sexta-feira, 3 de abril de 2015

Desceram-No da cruz e sepultaram-No

Era o fim da tarde. Ao pôr-do-sol, seria o início do sábado. E aquele sábado era um grande dia, por ser um sábado pascal. Por isso e dado que a morte por crucifixão costumava decorrer de lenta agonia até se consumar a asfixia, os oficiais romano-judaicos, que não haviam hesitado em promover a crucifixão do Senhor, estavam apavorados com a hipótese de homens poderem ser deixados pendendo das cruzes num dia daqueles. Seria a execrável profanação da Terra.
Por isso aquelas escrupulosas autoridades foram ter com Pilatos e rogaram-lhe que Jesus e os dois malfeitores fossem sumariamente mortos pelo método romano da quebra das pernas (crurifrágio). O choque provocado por tão violento tratamento mostrava-se infalivelmente fatal para o crucificado.
O governador consentiu e os soldados quebraram as pernas dos dois salteadores. Porém, a Jesus, que foi encontrado já morto, os soldados não Lhe quebraram as pernas. Cristo, o grande sacrifício pascal, do qual todas as antigas vítimas do altar tinham sido meras figuras, morrera vítima dos múltiplos maus tratos, mas sem que um osso do Seu corpo tivesse sido quebrado, tal como era condição prescrita para os cordeiros de Páscoa. Por isso, um dos soldados, para se certificar de que Jesus tinha realmente morrido ou para Lhe dar o golpe mortal se ainda estivesse vivo, trespassou-Lhe o lado com uma lança, provocando-Lhe assim um ferimento suficientemente grande para permitir que a mão de um homem pudesse nele ser introduzida. A retirada da lança foi seguida por um fluxo de sangue e água: um fenómeno tão surpreendente que João, testemunha ocular, dá testemunho pessoal e específico do facto – garantindo que o seu testemunho é verdadeiro – e cita as Escrituras, assegurando que assim se cumpriram, Nem um só osso Lhe será quebrado; e, noutro passo, Hão de olhar para Aquele que trespassaram.
No sangue e na água que, pelo golpe da lança, brotaram do peito do Senhor – fenómeno fisiologicamente explicável – João vê, mais do que a confirmação da morte do crucificado, o cumprimento das Escrituras, como se explicou, mas também o sacrifício do novo e verdadeiro cordeiro pascal (Aquele que tira o pecado do mundo – Jo 1,29). Vê ainda o dom dá vida eterna (o sangue: Jo 6,53-54), o dom do Espírito Santo (a água: Jo 3,5) e os sacramentos de iniciação (o Batismo e a Eucaristia). Pelo Batismo, morremos com Cristo, com Ele nos sepultamos e ressuscitamos no Espírito simbolizado pela água. Na Eucaristia, mistério do corpo e sangue de Cristo, o vinho com água transforma-se no seu Sangue.
– (cf Jo 19,31-37)
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Depois, José de Arimateia, discípulo de Cristo no seu íntimo, mas que havia hesitado em confessar publicamente a sua afeição a Jesus por temor dos judeus, pretendia dar ao corpo do Senhor um sepultamento condigno. Se não fosse esta intervenção amiga, como que divinamente inspirada, o corpo de Jesus teria como destino a vala comum onde se enterravam os criminosos acabados de executar.  
José, homem de bem e justo, que esperava o reino de Deus, não tinha consentido no conselho e nos atos dos outros sinedritas conducentes à condenação de Jesus à morte.
E, como era um homem de fortuna, posição e influência, foi a Pilatos pedir-lhe o corpo de Cristo. O governador, surpreendido ao tomar conhecimento de que Jesus já tinha morrido, mandou chamar o centurião e perguntou-lhe quanto tempo Jesus havia permanecido vivo na cruz. A circunstância incomum – morte relativamente breve – parece ter aumentado a preocupação de Pilatos, que deu ordens para que o corpo de Cristo fosse entregue a José.
José de Arimateia desceu o corpo de Cristo da cruz, ajudado por Nicodemos – outro sinedrita, que, havia uns três anos, se encontrara com Jesus, de noite, e a quem Este teria afirmado que era preciso nascer de novo para entrar no reino de Deus. Nicodemos protestara numa das sessões do sinédrio contra a decisão ilegal de condenar Jesus, mas não lhe prestaram atenção.
Com vista a um sepultamento condigno do Divino Morto, Nicodemos trouxera consigo cerca de cem arráteis de mirra e aloés, uma considerável quantidade para a acomodação fúnebre. A odorífera mistura era muito apreciada para a unção e embalsamamento, mas o seu avultado custo restringia o uso aos mais abastados.
Estes dois reverentes discípulos envolveram o corpo do Senhor em lençóis limpos, com as ligaduras para acomodar ao corpo as mãos e os pés, bem como com aquelas especiarias com que os judeus abastados costumavam ser tratados na preparação para a sepultura, e deitaram-no numa sepultura nova, cavada na rocha.
A tumba ficava num horto, não distante do Gólgota, e era pertença de José. Devido à proximidade do Sabat, o sepultamento tinha de ser feito apressadamente. Para fechar a entrada do monumento, os sepultantes rolaram uma grande pedra contra ela. E o corpo, assim jazendo, foi deixado a repousar.
Algumas das mulheres devotas, particularmente Maria Madalena, e “a outra Maria”, que era mãe de Tiago e de José, haviam observado o sepultamento a certa distância. E depois que a ação de sepultamento terminou, elas regressaram a casa e prepararam especiarias e unguentos, mas repousaram no sábado, conforme o preceituado pela Torah.
No dia seguinte ao da Parasceve ou “preparação” (aquele sábado era um grande dia), os príncipes dos sacerdotes e fariseus dirigiram-se a Pilatos, dizendo: “Senhor, lembramo-nos de que aquele sedutor, ainda em vida, disse: ‘Depois de três dias ressuscitarei’. Manda, por isso, que o sepulcro seja guardado com segurança até ao terceiro dia, não suceda os seus discípulos vão de noite, o roubem e digam ao povo: “Ressuscitou de entre os mortos”. E assim o último erro será mais grave que o primeiro.”
É claro que os mais inveterados dos inimigos humanos de Cristo O ouviram e se lembravam do Seu vaticínio sobre a prevista ressurreição ao terceiro dia após a morte. Pilatos respondeu de forma sucinta: “Tendes a guarda. Ide, guardai-o como entenderdes.”
Assim os príncipes dos sacerdotes e fariseus asseguraram-se de que o sepulcro estava seguro ao verem o selo oficial ser afixado na junção entre a grande pedra e o portal, e a guarda armada postar-se em vigilância.
– (cf ; Mt 27,57-66; Mc 15,42-47; Lc 23,50-66; Jo 19,38-42).
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A declaração do centurião romano, depois de Jesus expirar, de que “Ele é verdadeiramente o Filho de Deus”, complementada com as ações subsequentes – descida da cruz, sepultura, guarda do túmulo e ressurreição – remete-nos para a portada do Evangelho de Marcos: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). E leva-nos à teofania do Batismo de Cristo: Do céu veio uma voz, “Tu és o meu Filho muito amado, em Ti pus a minha complacência” (Mc 1,11), bem como ao início da pregação: Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava o Evangelho de Deus, dizendo, “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,14-15).
Os relatos da Paixão constituíam o núcleo da pregação apostólica. Só mais tarde é que surgiu a necessidade de recolher os ditos e atos do Senhor. Como nos demais relatos, também o da Paixão corresponde a perspetivas próprias de cada evangelista, embora assentem comummente nos “Cânticos do Servo de Javé”, a misteriosa personagem de que fala abundantemente o profeta Isaías (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13 – 53,12). A morte de Jesus e o fio condutor da Sua vida são interpretados à luz daqueles textos do profeta e do vocabulário oblativo e sacrificial – respetivamente, “ofereceu a vida” e “morreu para nos salvar”. Ao contrário do historiador e do crítico, que veem na morte de Cristo apenas a morte de um homem comum, o evangelista sabe que a morte do Senhor foi por nós todos e por cada um de nós. E o conhecimento desta realidade, que nos vem pela fé, implica um compromisso sério com ela.
Como se disse noutra reflexão, a chave teológica desta leitura de fé reside no vocabulário “é necessário”, “tem de ser”. A Paixão de Cristo resulta do plano salvífico de Deus para o homem, para o Seu povo, revelado nas Escrituras com bastante detalhe e visualismo. Cristo morre pelos homens porque Se inseriu obedientemente e por vontade própria nesse plano do Pai e não por mera decisão do tribunal judaico ou do tribunal romano que O tenham tornado uma simples vítima da maldade dos homens, muito menos de um destino inexorável. 
Nas narrativas da Paixão, cruzam-se duas lógicas: a humana, segundo a qual a morte de Jesus é o fracasso, a derrota (é a lógica dos que zombavam ou dos que ficaram transidos de medo e fugiram); e a divina (anunciada no episódio do sofrente Servo de Javé), à luz da qual a salvação tem de decorrer sob o aparente fracasso do Salvador na cruz (se o grão de trigo não morrer… – Jo 12,24). Mas o fracasso é só aparente, pois, na realidade, a Paixão é o momento da realeza de Cristo. É na cruz que o homem obtém a Salvação, é nela que se realiza o projeto de Deus para o homem: “Tudo está consumado” (Jo 19,30).
Fixando-nos no relato de Marcos, o evangelista deste litúrgico Ano B, convém reportarmo-nos aos capítulos 14-15, em que vem narrada a Paixão. Esta narração realça a profunda humanidade de Jesus, que experimenta amargamente a solidão, a traição, a negação, o abandono e a humilhação até à morte e morte de cruz. Porém, no relato de Marcos evidencia-se de forma eminente a divindade e a glória de Jesus, contrastante com aquela caraterização típica da vertente humana. A Paixão e a Cruz são a revelação da divindade e da messianidade do Nazareno. “É verdadeiramente o Filho de Deus” (Mc 15,39) reconhece o centurião.
Ao longo do seu evangelho, o segundo evangelista mostra-nos Jesus apostado em fazer calar os beneficiários e as testemunhas dos seus prodígios. Era necessário que não se construísse a ideia de que o messianismo e o estatuto de Filho de Deus deviam ser reconhecidos a partir dos milagres. Deviam ser reconhecidos, antes no lugar próprio – a cruz. Segundo Marcos, é a cruz o lugar da teofania de Cristo. O diabo tinha-Lhe acenado, sem êxito com outros lugares supostamente messiânicos: transformação das pedras em pão, precipitação do pináculo do Templo e posse de todos os reinos do mundo. Porém, a condição era a idolatria diabólica. Jesus rejeita qualquer um destes lugares para seu messianismo, porque nem só de pão vive o homem, não se tenta o Senhor e só a Deus se serve e se adora (cf Mt 4, 1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13).
Em suma, para Marcos a grande Boa Nova consiste nisto: “Jesus crucificado é o Filho de Deus” e “o seu reino está próximo”, pelo que é preciso o arrependimento e a fé na boa nova.
Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra; e toda a língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor!”, para glória de Deus Pai. (Fi 2,7-11).

Por isso,
Louvai o SENHOR, todas as nações!
Exaltai-o, todos os povos!
Porque o seu amor para connosco não tem limites
e a fidelidade do SENHOR é eterna!
Aleluia!

                 – Sl 116 (117),1-2.

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