Diz
o povo que “em bom pano cai a nódoa”. Resta saber se se trata verdadeiramente
de bom pano e se apenas de nódoa.
Vem
este considerando a propósito do enunciado em epígrafe sobre o que apurou a
fiscalização operada pelo TdC (Tribunal de Contas) ao TC (Tribunal
Constitucional), a
fazer fé naquilo que a imprensa de hoje veicula, 22 de abril, por exemplo o
Jornal Público, em trabalho
jornalístico de Maria João Lopes e
Pedro Sales Dias, e de que os telejornais se fizeram eco.
O
TdC é responsável pela verificação das condições de aposição de visto prévio a
determinados atos das entidades públicas, nomeadamente contratos, e à fiscalização
da boa aplicação dos dinheiros públicos, em conformidade com a lei e as regras
da contabilidade e pública, bem como da existência ou não do mecanismo que
indicie as boas práticas administrativas e financeiras. Ele é o órgão supremo
de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas
que a lei mandar submeter-lhe (vd CRP, art.º 214.º/1).
É
óbvio que nenhum departamento do Estado está imune da tentação e do erro nem
isento da fiscalização por parte do TdC. E, desta vez, calhou a sorte –
acontecimento inédito – ao TC, depois de a fiscalização do polícia e juiz das
contas públicas ter feito a sua auditoria a outros tribunais superiores,
designadamente o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Administrativo
(STA).
Nada
de estranhar será o facto de o TC nunca ter sofrido a fiscalização da parte do
TdC. Em primeiro lugar, é o tribunal supremo de formação mais recente, criado
na sequência da primeira revisão da CRP (Constituição da
República Portuguesa),
consignada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro. Em segundo
lugar, ninguém pensaria que o TC pudesse incorrer em desrespeito pela
legalidade, já que este “é o tribunal ao qual compete especificamente
administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional” (cf
CRP, art.º 221.º).
Ademais, as suas decisões “são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem
sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras autoridades” (cf art.º 2.º da Lei n.º
28/82, de 15 de novembro, com a redação que lhe foi dada pela LO n.º 5/2015, de
10 de abril).
Nos
termos do art.º 5.º da sua lei orgânica (LO n.º5/2015, de 10 de abril), é dotado de autonomia administrativa e dispõe de orçamento
próprio, inscrito nos encargos gerais da Nação do Orçamento do Estado.
Os artigos 6.º a 11.º-A estabelecem as suas
competências, de acordo com o art.º 223.º da CRP:
- Apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade nos
termos dos artigos 277.º e seguintes da Constituição e nos da sua lei orgânica;
(art.º 6.º - apreciação da
inconstitucionalidade e da ilegalidade).
- Verificar a morte e declarar a impossibilidade física permanente do PR,
bem como verificar os impedimentos temporários do exercício das suas funções,
bem como verificar a perda do cargo de PR, nos casos previstos
no n.º 3 do artigo 129.º e no n.º 3 do artigo 130.º da CRP; (art.º 7.º - em relação ao Presidente da
República).
- Julgar os recursos relativos à perda do mandato de Deputado à Assembleia
da República ou de deputado a uma das Assembleias Legislativas Regionais; (art.º 7.º-A – sobre o mandato de deputados).
- Receber e admitir as candidaturas para PR, bem
como verificar a morte e declarar
a incapacidade para o exercício da função presidencial de qualquer candidato a
PR, para o efeito do disposto no n.º 3 do art.º 124.º da CRP;
- Julgar os recursos interpostos de decisões sobre reclamações
e protestos apresentados nos atos de apuramento, parcial, distrital e geral da
eleição do PR, nos termos dos artigos 114.º e 115.º do Decreto-Lei n.º
319-A/76, de 3 de maio;
- Julgar os recursos de contencioso
de apresentação de candidaturas e de contencioso eleitoral com relação às
eleições para o PR, Assembleia da República, assembleias regionais e órgãos de
poder local;
- Receber e admitir as candidaturas
relativas à eleição dos deputados ao Parlamento Europeu e julgar os
correspondentes recursos e, bem assim, julgar os recursos de contencioso
eleitoral referente à mesma eleição;
- Julgar os recursos contenciosos interpostos de atos administrativos definitivos e executórios praticados pela Comissão Nacional de Eleições ou por outros órgãos da administração eleitoral;
- Julgar os recursos contenciosos interpostos de atos administrativos definitivos e executórios praticados pela Comissão Nacional de Eleições ou por outros órgãos da administração eleitoral;
- Julgar os recursos relativos às
eleições realizadas na Assembleia da República e nas Assembleias Legislativas
Regionais; (art.º 8.º - sobre processos
eleitorais).
- Aceitar a inscrição de partidos em registo próprio do TC, bem como apreciar
a legalidade das denominações, siglas e símbolos dos partidos, coligações e
frentes de partidos, ainda que constituídas apenas para fins eleitorais, e
apreciar a sua identidade ou semelhança com as de outros partidos, coligações
ou frentes;
- Proceder às anotações referentes a partidos, coligações ou frentes de
partidos exigidas por lei;
- Julgar a impugnação de eleições e de deliberações de órgãos de partidos,
que, nos termos da lei, sejam recorríveis;
- Apreciar a regularidade e a legalidade das contas dos partidos, nelas
incluindo as dos grupos parlamentares, de Deputado único representante dum
partido e de Deputados não inscritos em grupo parlamentar ou de deputados
independentes na Assembleia da República e nas Assembleias Legislativas das
regiões autónomas, e das campanhas eleitorais, nos termos da lei, e aplicar as
correspondentes sanções;
- Ordenar a extinção de partidos e de coligações de partidos, nos termos da
lei; (art.º 9.º - sobre partidos,
coligações e frentes).
- Declarar, nos termos e para os efeitos da Lei n.º 64/78, de 6 de outubro,
que uma qualquer organização perfilha a ideologia fascista e decretar a
respectiva extinção; (art.º 10.º - sobre
organizações fascistas).
- Verificar previamente a constitucionalidade e a legalidade das propostas
de referendo nacional, regional e local, previstos no n.º 1 do art.º 115.º, no
n.º 2 do art.º 232.º e nos artigos 240.º e 256.º da CRP, incluindo a apreciação
dos requisitos relativos ao respetivo universo eleitoral, e o mais que,
relativamente à realização desses referendos, lhe for cometido por lei; (art.º 11.º - relativo aos referendos).
- Receber as declarações de património e rendimentos, bem como as
declarações de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos
políticos, e tomar as decisões sobre essas matérias que se encontrem previstas
nas respetivas leis. (art.º 11.º - A
-relativo a declarações
de titulares de cargos políticos).
São muitas e diversas competências que atingem o
âmago do ordenamento jurídico, um significativo escol de personalidades e os
alicerces e nervos fundamentais da democracia portuguesa. É um tribunal
eminentemente político no sentido fundador e supremamente regulador e
sancionador ético-político.
***
Pois, na primeira auditoria que lhe foi movida, o TC é
surpreendido em termos da “fiabilidade” da prestação de contas e na existência
de várias irregularidades. Em contraponto, este tribunal político responde com
“desgosto” e “preocupação”, mas aponta ao TdC, a meu ver a despropósito,
“infundadas conclusões”.
A
primeira coisa que se refere do TC é o descontrolo financeiro nas contas
daquela instância superior relativas a 2013. Relativamente a esta matéria, o site
do TdC considera “desfavorável” a “fiabilidade dos documentos de prestação
de contas” desse ano face a erros e irregularidades, entre os quais se destaca
o facto de o sistema de controlo interno do tribunal fiscalizado ser
“deficiente”, de não existir um manual de procedimentos de controlo interno,
assim como o de não se registar o cumprimento dos “princípios e regras
orçamentais” relativamente a 1,4 milhões de euros no âmbito da “contabilização
da receita e da despesa no orçamento”. Ficou também explícito no relatório que
o TC não contabilizou nas suas contas 13 mil euros correspondentes ao
acionamento de garantias bancárias bem como a transação de 21 mil euros em
gastos.
A
isto, o TC reage em comunicado através do qual regista “com preocupação” que
gizem “infundadas conclusões” e se formulem “recomendações aparentemente
assentes em deficiente compreensão do estatuto constitucional próprio deste
tribunal, de que decorre a “autonomia administrativa e financeira”. Ora, parece
nem se tratar de simples nódoa nem de pano tão bom!
Parece-me
abusiva a adução do argumento da autonomia, já que a autonomia não implica a
dispensa do cumprimento da lei, das regras da contabilidade pública e da
implementação de mecanismos suficientes de boas práticas administrativas,
financeiras e logísticas. Era o que faltava o TC não gozar de autonomia. Mas a
autonomia pressupõe a capacidade de controlo interno. E o TC, que tem altas e
exclusivas competências de controlo em tão importantes e alargados níveis,
deveria dar o exemplo de Estado nestas matérias administrativas, financeiras e
logísticas, que são o suporte da boa decisão no âmbito político e no quadro
superior da justiça, sobretudo da justiça constitucional.
Ainda
bem que o presidente do TC vem garantir que vão ser corrigidas “com a brevidade
possível” as situações que estejam “em desconformidade” e foi com “verdadeiro
desgosto” e “preocupação” que reagiu ao relatório da auditoria.
Porém,
reage mal ao denominá-lo de “seguramente injusto perante o que é a realidade” e
a “gestão financeira”. Neste ponto, assemelha-se às desculpas vãs de outros.
***
O
exame às contas do TC, não se fica pela generalidade; releva mesmo alguns
aspetos ambíguos e outros claramente insustentáveis. Assim:
- Cada
um dos 13 juízes conselheiros tem direito a um automóvel do tribunal para uso pessoal
desde o ano 2000. Além das viaturas, são ainda entregues cartões de combustível
e de via verde. Porém, o TdC esclarece que apenas o presidente e o
vice-presidente do TC têm direito a veículo oficial, não existindo
regulamentação sobre o uso de veículos de serviços gerais para os restantes
juízes (vd
LO n.º 2015, art.º 31.º).
Não me
convence a contraposição do TC, escudada na autonomia, no sentido de que a lei
prevê que possa ser “afetado ao uso pessoal de cada juiz” um carro da frota do tribunal,
que pode ser conduzido pelo próprio, “designadamente enquanto o quadro de
pessoal do tribunal não estiver dotado de um número de motoristas suficiente
para a condução de cada uma dessas viaturas”. Não o vi na lei nem me parece que
tal afetação possa deduzir-se para um período de tempo indeterminado (talvez
fosse tolerável ad casum) e, por outro lado, pergunto-me
qual será o departamento do Estado que julga dispor de pessoal suficiente e de
outros meios considerados necessários para o cumprimento eficaz das suas
missões.
Nem me
parece aquela solução mais económica para o erário, não constituindo “a entrada
ao serviço de mais onze motoristas” a única alternativa. Os juízes, que já têm
direito a ajudas de custo, poderiam perceber um subsídio de transporte. Porquê 11
motoristas? Será que cada juiz teria direito a viatura e motorista privativo? Assim,
também quero ser juiz do TC!
-
Também se verificam irregularidades no pagamento do subsídio de refeição que os
juízes recebem em acumulação com as ajudas de custo por participação em cada
sessão do tribunal. O TdC considera essa acumulação sem “conformidade legal”. Como
os demais funcionários, os magistrados não podem acumular as verbas, devendo o
“abono diário do subsídio de refeição” ser descontado. Já lhes basta a semana
poder ter 9 dias (vd LO n.º 2015, art.º 32.º)!
A
módica quantia de 12.329 euros desembolsada a esse título entre novembro de
2012 e Dezembro de 2013 é ilegal e resultou “num dano efetivo para o erário
público”, dano que o Presidente do TC não reconhece. Qual daquelas é a palavra
que os juízes não percebem? Algo diferente será em relação ao jantar, se o
magistrado tiver que jantar à sua custa em virtude da participação em sessão do
TC, plenária ou de secção.
O TdC não
deixou de apontar precisamente, entre os responsáveis por esta infração
sancionatória continuada, o presidente e a secretária-geral do TC.
- O
relatório refere, ainda, que o TC pagou os suplementos de disponibilidade
permanente a dois dirigentes sem despacho de autorização que, mesmo a existir,
não teria “suporte legal”, assim como pagou indevidamente o suplemento de forças
de segurança a guardas da GNR e o pagamento de suplementos de risco e de
disponibilidade permanente a agentes da PSP (todos eles
motoristas ao serviço do TC).
- A
auditoria do TdC também verificou que nas instalações do TC funciona – ainda
que precária e transitoriamente, no dizer do presidente Joaquim Sousa Ribeiro –
um bar “explorado por particulares” sem contrato de arrendamento, autorização e
mesmo sem pagamento de renda. Mais: além da “cedência gratuita”, o TC ainda
assume as despesas de luz, água e gás do bar cuja concessão de serviço pública está
assim irregular.
***
Face
às irregularidades detetadas, o TdC, em conclusão, remeteu ao representante da Procuradoria-Geral
da República junto do TC, recomendações no sentido de este Tribunal implementar
sistemas de “gestão e controlo”, promover regulamentação adequada de utilização
e de controlo dos veículos de serviços gerais” e deduzir “o subsídio de
refeição” nas ajudas de custo aos magistrados.
Por
seu turno, o presidente do TC salienta que, ainda “no decurso da auditoria, algumas
decisões já foram tomadas e alguns procedimentos adotados, nesse sentido,
estando outros em vias de implementação”, acrescentando que “o TC procederá aos
reajustamentos necessários para aperfeiçoamento do seu sistema de controlo
interno”, em matéria de registos contabilísticos e financeiros. Justifica,
ainda, que a “escassez de recursos, mormente humanos” poderá, “em muitos
casos”, explicar “o não cumprimento rigoroso de exigências formais”.
É pena
que também um órgão superior de poder soberano se desculpe, como outros, com o
pessoal técnico-administrativo e não assuma a responsabilidade política.
O presidente
do TC adverte que, face à “conjuntura”, tomara medidas que o relatório
“silencia”: pôs termo a um contrato de fornecimento de almoços; denunciou o
contrato de arrendamento de prédio contíguo ao Palácio Ratton; renegociou
contratos de comunicações móveis, de seguros individuais de automóveis com “a celebração
de um contrato de frota automóvel, o que implicou uma redução em mais de 50% da
despesa anual”. E, entre outras medidas, fez cessar “a colaboração de cinco das
onze secretárias do gabinete dos juízes”.
***
Parece-me
bem que o TC tenha informado a opinião pública sobre a correção em curso das
irregularidades, a medidas de contenção que tomou e a intenção de dar
cumprimento às recomendações do TdC. Por outro lado, o TdC deveria incorporar
esta informação no relatório final. É que, estando em causa mais uma enorme pedrada
de desconfiança nas instituições públicas – e esta é de eminente relevância –
penso que se deveria dar o exemplo da pronta correção de erros cometidos e de
reforço da formação dos quadros do TC.
Todavia,
a situação debelada não pode deixar pairar a ideia da dúvida sobre legitimidade
e a validade das decisões do TC ad extra.
Nada de confusões do corpo com o traje!
De
resto, também gostaria de saber como funciona o TdC e que erros de controlo
interno cometerão os seus gestores. Quem guarda, afinal, a guarda?
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