sábado, 18 de abril de 2015

Lei contra Eusébio… só depois de morto?

À Comunicação Social chegaram os ecos das dúvidas suscitadas a propósito da legalidade ou não da trasladação para o Panteão Nacional dos restos mortais de Eusébio da Silva Ferreira, agendada para o próximo dia 3 de julho pelo grupo de trabalho constituído nos termos do n.º 2 da Resolução n.º 21/2015, de 26 de fevereiro, da Assembleia da República (AR).
A concessão das honras de Panteão Nacional ao Pantera Negra, também carinhosamente tratado por ‘o King’, constante do n.º 1 da predita Resolução, tem em vista homenagear “o símbolo nacional, o homem solidário, o futebolista e o desportista excecional” e evoca “o seu estatuto de verdadeiro marco na divulgação e na globalização da imagem e da importância de Portugal no Mundo” (vd n.º 1).
Trata-se de uma resolução tomada por unanimidade dos deputados e ao abrigo do n.º 5 do art.º 166.º da CRP e do n.º 1 do art.º 3.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro, que é da competência exclusiva da AR (cf art.º 3.º/1); e, como refere a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), esta “personalidade única na história da FPF, Eusébio será o primeiro desportista nacional a ser alvo desta justa homenagem” – o que alegrou sobremaneira ao Benfica.
Ademais, cumpre os requisitos de fundamentação e, como se disse acima, reveste a forma de resolução (cf art.º 3.º/2); e verificou-se já o decurso do prazo de um ano sobre a morte do cidadão distinguido (cf art.º 4.º), que ocorreu a 4 de janeiro de 2014.
Em suma, a AR fundamentou o ato, deu-lhe a forma de resolução nos termos da Constituição e da Lei, agiu no uso das suas competências exclusivas e cumpriu o requisito do prazo legal.
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Os alertas surgidos na Comunicação Social, se não veiculas manifestação mesquinha de interesses inconfessados (por exemplo, de índole comercial, concorrencial, corporativo, político ou minudencial) pressupõem que os deputados atuam de forma impensada e atabalhoada. Se isso é verídico em outros casos, não me parece que o seja no atinente a esta matéria. Não é crível que todos os deputados, a totalidade dos serviços do Parlamento, bem como os serviços governamentais, tenham deixado passar uma “verdadeira ilegalidade”. Aliás, um dos alertas terá, segundo o DN de 16 de abril, surgido da parte do presidente da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL). Só me pergunto porque é que a chamada de atenção surge somente dois meses depois da resolução da AR (20 de fevereiro, depois de um processo que levou algum tempo) e depois de o grupo de trabalho – “composto por representantes de cada grupo parlamentar, com a incumbência de determinar a data, definir e orientar o programa da trasladação, em articulação com as entidades públicas e demais instituições envolvidas, bem como os seus familiares próximos” (cf n.º 2 da predita Resolução) – ter escolhido a data de 3 de julho para a cerimónia, escolha feita, segundo Marques Mendes, a 28 de março.
É invocado o n.º 1 do art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, que estabelece que, “após a inumação, é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de mandado da autoridade judiciária”. 
Depois, argumentava-se que a autoridade judiciária apenas emite mandado no caso de haver suspeita de crime, o que não acontece nesta matéria.
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Gostando de refletir sobre este tema, começo por referir que o ato da AR deve prevalecer sobre um ato do Governo. Depois, a aludida Resolução da AR, de 26 de fevereiro, não contraria o acautelamento das sensibilidades, bens e interesses protegidos pelo DL no 411/98, que visou atualizar e reunir num só diploma legal os princípios e normas respeitantes ao direito mortuário, tendo já passado por várias alterações legislativas, a última das quais é o DL n.º 109/2010, de 14 de outubro. Julgo, pois, oportuno que se atente no comentário da PGR distrital de Lisboa ao DL em causa, em especial ao seu art.º 21.º, de que se respigam alguns segmentos textuais:
[Daqui] “não se extrai, porém, a ilação de que o ordenamento jurídico deixa sem tutela, contra as agressões materiais ou imateriais, a memória ou os restos mortais da pessoa falecida. Na verdade, no domínio jurídico-criminal, o nosso compêndio substantivo penal criou dois tipos legais de crime previstos e puníveis pelos art.os 253.º e 254.º do Código Penal, cujo bem jurídico tutelado é, precisamente, o sentimento de piedade para com os mortos e a possibilidade da sua [do sentimento de piedade] livre expressão (art.º 253.º) e o mesmo sentimento, como expressão da coletividade” (art.º 254.º). 
Mais, citando o Prof. Damião da Cunha, declara-se que o conceito de piedade “está referido não ao sentido comum de compaixão, mas mais ao sentido original e latino do mesmo, de respeito face a entidades que transcendem a existência singular. Trata-se de um bem jurídico imaterial”. (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pg. 651 a 653).
Não se trata de violar, menosprezar a sepultura nem de pura e simplesmente a abrir. Também não se trata de proceder a trasladação para jazigo de família ou de clube, mas de manifestar a “pietas” como preito de homenagem a entidade que transcende “a existência singular”. Pressupõe-se, além disso, que o grupo de trabalho constituído no quadro do estipulado pela predita Resolução da AR acautelará qualquer atropelo ou negligência conexa com a inobservância dos princípios da saúde pública.
Penso ser neste último aspeto que pode ser conveniente ou mesmo necessária a intervenção da autoridade judiciária, pois, ao contrário do que foi propalado por alguma imprensa, aquela autoridade não intervém exclusivamente quando haja suspeita de ação criminosa.
A este respeito, convém reler a CRP que, ao definir a função jurisdicional, estabelece que “incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados” (vd CRP, art.º 202.º/2). Está aqui gizado um conflito de interesses ou de perspetivas: da AR e da ANEL.
Por seu turno, ao Ministério Público, “compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como (…) participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática” (vd CRP, art.º 219.º/1).
Em suma, conquanto seja mais relevante a política criminal e ação penal, a intervenção da autoridade judiciária não se limita a estas matérias. Pelo que não parece descabida a intervenção da autoridade judiciária na pretensa “proibição da Lei” da cerimónia das honras panteónicas a Eusébio, sem que seja necessário proceder a uma alteração legislativa.
Tanto assim é que Comunicação Social do dia 17 já adianta a possibilidade do pedido da intervenção da PGR.
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Mas o n.º 2 do art.º 21.º do DL n.º 411/98, de 30 de dezembro, determina que, “se no momento da abertura não estiverem terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica, recobre-se de novo o cadáver, mantendo-o inumado por períodos sucessivos de dois anos até à mineralização do esqueleto”.
Parece-me que o enunciado contido neste n.º 2 do art.º 21.º, apesar de que Eusébio está inumado (e não depositado em jazigo) e foi encerrado num caixão de madeira (e não em caixão de zinco), não é contrariado no seu espírito (muito embora o seja no estrito sentido literal dos termos). Ninguém pensa que o legislador quisesse impedir a panteonização dos heróis, visasse fazer supor que só podiam ser considerados heróis os depositados em jazigo ou os inumados encerrados em caixão de zinco ou pretendesse que a estes só fosse possível prestar as honras de Panteão Nacional através do transporte dos restos totalmente mineralizados e arquivados em cenotáfio.
Ainda que não o declare expressamente, o legislador não quis ignorar a livre expressão da “pietas” perante o tumulado. Pretendeu, sim, criar um mecanismo legal que evite a profanação de cadáver, o respeito recatado pelo tumulado, a acumulação indevida de cadáveres na mesma tumba, a dispersão de ossadas e, ainda, qualquer dano à saúde pública. Ademais, nada obriga a uma interpretação exclusivamente literal da lei.
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Finalmente, em vez de se tolerar que seja dito por quem anda por aí que a Lei proíbe Eusébio de ir para o Panteão Nacional, se, depois do que expus restam dúvidas, mesmo não sendo eu do Benfica, pergunto-me porque não surge um grupo suficiente de deputados que redija um projeto de lei mais ou menos nos termos seguintes: 
A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
É aditado ao Decreto-lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, um artigo:
Artigo 21.º -A
1. Excecionam-se da proibição estabelecida no n.º 1 do artigo anterior os casos em que, por resolução da Assembleia da República, tomada nos termos do n.º 1 do art.º 3.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro, seja resolvido prestar honras de Panteão Nacional a entidade relevante.
2. Os executores da resolução referida no número anterior devem tomar as medidas necessárias ao acautelamento da observância dos princípios e normas atinentes ao respeito pelo cadáver, à sensibilidade dos familiares e amigos e à saúde pública.
Artigo 2.º
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
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Custaria assim muito apresentar, discutir, apresentar a promulgação e referenda e fazer publicar? Ou será melhor gastar o tempo do povo na discussão sobre o sexo dos anjos, sobre a cor dos olhos de Nossa Senhora ou sobre o que sucederá se a mosca se afogar em água benta (Fica a água suja ou a mosca benzida) e deixar que os amigos da onça, entretanto, avancem?

Haja vontade política, que para isto a crise é inócua. E os heróis merecem!

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