sexta-feira, 24 de abril de 2015

Morrem e continuam a morrer...

O Conselho Europeu discute hoje, dia 23 de abril, em cimeira extraordinária em Bruxelas os naufrágios no Mediterrâneo, precedida do conselho de ministros dos Negócios Estrangeiros e do Interior realizada na passada segunda-feira, dia 20, no Luxemburgo, para iniciar o debate da estratégia que venha a impedir tragédias como a que aconteceu no domingo passado: mais de 700 pessoas terão perdido a vida quando a embarcação em que viajavam, com destino ao Continente europeu, se afundou junto à costa da Líbia. Mais casos se registaram nos dias seguintes.
A este respeito, Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, declarou em mensagem vídeo divulgada na sua conta na rede social Twitter:
“A situação no Mediterrâneo é dramática. Não pode continuar assim. Não podemos aceitar que centenas de pessoas morram ao tentar atravessar o mar rumo à Europa. É por isso que decidi convocar um Conselho Europeu extraordinário para esta quinta-feira”.

Para além das pontuais operações de busca e salvamento, só com mudanças profundas no modo como a UE lida com refugiados e imigrantes e com medidas ajustadas nos países de trânsito e origem as tragédias poderão acabar.
Os últimos dados levam-nos a concluir que todos os meses, centenas de imigrantes clandestinos do norte de África e do Médio Oriente desembarcam na ilha italiana de Lampedusa que, de paraíso turístico, passou a ser palco de crise humanitária.  Só este ano já entraram 160 mil ilegais na Europa pelo sul de Itália. Uma pessoa se afoga a cada duas horas. Grécia, Chipre e Malta recebem movimento similar embora menos volumoso.
Os desembarques de imigrantes em Itália acontecem agora predominantemente na Sicília, mas Lampedusa, um dos pontos mais a sul da Europa, com a Tunísia a cerca de 100 quilómetros e a Líbia a um pouco mais, continua a ser porto de chegadas ocasionais e precárias.
Se calhar a UE, em vez de exclusivamente fazer contas tão rentes à dívida grega (e seu défice) e à dívida italiana, talvez devesse fazer mais contas aos encargos que os países europeus da orla mediterrânica têm com o combate à preservação das fronteiras mais débeis da própria UE. E não deveria ficar o negócio de equipamentos como o dos submarinos entregue à estratégia ou à ambição de Estados-Membros como foi o caso da Alemanha em relação à Grécia e a Portugal.
Também não é plausível aceitar o que dizia Durão Barroso ao clamar que a responsabilidade era dos Estados, já que a Comissão Europeia não tem helicópteros nem aviões nem navios. Ela também não tem outros equipamentos e, no entanto, não se coíbe de mandar diretivas e mais diretivas a ponto de asfixiar a autonomia legislativa dos parlamentos nacionais. Como também se torna diletante ouvir o que disse hoje um dos responsáveis europeus, que a primeira coisa a fazer para evitar que as pessoas se afoguem, é impedi-las de entrar nos barcos. A isto pode responder-se que elas podem precipitar-se no mar ou para ele ser empurradas!
A situação do tráfico de escravos dos nossos dias (imigrantes maltratados e enganados antes do embarcamento; e, se não mortos, convenientemente explorados) já vem de longe e é obra de mafias várias. O berço da civilização ocidental transformou-se progressivamente na vala comum dos deserdados da sorte, refugiados da guerra e enganados dos poderes políticos e económicos. Aumentou o tráfico com os conflitos na zona mais setentrional e oriental da África e do Médio Oriente. Quase não se dava conta disto na UE. Foi preciso um Chefe de Estado sem poder militar e logístico (o Papa Francisco) ir a Lampedusa em 2013 e gritar em nome da Igreja:
A globalização da indiferença torna-nos a todos «inominados», responsáveis sem nome nem rosto”… “Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias?” (vd homilia de 8 de julho). 

A partir daí, a Europa ficou como o miúdo que “parece que tem bicho no corpo inteiro”: esbraceja, contorce-se, esperneia e brada, mas nada muda. Morrem e continuam a morrer...
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O Público de hoje insere nas suas páginas dois trabalhos jornalísticos sobre o tema, um de Clara Barata e outro de João Manuel Rocha. De modo similar o faz a Visão com Teresa Campos.
Clara Barata refere que o primeiro-ministro italiano pediu ajuda aos parceiros na UE “para combater os traficantes de escravos do século XXI” e as redes criminosas que deixam um rasto de cadáveres no Mediterrâneo ao contrabandearem seres humanos, não apenas por questões de “segurança e terrorismo”, mas também de “dignidade humana”.
Mas resta saber o que discutirão os governantes neste Conselho Europeu, dado que “o problema atual é a ausência de uma política comum de asilo e de imigração na Europa”. Citando François Gemenne, do Centro de Estudos e de Investigação Internacional do Instituto de Ciências Políticas de Paris (Sciences Po), Clara Barata declara que, para combater estas vagas humanas, que parecem imparáveis – segundo a ONU, só este ano, 36 mil pessoas (número muito baixo em confronto com outros dados) terão já tentado cruzar o Mediterrâneo, a maior parte a partir da Líbia – o mais sensato seria abrir as portas da Europa.
Por seu turno, as economistas francesas, Emmanuelle Auriol, da Escola de Economia de Toulouse, e Alice Mesnard, da City University de Londres, interrogam-se porque é que os Estados não vendem vistos de entrada para imigrantes, por um lado, e, por outro, aumentam a repressão sobre os traficantes e sobre os empregadores, para que não contratem imigrantes ilegais, de forma não declarada. Esta interrogação-proposta não colide com a atual política da União Europeia, que assenta na repressão da imigração ilegal, mas explicita que só com repressão não será possível eliminar o problema, pois a repressão potencia o tráfico, que se torna negócio lucrativo.
Porém, aquelas economistas reconhecem que, para que a sua ideia de vender vistos de imigração funcionasse, os governantes teriam de enfrentar um ambiente político que se tornou tóxico, com o crescimento de partidos de extrema-direita e paladinos da anti-imigração.
Apesar de estar provado que a repressão se torna contraproducente, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, afirma que é preciso impedir que os imigrantes se façam ao mar, para “pôr fim a estes cargueiros da morte”. A contrario, François Gemenne, combatendo ideias feitas, defende que encerrar fronteiras não serve de nada, não evita os fluxos migratórios: antes os torna mais perigosos. Este especialista em emigração / imigração salienta que “a Europa continua a ser um destino muito atrativo para os migrantes, que são cada vez mais numerosos por causa da multiplicação das crises” – o que, dada a política europeia de não permitir vias legais de acesso à Europa, potencia negócio altamente lucrativo para os traficantes.
Segundo aquele especialista, “o único denominador comum é a vigilância e o controlo das fronteiras, que se tornaram o alfa e o ómega da política de imigração europeia”. Mais: “ao contrário do que se diz frequentemente, a abertura de fronteiras não provocaria um afluxo maciço de migrantes”, já que “não é abertura ou o fecho de fronteiras que provoca os grandes movimentos migratórios”.  
Também Gemenne não gosta muito da ideia de vender vistos, considerando-a “uma proposta demasiado neoliberal, que favoreceria os imigrantes mais abonados”, mas concorda que as sociedades europeias se tornaram muito pouco recetivas à imigração. Por outro lado, reconhece que “é difícil mudar as ideias feitas sobre a imigração”. Havendo uma grande diferença entre a realidade e a perceção pública sobre os imigrantes, que muitas vezes é alimentada de mentiras, “muitas políticas são decididas em função das perceções e não sobre a realidade”. Além disso, verifica que “os partidos de extrema-direita conseguiram impor a sua agenda política e mediática sobre a imigração”, o que representa uma pesada derrota para a democracia.
Alice Mesnard, do seu lado, anota que “as primeiras discussões na UE continuam a tentar externalizar o problema, empurrá-lo para as fronteiras”. E assegurando o realismo da sua proposta, esconjura como não realista o “pretender empurrar todos os imigrantes de volta para o mar.” E, situando o caso do Mediterrâneo no quadro dos direitos humanos, explica:
“Estas pessoas estão desesperadas e estão a ser exploradas por mafias. Mas os imigrantes podem pagar impostos, ter os seus direitos legalmente reconhecidos. Não podemos é continuar a fechar os olhos, com as pessoas a morrer.”.
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João Manuel Rocha, por sua vez, faz o levantamento de algumas medidas “não miraculosas”, que estão ao alcance da UE e de outros países, nomeadamente dos mais ricos: acolher mais refugiados; criar rotas legais; uniformizar regras de asilo; promover a imigração sazonal; e estabelecer garantias nos campos de trânsito.
Quanto ao acolhimento de mais refugiados, o relator especial da ONU para os direitos humanos e migrações, o canadiano François Crépeau, entende que os países ricos devem aceitar um milhão de refugiados da Síria nos próximos 5 anos, uma vez que se prevê que um número crescente de pessoas, designadamente sírios, continue a fugir das zonas de conflito. Se não se criar um mecanismo de acolhimento oficial, abre-se a via aos traficantes, que é mais dura.
Verificando que, só no ano de 2014, apesar da inação da Europa, este Continente deu proteção a mais de 163 mil pessoas perseguidas por motivos étnicos, religiosos ou políticos ou por razões humanitárias, opina que o dever de acolhimento se deve estender a outros países como o Canadá e a Austrália.
No atinente à criação de rotas legais, parece que uma forma de retirar a importância dos traficantes junto de refugiados e imigrantes e de evitar que estes tenham de se arriscar em perigosas rotas migratórias é a criação de mais formas legais de entrada na UE – ideia defendida por vários grupos de apoio a refugiados: igrejas, mesquitas e membros de comunidades de imigrantes instaladas nos países de acolhimento. Ademais, alargar o âmbito das leis de reagrupamento familiar constitui outra forma de responder à pressão migratória e ao fluxo de refugiados. Por outro lado, devia gizar-se a possibilidade de os pedidos de asilo serem formulados a partir de cidade próxima do local de estacionamento dos migrantes e refugiados, independentemente do país de destino.
Também, a par da criação de rotas seguras, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) – que, segundo a Visão de hoje, denomina o fenómeno atual do Mediterrâneo como uma “hecatombe nunca vista” – defende a criação de campanhas de informação aos imigrantes e refugiados sobre os perigos de entrada ilegal na Europa.
A uniformização das regras de asilo é outra medida necessária para pôr cobro aos desequilíbrios existentes. Não há uma política comum de asilo, que devia existir pelo menos quando estivessem em causa razões humanitárias.
Essa política comum de asilo não deve ser baseada em critérios igualitaristas, mas em critérios de equidade, ou seja, proceder à distribuição proporcional de refugiados e imigrantes de acordo com a dimensão e riqueza de um país. Não sendo fácil tarefa, o ACNUR defende a melhoria das condições de acolhimento, consoante as necessidades específicas de famílias, mulheres e crianças e a criação de dignas condições de retorno para os requerentes de asilo logo que se verifique não precisarem de proteção nos países de origem.
Por outro lado, o fomento da imigração sazonal iria colmatar as necessidades de mão de obra em trabalhos sazonais. Em vez de os países da Europa andarem a explorar o trabalho barato dos imigrantes ilegais, deveriam organizar e controlar os fluxos necessários de trabalhadores, dando resposta aceitável aos muitos cidadãos de países da África subsariana que procuram chegar à Europa para tentarem melhorar as suas condições de vida.
Crépeau advoga a criação de vistos sazonais que permitam a imigrantes de baixas qualificações entrarem num país por um certo período ao longo de vários anos, tendo de regressar à origem se não arranjarem emprego ao fim de alguns meses, mas podendo voltar no ano seguinte.
No atinente a campos de trânsito, que configuram uma situação não desejável se prolongada (que os grupos de defesa dos direitos humanos olham com desconfiança), o ACNUR admitiu prestar apoio a eventuais campos de trânsito em África, desde que sejam asseguradas “certas garantias”, a discutir, bem como à ponderação das suas implicações e o subsequente destino das pessoas.
A este respeito, Christopher Hein, diretor do Conselho Europeu de Refugiados, declarou: “Depois da enorme tragédia de sábado... eu não seria totalmente contra campos de trânsito em países africanos, mas deve haver garantias de que as pessoas que estejam em condições de irem para países da UE [vão]”. Deveriam a pari ser melhoradas as condições de vida nos países de trânsito ou de “primeiro asilo”, como o Egito, reforçando as estruturas de apoio e as medidas de punição para traficantes.
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Uma coisa é certa: a Europa e o Mundo não podem continuar no campeonato da indiferença globalizada e obstinada enquanto “eles” são chicoteados, explorados e afogados. Não pode continuar a assistir-se com serenidade ao espetáculo da morte conveniente anónima de tantos e tantas.
Que é feito do teu irmão? (Gn 4,9). Porquê a omissão da parte dos poderes?

Vem aí a grande cimeira dos presidentes dos parlamentos da UE e dos parlamentos da bacia do Mediterrâneo para debater o tema das migrações, em Lisboa a 11 e 12 de maio. Aguardemos!

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