quinta-feira, 23 de abril de 2015

Descontrolo financeiro e más práticas no TC

Diz o povo que “em bom pano cai a nódoa”. Resta saber se se trata verdadeiramente de bom pano e se apenas de nódoa.
Vem este considerando a propósito do enunciado em epígrafe sobre o que apurou a fiscalização operada pelo TdC (Tribunal de Contas) ao TC (Tribunal Constitucional), a fazer fé naquilo que a imprensa de hoje veicula, 22 de abril, por exemplo o Jornal Público, em trabalho jornalístico de Maria João Lopes e Pedro Sales Dias, e de que os telejornais se fizeram eco.
O TdC é responsável pela verificação das condições de aposição de visto prévio a determinados atos das entidades públicas, nomeadamente contratos, e à fiscalização da boa aplicação dos dinheiros públicos, em conformidade com a lei e as regras da contabilidade e pública, bem como da existência ou não do mecanismo que indicie as boas práticas administrativas e financeiras. Ele é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe (vd CRP, art.º 214.º/1).
É óbvio que nenhum departamento do Estado está imune da tentação e do erro nem isento da fiscalização por parte do TdC. E, desta vez, calhou a sorte – acontecimento inédito – ao TC, depois de a fiscalização do polícia e juiz das contas públicas ter feito a sua auditoria a outros tribunais superiores, designadamente o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Administrativo (STA).
Nada de estranhar será o facto de o TC nunca ter sofrido a fiscalização da parte do TdC. Em primeiro lugar, é o tribunal supremo de formação mais recente, criado na sequência da primeira revisão da CRP (Constituição da República Portuguesa), consignada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro. Em segundo lugar, ninguém pensaria que o TC pudesse incorrer em desrespeito pela legalidade, já que este “é o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional” (cf CRP, art.º 221.º). Ademais, as suas decisões “são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras autoridades” (cf  art.º 2.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com a redação que lhe foi dada pela LO n.º 5/2015, de 10 de abril).
Nos termos do art.º 5.º da sua lei orgânica (LO n.º5/2015, de 10 de abril), é dotado de autonomia administrativa e dispõe de orçamento próprio, inscrito nos encargos gerais da Nação do Orçamento do Estado.
Os artigos 6.º a 11.º-A estabelecem as suas competências, de acordo com o art.º 223.º da CRP:
- Apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade nos termos dos artigos 277.º e seguintes da Constituição e nos da sua lei orgânica; (art.º 6.º - apreciação da inconstitucionalidade e da ilegalidade).
- Verificar a morte e declarar a impossibilidade física permanente do PR, bem como verificar os impedimentos temporários do exercício das suas funções, bem como verificar a perda do cargo de PR, nos casos previstos no n.º 3 do artigo 129.º e no n.º 3 do artigo 130.º da CRP; (art.º 7.º - em relação ao Presidente da República).
- Julgar os recursos relativos à perda do mandato de Deputado à Assembleia da República ou de deputado a uma das Assembleias Legislativas Regionais; (art.º 7.º-A – sobre o mandato de deputados).
- Receber e admitir as candidaturas para PR, bem como verificar a morte e declarar a incapacidade para o exercício da função presidencial de qualquer candidato a PR, para o efeito do disposto no n.º 3 do art.º 124.º da CRP; 
- Julgar os recursos interpostos de decisões sobre reclamações e protestos apresentados nos atos de apuramento, parcial, distrital e geral da eleição do PR, nos termos dos artigos 114.º e 115.º do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio; 
- Julgar os recursos de contencioso de apresentação de candidaturas e de contencioso eleitoral com relação às eleições para o PR, Assembleia da República, assembleias regionais e órgãos de poder local;
- Receber e admitir as candidaturas relativas à eleição dos deputados ao Parlamento Europeu e julgar os correspondentes recursos e, bem assim, julgar os recursos de contencioso eleitoral referente à mesma eleição; 
- Julgar os recursos contenciosos interpostos de atos administrativos definitivos e executórios praticados pela Comissão Nacional de Eleições ou por outros órgãos da administração eleitoral; 
- Julgar os recursos relativos às eleições realizadas na Assembleia da República e nas Assembleias Legislativas Regionais; (art.º 8.º - sobre processos eleitorais).
- Aceitar a inscrição de partidos em registo próprio do TC, bem como apreciar a legalidade das denominações, siglas e símbolos dos partidos, coligações e frentes de partidos, ainda que constituídas apenas para fins eleitorais, e apreciar a sua identidade ou semelhança com as de outros partidos, coligações ou frentes; 
- Proceder às anotações referentes a partidos, coligações ou frentes de partidos exigidas por lei;
- Julgar a impugnação de eleições e de deliberações de órgãos de partidos, que, nos termos da lei, sejam recorríveis; 
- Apreciar a regularidade e a legalidade das contas dos partidos, nelas incluindo as dos grupos parlamentares, de Deputado único representante dum partido e de Deputados não inscritos em grupo parlamentar ou de deputados independentes na Assembleia da República e nas Assembleias Legislativas das regiões autónomas, e das campanhas eleitorais, nos termos da lei, e aplicar as correspondentes sanções; 
- Ordenar a extinção de partidos e de coligações de partidos, nos termos da lei; (art.º 9.º - sobre partidos, coligações e frentes).
- Declarar, nos termos e para os efeitos da Lei n.º 64/78, de 6 de outubro, que uma qualquer organização perfilha a ideologia fascista e decretar a respectiva extinção; (art.º 10.º - sobre organizações fascistas).
- Verificar previamente a constitucionalidade e a legalidade das propostas de referendo nacional, regional e local, previstos no n.º 1 do art.º 115.º, no n.º 2 do art.º 232.º e nos artigos 240.º e 256.º da CRP, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao respetivo universo eleitoral, e o mais que, relativamente à realização desses referendos, lhe for cometido por lei; (art.º 11.º - relativo aos referendos).
- Receber as declarações de património e rendimentos, bem como as declarações de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos, e tomar as decisões sobre essas matérias que se encontrem previstas nas respetivas leis. (art.º 11.º - A -relativo a declarações de titulares de cargos políticos).

São muitas e diversas competências que atingem o âmago do ordenamento jurídico, um significativo escol de personalidades e os alicerces e nervos fundamentais da democracia portuguesa. É um tribunal eminentemente político no sentido fundador e supremamente regulador e sancionador ético-político.
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Pois, na primeira auditoria que lhe foi movida, o TC é surpreendido em termos da “fiabilidade” da prestação de contas e na existência de várias irregularidades. Em contraponto, este tribunal político responde com “desgosto” e “preocupação”, mas aponta ao TdC, a meu ver a despropósito, “infundadas conclusões”.
A primeira coisa que se refere do TC é o descontrolo financeiro nas contas daquela instância superior relativas a 2013. Relativamente a esta matéria, o site do TdC considera “desfavorável” a “fiabilidade dos documentos de prestação de contas” desse ano face a erros e irregularidades, entre os quais se destaca o facto de o sistema de controlo interno do tribunal fiscalizado ser “deficiente”, de não existir um manual de procedimentos de controlo interno, assim como o de não se registar o cumprimento dos “princípios e regras orçamentais” relativamente a 1,4 milhões de euros no âmbito da “contabilização da receita e da despesa no orçamento”. Ficou também explícito no relatório que o TC não contabilizou nas suas contas 13 mil euros correspondentes ao acionamento de garantias bancárias bem como a transação de 21 mil euros em gastos.
A isto, o TC reage em comunicado através do qual regista “com preocupação” que gizem “infundadas conclusões” e se formulem “recomendações aparentemente assentes em deficiente compreensão do estatuto constitucional próprio deste tribunal, de que decorre a “autonomia administrativa e financeira”. Ora, parece nem se tratar de simples nódoa nem de pano tão bom!
Parece-me abusiva a adução do argumento da autonomia, já que a autonomia não implica a dispensa do cumprimento da lei, das regras da contabilidade pública e da implementação de mecanismos suficientes de boas práticas administrativas, financeiras e logísticas. Era o que faltava o TC não gozar de autonomia. Mas a autonomia pressupõe a capacidade de controlo interno. E o TC, que tem altas e exclusivas competências de controlo em tão importantes e alargados níveis, deveria dar o exemplo de Estado nestas matérias administrativas, financeiras e logísticas, que são o suporte da boa decisão no âmbito político e no quadro superior da justiça, sobretudo da justiça constitucional.
Ainda bem que o presidente do TC vem garantir que vão ser corrigidas “com a brevidade possível” as situações que estejam “em desconformidade” e foi com “verdadeiro desgosto” e “preocupação” que reagiu ao relatório da auditoria.
Porém, reage mal ao denominá-lo de “seguramente injusto perante o que é a realidade” e a “gestão financeira”. Neste ponto, assemelha-se às desculpas vãs de outros.
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O exame às contas do TC, não se fica pela generalidade; releva mesmo alguns aspetos ambíguos e outros claramente insustentáveis. Assim:
- Cada um dos 13 juízes conselheiros tem direito a um automóvel do tribunal para uso pessoal desde o ano 2000. Além das viaturas, são ainda entregues cartões de combustível e de via verde. Porém, o TdC esclarece que apenas o presidente e o vice-presidente do TC têm direito a veículo oficial, não existindo regulamentação sobre o uso de veículos de serviços gerais para os restantes juízes (vd LO n.º 2015, art.º 31.º).
Não me convence a contraposição do TC, escudada na autonomia, no sentido de que a lei prevê que possa ser “afetado ao uso pessoal de cada juiz” um carro da frota do tribunal, que pode ser conduzido pelo próprio, “designadamente enquanto o quadro de pessoal do tribunal não estiver dotado de um número de motoristas suficiente para a condução de cada uma dessas viaturas”. Não o vi na lei nem me parece que tal afetação possa deduzir-se para um período de tempo indeterminado (talvez fosse tolerável ad casum) e, por outro lado, pergunto-me qual será o departamento do Estado que julga dispor de pessoal suficiente e de outros meios considerados necessários para o cumprimento eficaz das suas missões.
Nem me parece aquela solução mais económica para o erário, não constituindo “a entrada ao serviço de mais onze motoristas” a única alternativa. Os juízes, que já têm direito a ajudas de custo, poderiam perceber um subsídio de transporte. Porquê 11 motoristas? Será que cada juiz teria direito a viatura e motorista privativo? Assim, também quero ser juiz do TC!
- Também se verificam irregularidades no pagamento do subsídio de refeição que os juízes recebem em acumulação com as ajudas de custo por participação em cada sessão do tribunal. O TdC considera essa acumulação sem “conformidade legal”. Como os demais funcionários, os magistrados não podem acumular as verbas, devendo o “abono diário do subsídio de refeição” ser descontado. Já lhes basta a semana poder ter 9 dias (vd LO n.º 2015, art.º 32.º)!
A módica quantia de 12.329 euros desembolsada a esse título entre novembro de 2012 e Dezembro de 2013 é ilegal e resultou “num dano efetivo para o erário público”, dano que o Presidente do TC não reconhece. Qual daquelas é a palavra que os juízes não percebem? Algo diferente será em relação ao jantar, se o magistrado tiver que jantar à sua custa em virtude da participação em sessão do TC, plenária ou de secção.
O TdC não deixou de apontar precisamente, entre os responsáveis por esta infração sancionatória continuada, o presidente e a secretária-geral do TC.
- O relatório refere, ainda, que o TC pagou os suplementos de disponibilidade permanente a dois dirigentes sem despacho de autorização que, mesmo a existir, não teria “suporte legal”, assim como pagou indevidamente o suplemento de forças de segurança a guardas da GNR e o pagamento de suplementos de risco e de disponibilidade permanente a agentes da PSP (todos eles motoristas ao serviço do TC).
- A auditoria do TdC também verificou que nas instalações do TC funciona – ainda que precária e transitoriamente, no dizer do presidente Joaquim Sousa Ribeiro – um bar “explorado por particulares” sem contrato de arrendamento, autorização e mesmo sem pagamento de renda. Mais: além da “cedência gratuita”, o TC ainda assume as despesas de luz, água e gás do bar cuja concessão de serviço pública está assim irregular.
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Face às irregularidades detetadas, o TdC, em conclusão, remeteu ao representante da Procuradoria-Geral da República junto do TC, recomendações no sentido de este Tribunal implementar sistemas de “gestão e controlo”, promover regulamentação adequada de utilização e de controlo dos veículos de serviços gerais” e deduzir “o subsídio de refeição” nas ajudas de custo aos magistrados.
Por seu turno, o presidente do TC salienta que, ainda “no decurso da auditoria, algumas decisões já foram tomadas e alguns procedimentos adotados, nesse sentido, estando outros em vias de implementação”, acrescentando que “o TC procederá aos reajustamentos necessários para aperfeiçoamento do seu sistema de controlo interno”, em matéria de registos contabilísticos e financeiros. Justifica, ainda, que a “escassez de recursos, mormente humanos” poderá, “em muitos casos”, explicar “o não cumprimento rigoroso de exigências formais”.
É pena que também um órgão superior de poder soberano se desculpe, como outros, com o pessoal técnico-administrativo e não assuma a responsabilidade política.
O presidente do TC adverte que, face à “conjuntura”, tomara medidas que o relatório “silencia”: pôs termo a um contrato de fornecimento de almoços; denunciou o contrato de arrendamento de prédio contíguo ao Palácio Ratton; renegociou contratos de comunicações móveis, de seguros individuais de automóveis com “a celebração de um contrato de frota automóvel, o que implicou uma redução em mais de 50% da despesa anual”. E, entre outras medidas, fez cessar “a colaboração de cinco das onze secretárias do gabinete dos juízes”.
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Parece-me bem que o TC tenha informado a opinião pública sobre a correção em curso das irregularidades, a medidas de contenção que tomou e a intenção de dar cumprimento às recomendações do TdC. Por outro lado, o TdC deveria incorporar esta informação no relatório final. É que, estando em causa mais uma enorme pedrada de desconfiança nas instituições públicas – e esta é de eminente relevância – penso que se deveria dar o exemplo da pronta correção de erros cometidos e de reforço da formação dos quadros do TC.
Todavia, a situação debelada não pode deixar pairar a ideia da dúvida sobre legitimidade e a validade das decisões do TC ad extra. Nada de confusões do corpo com o traje!

De resto, também gostaria de saber como funciona o TdC e que erros de controlo interno cometerão os seus gestores. Quem guarda, afinal, a guarda?

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