À
Comunicação Social chegaram os ecos das dúvidas suscitadas a propósito da
legalidade ou não da trasladação para o Panteão Nacional dos restos mortais de
Eusébio da Silva Ferreira, agendada para o próximo dia 3 de julho pelo grupo de
trabalho constituído nos termos do n.º 2 da Resolução n.º 21/2015, de 26 de
fevereiro, da Assembleia da República (AR).
A
concessão das honras de Panteão Nacional ao Pantera
Negra, também carinhosamente tratado por ‘o King’, constante do n.º 1 da predita Resolução, tem em vista
homenagear “o símbolo nacional, o homem solidário, o futebolista e o
desportista excecional” e evoca “o seu estatuto de verdadeiro marco na
divulgação e na globalização da imagem e da importância de Portugal no Mundo” (vd
n.º 1).
Trata-se
de uma resolução tomada por unanimidade
dos deputados e ao abrigo do n.º 5 do art.º 166.º da CRP e do n.º 1 do art.º
3.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro, que é da competência exclusiva da AR
(cf
art.º 3.º/1); e,
como refere a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), esta “personalidade única na história da FPF, Eusébio será o primeiro
desportista nacional a ser alvo desta justa homenagem” – o que alegrou sobremaneira
ao Benfica.
Ademais, cumpre os requisitos de fundamentação e, como se
disse acima, reveste a forma de resolução (cf
art.º 3.º/2); e verificou-se
já o decurso do prazo de um ano sobre a morte do cidadão distinguido (cf
art.º 4.º), que
ocorreu a 4 de janeiro de 2014.
Em
suma, a AR fundamentou o ato, deu-lhe a forma de resolução nos termos da
Constituição e da Lei, agiu no uso das suas competências exclusivas e cumpriu o
requisito do prazo legal.
***
Os alertas surgidos na
Comunicação Social, se não veiculas manifestação mesquinha de interesses
inconfessados (por exemplo, de índole comercial, concorrencial, corporativo,
político ou minudencial) pressupõem que
os deputados atuam de forma impensada e atabalhoada. Se isso é verídico em
outros casos, não me parece que o seja no atinente a esta matéria. Não é crível
que todos os deputados, a totalidade dos serviços do Parlamento, bem como os
serviços governamentais, tenham deixado passar uma “verdadeira ilegalidade”.
Aliás, um dos alertas terá, segundo o DN
de 16 de abril, surgido da parte do presidente da Associação Nacional de
Empresas Lutuosas (ANEL). Só me pergunto porque é que a chamada de atenção
surge somente dois meses depois da resolução da AR (20 de fevereiro,
depois de um processo que levou algum tempo)
e depois de o grupo de trabalho – “composto por representantes de cada grupo parlamentar, com a
incumbência de determinar a data, definir e orientar o programa da trasladação,
em articulação com as entidades públicas e demais instituições envolvidas, bem
como os seus familiares próximos” (cf n.º 2 da predita Resolução) – ter escolhido a data de 3 de julho para a
cerimónia, escolha feita, segundo Marques Mendes, a 28 de março.
É invocado o
n.º 1 do art.º 21.º do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de dezembro, que
estabelece que, “após a inumação, é proibido abrir qualquer sepultura ou local
de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de
mandado da autoridade judiciária”.
Depois,
argumentava-se que a autoridade judiciária apenas emite mandado no caso de
haver suspeita de crime, o que não acontece nesta matéria.
***
Gostando de refletir sobre este tema, começo
por referir que o ato da AR deve prevalecer sobre um ato do Governo. Depois, a aludida
Resolução da AR, de 26 de fevereiro, não contraria o acautelamento das
sensibilidades, bens e interesses protegidos pelo DL no 411/98, que visou
atualizar e reunir num só diploma legal os princípios e normas respeitantes ao
direito mortuário, tendo já passado por várias alterações legislativas, a
última das quais é o DL n.º 109/2010, de 14 de outubro. Julgo, pois, oportuno que
se atente no comentário da PGR distrital de Lisboa ao DL em causa, em especial
ao seu art.º 21.º, de que se respigam alguns segmentos textuais:
[Daqui] “não se extrai, porém, a ilação de que o ordenamento
jurídico deixa sem tutela, contra as agressões materiais ou imateriais, a
memória ou os restos mortais da pessoa falecida. Na verdade, no domínio
jurídico-criminal, o nosso compêndio substantivo penal criou dois tipos legais
de crime previstos e puníveis pelos art.os 253.º e 254.º do Código
Penal, cujo bem jurídico tutelado é, precisamente, o sentimento de piedade para
com os mortos e a possibilidade da sua [do sentimento de piedade] livre
expressão (art.º 253.º) e o mesmo sentimento, como expressão da coletividade”
(art.º 254.º).
Mais, citando o Prof. Damião da Cunha, declara-se
que o conceito de piedade “está referido
não ao sentido comum de compaixão, mas mais ao sentido original e latino do
mesmo, de respeito face a entidades que transcendem a existência singular.
Trata-se de um bem jurídico imaterial”. (Comentário
Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pg. 651 a 653).
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=246A0018&nid=246&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&nversao=, ac 17 de abril de 2015.
Não
se trata de violar, menosprezar a sepultura nem de pura e simplesmente a abrir.
Também não se trata de proceder a trasladação para jazigo de família ou de
clube, mas de manifestar a “pietas” como preito de homenagem a entidade que
transcende “a existência singular”. Pressupõe-se, além disso, que o grupo de
trabalho constituído no quadro do estipulado pela predita Resolução da AR
acautelará qualquer atropelo ou negligência conexa com a inobservância dos princípios
da saúde pública.
Penso
ser neste último aspeto que pode ser conveniente ou mesmo necessária a
intervenção da autoridade judiciária, pois, ao contrário do que foi propalado
por alguma imprensa, aquela autoridade não intervém exclusivamente quando haja
suspeita de ação criminosa.
A
este respeito, convém reler a CRP que, ao definir a função jurisdicional,
estabelece que “incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos,
reprimir a violação da legalidade democrática
e dirimir os conflitos de interesses
públicos e privados” (vd CRP, art.º 202.º/2). Está aqui gizado um conflito
de interesses ou de perspetivas: da AR e da ANEL.
Por
seu turno, ao Ministério Público, “compete representar o Estado e defender os
interesses que a lei determinar, bem como (…) participar na execução da
política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal
orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática” (vd
CRP, art.º 219.º/1).
Em
suma, conquanto seja mais relevante a política criminal e ação penal, a
intervenção da autoridade judiciária não se limita a estas matérias. Pelo que
não parece descabida a intervenção da autoridade judiciária na pretensa “proibição
da Lei” da cerimónia das honras panteónicas a Eusébio, sem que seja necessário
proceder a uma alteração legislativa.
Tanto
assim é que Comunicação Social do dia 17 já adianta a possibilidade do pedido
da intervenção da PGR.
***
Mas o n.º 2 do art.º 21.º do DL n.º
411/98, de 30 de dezembro, determina que, “se no momento da abertura não estiverem terminados os fenómenos de destruição
da matéria orgânica, recobre-se de novo o cadáver, mantendo-o inumado por
períodos sucessivos de dois anos até à mineralização do esqueleto”.
Parece-me que
o enunciado contido neste n.º 2 do art.º 21.º, apesar de que Eusébio está
inumado (e não depositado em jazigo) e foi
encerrado num caixão de madeira (e não em caixão de zinco), não é contrariado no seu espírito (muito embora
o seja no estrito sentido literal dos termos). Ninguém pensa que o legislador quisesse impedir a panteonização dos
heróis, visasse fazer supor que só podiam ser considerados heróis os
depositados em jazigo ou os inumados encerrados em caixão de zinco ou pretendesse
que a estes só fosse possível prestar as honras de Panteão Nacional através do
transporte dos restos totalmente mineralizados e arquivados em cenotáfio.
Ainda que
não o declare expressamente, o legislador não quis ignorar a livre expressão da
“pietas” perante o tumulado. Pretendeu, sim, criar um mecanismo legal que evite
a profanação de cadáver, o respeito recatado pelo tumulado, a acumulação
indevida de cadáveres na mesma tumba, a dispersão de ossadas e, ainda, qualquer
dano à saúde pública. Ademais, nada obriga a uma interpretação exclusivamente
literal da lei.
***
Finalmente,
em vez de se tolerar que seja dito por quem anda por aí que a Lei proíbe
Eusébio de ir para o Panteão Nacional, se, depois do que expus restam dúvidas, mesmo
não sendo eu do Benfica, pergunto-me porque não surge um grupo suficiente de
deputados que redija um projeto de lei mais ou menos nos termos seguintes:
A
Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da
Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
É
aditado ao Decreto-lei n.º
411/98, de 30 de dezembro, um artigo:
Artigo 21.º -A
1.
Excecionam-se da proibição estabelecida no n.º 1 do artigo anterior os casos em
que, por resolução da Assembleia da República, tomada nos termos do n.º 1 do
art.º 3.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro, seja resolvido prestar honras
de Panteão Nacional a entidade relevante.
2.
Os executores da resolução referida no número anterior devem tomar as medidas
necessárias ao acautelamento da observância dos princípios e normas atinentes
ao respeito pelo cadáver, à sensibilidade dos familiares e amigos e à saúde
pública.
Artigo 2.º
A
presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
***
Custaria
assim muito apresentar, discutir, apresentar a promulgação e referenda e fazer
publicar? Ou será melhor gastar o tempo do povo na discussão sobre o sexo dos
anjos, sobre a cor dos olhos de Nossa Senhora ou sobre o que sucederá se a mosca
se afogar em água benta (Fica a água suja ou a mosca benzida) e deixar que os amigos da onça,
entretanto, avancem?
Haja
vontade política, que para isto a crise é inócua. E os heróis merecem!
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