
provocaria um afluxo maciço de migrantes”, já que “não é abertura ou o fecho de
fronteiras que provoca os grandes movimentos migratórios”.
Também
Gemenne não gosta muito da ideia de vender vistos, considerando-a “uma proposta
demasiado neoliberal, que favoreceria os imigrantes mais abonados”, mas
concorda que as sociedades europeias se tornaram muito pouco recetivas à
imigração. Por outro lado, reconhece que “é difícil mudar as ideias feitas
sobre a imigração”. Havendo uma grande diferença entre a realidade e a perceção
pública sobre os imigrantes, que muitas vezes é alimentada de mentiras, “muitas
políticas são decididas em função das perceções e não sobre a realidade”. Além
disso, verifica que “os partidos de extrema-direita conseguiram impor a sua
agenda política e mediática sobre a imigração”, o que representa uma pesada derrota
para a democracia.
Alice
Mesnard, do seu lado, anota que “as primeiras discussões na UE continuam a
tentar externalizar o problema, empurrá-lo para as fronteiras”. E assegurando o
realismo da sua proposta, esconjura como não realista o “pretender empurrar
todos os imigrantes de volta para o mar.” E, situando o caso do Mediterrâneo no
quadro dos direitos humanos, explica:
“Estas pessoas estão desesperadas
e estão a ser exploradas por mafias. Mas os imigrantes podem pagar impostos,
ter os seus direitos legalmente reconhecidos. Não podemos é continuar a fechar
os olhos, com as pessoas a morrer.”.
***
João Manuel Rocha, por sua vez, faz o levantamento
de algumas medidas “não miraculosas”, que estão ao alcance da UE e de outros
países, nomeadamente dos mais ricos: acolher
mais refugiados; criar rotas legais;
uniformizar regras de asilo; promover a imigração sazonal; e estabelecer garantias nos campos de trânsito.
Quanto ao acolhimento
de mais refugiados, o relator especial da ONU para os
direitos humanos e migrações, o canadiano François Crépeau, entende que os
países ricos devem aceitar um milhão de refugiados da Síria nos próximos 5 anos,
uma vez que se prevê que um número crescente de pessoas, designadamente sírios,
continue a fugir das zonas de conflito. Se não se criar um mecanismo de
acolhimento oficial, abre-se a via aos traficantes, que é mais dura.
Verificando
que, só no ano de 2014, apesar da inação da Europa, este Continente deu
proteção a mais de 163 mil pessoas perseguidas por motivos étnicos, religiosos
ou políticos ou por razões humanitárias, opina que o dever de acolhimento se
deve estender a outros países como o Canadá e a Austrália.
No atinente
à criação de rotas legais, parece que uma forma de retirar a
importância dos traficantes junto de refugiados e imigrantes e de evitar que
estes tenham de se arriscar em perigosas rotas migratórias é a criação de mais
formas legais de entrada na UE – ideia defendida por vários grupos de apoio a
refugiados: igrejas, mesquitas e membros de comunidades de imigrantes instaladas
nos países de acolhimento. Ademais, alargar o âmbito das leis de reagrupamento
familiar constitui outra forma de responder à pressão migratória e ao fluxo de
refugiados. Por outro lado, devia gizar-se a possibilidade de os pedidos de
asilo serem formulados a partir de cidade próxima do local de estacionamento dos
migrantes e refugiados, independentemente do país de destino.
Também,
a par da criação de rotas seguras, o Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados (ACNUR)
– que, segundo a Visão de hoje, denomina
o fenómeno atual do Mediterrâneo como uma “hecatombe nunca vista” – defende a
criação de campanhas de informação aos imigrantes e refugiados sobre os perigos
de entrada ilegal na Europa.
A uniformização
das regras de asilo é outra medida necessária para pôr cobro aos
desequilíbrios existentes. Não há uma política comum de asilo, que devia existir
pelo menos quando estivessem em causa razões
humanitárias.
Essa política
comum de asilo não deve ser baseada em critérios igualitaristas, mas em critérios
de equidade, ou seja, proceder à distribuição proporcional de refugiados e
imigrantes de acordo com a dimensão e riqueza de um país. Não sendo fácil tarefa,
o ACNUR defende a melhoria das condições de acolhimento, consoante as
necessidades específicas de famílias, mulheres e crianças e a criação de dignas
condições de retorno para os requerentes de asilo logo que se verifique não
precisarem de proteção nos países de origem.
Por outro lado, o fomento da imigração sazonal iria colmatar as necessidades de mão de obra
em trabalhos sazonais. Em vez de os países da Europa andarem a explorar o trabalho
barato dos imigrantes ilegais, deveriam organizar e controlar os fluxos necessários
de trabalhadores, dando resposta aceitável
aos muitos cidadãos de países da África subsariana que procuram chegar à Europa
para tentarem melhorar as suas condições de vida.
Crépeau
advoga a criação de vistos sazonais que permitam a imigrantes de baixas
qualificações entrarem num país por um certo período ao longo de vários anos,
tendo de regressar à origem se não arranjarem emprego ao fim de alguns meses, mas
podendo voltar no ano seguinte.
No atinente
a campos de trânsito, que configuram uma situação não desejável se
prolongada (que os
grupos de defesa dos direitos humanos olham com desconfiança), o ACNUR admitiu prestar
apoio a eventuais campos de trânsito em África, desde que sejam asseguradas “certas
garantias”, a discutir, bem como à ponderação das suas implicações e o
subsequente destino das pessoas.
A este
respeito, Christopher Hein, diretor do Conselho Europeu de Refugiados,
declarou: “Depois da enorme tragédia de sábado... eu não seria totalmente
contra campos de trânsito em países africanos, mas deve haver garantias de que
as pessoas que estejam em condições de irem para países da UE [vão]”. Deveriam a pari ser melhoradas as condições de
vida nos países de trânsito ou de “primeiro asilo”, como o Egito, reforçando as
estruturas de apoio e as medidas de punição para traficantes.
***
Uma
coisa é certa: a Europa e o Mundo não podem continuar no campeonato da
indiferença globalizada e obstinada enquanto “eles” são chicoteados, explorados
e afogados. Não pode continuar a assistir-se com serenidade ao espetáculo da
morte conveniente anónima de tantos e tantas.
Que é
feito do teu irmão? (Gn 4,9). Porquê a omissão da parte dos poderes?
Vem
aí a grande cimeira dos presidentes dos parlamentos da UE e dos parlamentos da
bacia do Mediterrâneo para debater o tema das migrações, em Lisboa a 11 e 12 de
maio. Aguardemos!
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