Domingo de Páscoa

“Vi o sepulcro de Cristo vivo e a glória do Ressuscitado”. Estas são palavras atribuídas a Maria Madalena no texto da antiga sequência pascal entoada antes do Evangelho da missa do I Domingo da Páscoa ou Domingo da Ressurreição – Victimae paschali laudes, atribuída a Wipo de Borgonha (+1048). Trata-se da sequência-prosa da Páscoa, relacionada em parte com o Alleluia Christus ressurgens. 

As sequências aleluiáticas litúrgicas terão a sua origem no costume medieval de acrescentar à vogal final do “aleluia” solene – antes da proclamação do evangelho – uma série de notas que se desdobravam num longo vocalizo chamado por muitos de “jubilum do Aleluia” ou “sequência”. As fontes mais antigas do Gradual Gregoriano confirmam a sua existência ao elencar ao menos nove Alleluias cum sequentia no Gradual de Mont-Bladin, no século IX.

São aquelas palavras e os testemunhos dos discípulos que levam cada um dos cristãos de hoje a proclamar por palavra e ação: “Ressuscitou Cristo, minha esperança: precederá os seus discípulos na Galileia”. Com efeito, agora com o Ressuscitado o discípulo deve revisitar, para o assumir em definitivo, todo o ensinamento que Jesus lhe ministrou desde o início da sua pregação na Galileia; e deve fazer a sua leitura à luz da Ressurreição, permitindo que, para o efeito, o Espírito Santo se torne seu aliado. Depois, aquela fé pessoal tem de tornar-se confissão pública na comunidade, que a uníssono clama que “Sabemos e acreditamos: Cristo ressuscitou dos mortos”.

***

Maria e José, quando perderam o Menino, foram procura-Lo ao Templo. E “lá O encontraram três dias depois, sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas”… ocupado nas coisas de Seu Pai, como Ele próprio alegou (cf Lc 2,46.49b).

Paralelamente, quando as mulheres e os discípulos perderam o Mestre pela prisão, morte e sepultura, foram procurá-Lo aonde Ele não estava, no mundo dos mortos. “Encontraram a pedra da porta do túmulo removida, mas, entrando, não acharam o corpo de Jesus”. Entretanto, apareceram-lhes “dois homens com trajes resplandecentes” (anjos) que as interpelaram: “Porque procurais entre os mortos Aquele que está vivo”? Não está aqui (não era este o seu lugar), “ressuscitou!” (cf Lc 24,1-6).

E, consequentemente, elas receberam o mandato de entregar essa boa nova aos discípulos e a Pedro (cf Mc 16,7). Porém, os discípulos não acreditaram nas mulheres: “as suas palavras pareciam um desvario” (Lc 24,11). No entanto, Pedro deu algum crédito às palavras das mulheres, nomeadamente de Maria Madalena, e resolveu ir ao sepulcro verificar a notícia (cf Lc 24,12), levando consigo João, o discípulo amado. Corriam os dois, mas João, que era mais novo, chegou primeiro a correr. Não obstante, esperou deferentemente por Pedro: não entrou, “debruçou-se para dentro do túmulo e viu os panos de linho espalmados no chão”. Pedro é que verificou tudo: ficou admirado por ver “os panos de linho espalmados no chão”, mas reparou que o lenço que Jesus tivera enrolado na cabeça estava enrolado noutra posição. Entrou também o outro discípulo, que viu e começou a crer, pois ainda não tinham entendido a Escritura segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos (cf Jo 20,3-9).

O caso de Maria Madalena, a quem o próprio Cristo apareceu, traz um outro elemento. Não se encontra o Cristo entre os mortos, mas Ele aparece-lhe no jardim, junto ao mundo dos mortos. Do Éden (jardim), onde Deus colocara o primeiro homem, cheio de vitalidade e bem-aventurança, surgiu a morte do homem e a consequente expulsão do homem do jardim. Da região tumular, com o odor de morte, saiu redivivo o Homem que morreu para salvação da humanidade, ou seja, para que o homem voltasse ao “Jardim” (mas fora preciso passar pelo transe da agonia noutro jardim, o Jardim das Oliveiras).

Maria Madalena, vendo o sepulcro vazio, começou a chorar. Alguém lhe pergunta porque chora e ela explica: “Levaram o meu Senhor e não sei onde O puseram”. Pensando que o homem que a enfrentava  era  o jardineiro, disse-lhe: “Se foste tu, diz-me onde Ele está, que eu vou buscá-Lo”. Porém, quando Ele pronunciou o nome “Maria”, ela reconheceu-O e chamou-Lhe “Meu Mestre”. (cf Jo 20,12-16).

Como no Éden, onde o Senhor o colocara (cf Gn 2,15-18), o homem não podia tocar na árvore da “ciência” (poder de decretar o que é bem e o que é mal. Isso pertence a Deus), também aqui Maria não podia deter, condicionar o Senhor: “Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai; mas vai ter com meus irmãos e diz-lhes: subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus”. Maria fez como lhe foi mandado pelo Mestre e Senhor (cf Jo 20,17-18).

Depois, os discípulos partiram para a Galileia onde se encontraram com o Senhor, que lhes deu as últimas instruções no monte da tentação onde recusou o poder que o diabo alegadamente pretendia dar-Lhe (cf Mt 4,8-11; Lc 4,5-8), mas aceita o poder – todo o poder no Céu e na Terra – que o Pai Lhe deu (Mt 28,18).

Entretanto, ainda ao anoitecer do primeiro dia da semana, apareceu de súbito, aos apóstolos em Jerusalém na casa onde eles estavam, com as portas fechadas por medo dos judeus. Saudou-os com o habitual “a paz esteja convosco”, deu-lhes o mandato de irem por todo o mundo fazer discípulos, soprou sobre Eles, concedeu-lhes o Espírito Santo e confiou-lhes o poder de perdoar os pecados. Como Tomé não estava e porfiou não acreditar se não visse com os olhos e com as nãos os lugares do cravos e das chagas, apareceu oito dias depois e desafiou Tomé ao ato de fé e adoração, Meu Senhor e meu Deus” (cf Jo 20,19-29; Lc 24,36-40; Mc 16,14-16).

Não podemos omitir o episódio de Emaús relatado por Lucas (vd Lc 24,13-35) e evocado sinteticamente por Marcos (vd Mc 16,12-13), em que Ele não só aparece no caminho de dois dos discípulos que regressavam a casa consternados pelo que acontecera em Jerusalém nos últimos dias, mas os interpelou diretamente, pedindo que Lhe relatassem (a Ele que não Se dera a conhecer) o que acontecera efetivamente. Eles contaram e referiram que umas mulheres afirmaram ter visto ressuscitado o Mestre. Por seu turno, repreendeu-os pela sua pouca fé e explicou-lhes tudo o que nas Escrituras dizia respeito ao Messias desde Moisés aos Profetas. E, ao chegarem a casa, como Ele fizesse menção de prosseguir caminho, ofereceram-Lhe refeição e pernoita, que Ele aceitou. Ora, à mesa, ao dar graças e partir o pão, reconheceram-No, mas Ele desapareceu tão de repente como lhes tinha surgido no caminho. Pressurosos foram a Jerusalém contar aos confrades o sucedido, os quais referira que já tinham tido visto o Senhor.

***

Ora, não basta estudar a Páscoa; é necessário colher as lições que ela disponibiliza largamente para quem estiver atento às coisas do alto. Sim, quem se reconhece filho da Páscoa purifica-se do fermento velho da malícia, celebra com os pães ázimos da pureza e da verdade (cf 1cor 5,8) e necessariamente e se afeiçoa às coisas do alto onde está Cristo, sentado à direita de Deus (cf Cl 3,1). Por outro lado sabe que Jesus Se encontra, não no mundo dos mortos (descera à mansão deles para lhes oferecer a salvação a que eles têm acesso graças aos méritos de Cristo), mas em qualquer lugar onde se tratem as coisas do Pai e se procure restabelecer a dignidade (jardim) que o homem tenha perdido, qualquer que tenha sido o motivo. Pode ser o Templo, como pode ser a casa, ou o caminho, o monte ou o vale, o lazer ou o trabalho, o convívio ou a cama do enfermo, a creche e o asilo ou a prisão, a escola e a oficina ou o campo, a terra ou o mar e o ar.

Depois, vem a obrigação da deferência para com os mais velhos, os que têm a responsabilidade da orientação, os que precisam mais, os que não têm vez e voz, os despojados de bens e/ou da sorte. E não se pode condicionar a vontade ou os passos do Senhor (“não me detenhas”), mas devemos obedecer ao seu mandato: vai dizer aos meus irmãos.

Ademais temos que perceber como a Páscoa nos torna irmãos de Cristo (“a meus irmãos”), filhos de Deus (“meu Pai que é vosso Pai, meu Deus, que é vosso Deus”) e, por consequência, irmãos uns dos outros pela fraternidade pascal.

Cumpre-nos pois, aceitar os dons da Páscoa e assumir as obrigações que ela acarreta. Temos a fé, temos de a professar e promover. Temos a paz, temos de construir a paz e educar para ela. Temos o Espírito Santo, temos de Lhe ser dóceis e de O comunicar. Temos o perdão de Deus, temos de perdoar. Somos discípulos, temos de nos tornar apóstolos. Somos irmãos, temos de construir a fraternidade, sem deixar de nela incluir todos e cada um. Temos a Páscoa, temos de ser testemunhas e construtores da esperança. Temos a caridade, não podemos deixar de sublimar com ela a justiça a quem somos obrigados para com Deus e para com o próximo.

***

“Este é o dia que o Senhor fez: nele exultemos e nos alegremos” – Sl 118 (117), 24.