No Dia
Mundial da Saúde, comemorado a dia 7 de abril, soube-se que Portugal fora
avaliado positivamente, em matéria de saúde, pela Comissão Europeia sobre a
implementação das recomendações específicas elaboradas pelo Conselho Europeu em
2014 no âmbito dos Programas Nacionais de Reforma. É uma informação que se pode
ler no site da Direção-Geral da Saúde
(DGS), que disponibiliza, em anexo, o relatório sobre a
matéria produzido em Inglês pelo respetivo Comité de Proteção Social.
Anote-se
que, se nos ativermos à leitura apressada de título e parágrafo-guia da
notícia, poderemos ficar com a ideia inexata de que a Comissão aprova as
reformas da Saúde levadas a cabo em Portugal nos últimos anos, o que não é bem
o caso.
Mesmo assim,
o teor desta avaliação é ambíguo. Ela decorreu nos dias 24 a 26 de março de
2015, na Comissão Europeia, em sede conjunta do Comité de Proteção Social e do
Grupo de Alto Nível de Saúde Pública do Conselho Europeu.
No concerto
dos diversos Estados-Membros da União Europeia, a conclusão da avaliação em
relação ao nosso país “foi globalmente muito positiva”, dado que as reformas em
curso no setor da saúde “continuam a produzir resultados”.
Que
resultados? Os que refletem a poupança, basicamente. “Quer as reformas do setor
hospitalar, quer a otimização de custos, contribuíram, nos últimos anos, para
poupanças na despesa da saúde” – salienta a DGS, que elenca, de entre “as
principais medidas que fundamentaram a avaliação”: o acordo celebrado entre o
Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica para baixar o custo dos medicamentos;
os progressos efetuados na reforma hospitalar; a continuação da publicação de
Normas de Orientação Clínica; a implementação do sistema de avaliação de
tecnologias da saúde; o combate à fraude; e o aumento de adesão dos médicos e
doentes aos medicamentos genéricos.
Tenho de
sublinhar que não consta entre estas medidas uma palavra sobre a melhoria da qualidade
da prestação dos cuidados de saúde, designadamente no atendimento e na
eficácia, bem como na minoração do tempo de espera em serviço de urgência ou em
listas de espera no atinente a exames e cirurgias. Será que a Comissão avaliza o status quo da organização e do
funcionamento da Saúde em Portugal ou faz vista grossa aos erros e insuficiências
do sistema, bastando que se proclame que os cofres do Estado estão cheios?
***
Entretanto,
sublinhe-se como positivo o facto de, para assinalar o Dia Mundial da Saúde,
teve lugar uma sessão comemorativa em que se procedeu à reflexão sobre o tema “Alimentos
seguros, melhor saúde”, proposto este ano para as comemorações da data, que
assinala também a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948.
A condução da reflexão sobre o tema em destaque esteve
a cargo de Pedro
Graça, diretor do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, da
Direção-Geral da Saúde – o que revela a preocupação de fazer passar à sociedade
um conceito abrangente de saúde, que ultrapasse de vez a noção de saúde como a
mera ausência de doença.
Integraram as
comemorações: a atuação do Ensemble,
criado expressamente para o Dia Mundial da Saúde; a entrega do Colar do Prémio
Nacional de Saúde, que este ano destacou o percurso profissional do Professor José
Cunha-Vaz e o seu contributo para o desenvolvimento da oftalmologia quer a nível
nacional, quer internacional; a entrega da Ordem de Mérito ao Professor José
Pereira Miguel, atribuída pelo Presidente da República; e a atribuição das
medalhas de serviços distintos do Ministério da Saúde, a personalidades e
organizações que se destacaram no último ano.
Também em
conexão com as comemorações do Dia Mundial da Saúde, a DGS e a PortugalFoods,
associação representativa do setor agroalimentar nacional, assinaram um inovador
protocolo de colaboração, à luz do qual se pretende aproximar doravante o setor
da produção alimentar à saúde, identificando oportunidades para uma oferta
alimentar mais saudável e promotora da saúde através dos alimentos produzidos
em Portugal.
O protocolo permitirá o desencadear de múltiplas iniciativas, desde o
melhor conhecimento da composição nutricional até à informação sistemática aos
consumidores sobre a produção alimentar nacional, e o potencial deste para os
mercados externos.
***
Todavia,
como se entoa na canção cujo texto pertence à imortal Sophia de Mello Breyner,
todos nós Vemos, ouvimos e lemos, não
podemos ignorar. A saúde pública (SP), o serviço nacional de saúde (SNS) não vão bem.
Começo logo
por lamentar que o Plano Nacional de Vacinação tenha deixado de ser obrigatório.
Por outro lado, vacinas importantes deixaram de o integrar. É a poupança tão
elogiada pela Comissão.
Na década de
2002 a 2013, fecharam maternidades, serviços de atendimento permanente,
serviços de urgência, valências hospitalares – com base na exiguidade dos
números, não olhando especialmente às distâncias e às condições de locomoção.
Por exemplo, a deslocação de Lamego a Vila Real não peca pelo excesso de
incómodo. Porém, não é lícito concluir a mesma coisa se falarmos de Pretarouca
(Lamego) ou de Vale de Vila (São João da Pesqueira). E não há transportes terrestres nem meios aéreos
disponíveis. Mas era preciso poupar em equipamentos e em pessoal médico e de
enfermagem, nomeadamente especialistas, bem como evitar encargos com o
incentivo às deslocações para as periferias. A obrigação de deixar o conforto
do centro e ir às periferias parece ser obrigação exclusiva das Igrejas, isto
depois da entrada em funções do Papa Francisco. De resto, os pobres podem
continuar a penar e a morrer convenientemente, não?!
Por outro
lado, assistiu-se ao brutal aumento das taxas moderadoras, às políticas cegas de
cortes e ao crasso desinvestimento no SNS – o que originou o crescimento das
dificuldades no acesso aos cuidados de saúde por parte dos utentes. A própria
gestão do protocolo de Manchester nas urgências hospitalares se tem revelado
ineficiente e ineficaz. Por mais que alguns comentadores televisivos apontem os
centros de saúde como alternativa, estes não dispõem de especialistas nem
apresentam total disponibilidade de atendimento. Nem sei se lhes deveria caber
algo mais que os cuidados primários de saúde, a medicina preventiva, a
vacinação, a profilaxia, a promoção e a verificação da salubridade ambiental e
das diversas instalações (habitacionais, comerciais e industriais e equipamentos
de utilização coletiva), a
promoção e a certificação da robustez dos cidadãos, a proteção sanitária de
jovens em risco e idosos e a saúde materno-infantil.
***
Paula
Santos, deputada do PCP, em artigo no Expresso
on line, de hoje
dia 8, escreve que “já se sabe que o Governo convive mal com a realidade
concreta do país e do povo”. E avança com o exemplo do que se passa no
Ministério da Saúde. Continuando “a iludir os portugueses com falsas intenções
de defesa do Serviço Nacional de Saúde”, o Ministro pura simplesmente opta pela
“rejeição dos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
As
declarações do Ministro da Saúde parecem contrariar o discurso governamental da
defesa do SNS e demonstram grande incómodo pelo facto de os dados de entidades
oficiais terem vindo desmascarar as consequências das opções políticas atuais.
Os dados do
INE confirmam a transferência de cuidados de saúde de hospital público para
hospital privado – opção visível nos atendimentos de urgência e no número de
camas.
Quanto às
urgências, segundo a deputada comunista, verifica-se a tendência de decréscimo
dos atendimentos de urgência nos hospitais públicos e o consequente aumento nos
hospitais privados. No ano de 2013, os hospitais do setor privado já
asseguraram 12,4% do total dos atendimentos de urgência dos nossos hospitais.
No atinente
ao número de camas, verifica-se uma evolução similar: encerram camas nos
hospitais públicos, por alegada não necessidade constatada pelo Governo, e abrem
nos privados, o que demonstra que as camas são necessárias. Assim, entre 2002 e
2013, os hospitais públicos perderam cerca de 3700 camas e os hospitais
privados aumentaram mais de 2000 camas. Os hospitais privados detêm cerca de
30% do total das camas hospitalares.
Também no
âmbito das consultas e meios complementares de diagnóstico e terapêutica, se
constata um enorme acréscimo nos hospitais privados – quase triplicaram entre
2002 e 2013.
Mas a
deputada avança com mais dados, agora no respeitante aos cuidados de saúde
primários:
“Em 2002,
havia 276 centros de saúde com serviço de urgência básica ou serviço de
atendimento permanente e 76 com internamento”, ao passo que, “em 2013, havia
somente 94 centros de saúde com serviço de urgência básica ou serviço de
atendimento permanente e 16 com internamento. Ao mesmo tempo, no período em
referência, “diminuíram as consultas e os meios complementares de diagnóstico e
terapêutica, realizados nos centros de saúde”.
Refere a
deputada que estas opções políticas “não são de hoje, perpassaram vários
governos”. E reconhece que “não é por acaso que entre 2002 e 2013 o número de
hospitais públicos se manteve” e se registou “um aumento de hospitais privados”
(que, segundo
Paula Santos, continuarão a aumentar com os novos hospitais que, entretanto,
abriram). Mais: segundo a mesma analista,
“a diferença entre o número de hospitais públicos e privados é de apenas seis”
(excluindo os
hospitais militares, agora convertidos no hospital das forças armadas), uma vez que “os hospitais públicos de acesso
universal são 113 (53% do total) e os
hospitais privados são 107 (47% do total)”.
O DN, de ontem, pela pena de Ana Maia,
também se faz eco destes números e desta tendência, desacelerante no setor
público e evolutiva no privado. Este, na década em apreciação, além de ter
ganho 2000 camas, passou de 460 mil urgências para 900 mil, de1,6 milhões de
consultas para 5,1 milhões e “exames e análises que ajudam a fazer o
diagnóstico mais que triplicaram”. Aqui Ana Maia vai mais além na
quantificação que Paula Santos, sendo esta mais cautelosa ao dizer que quase
triplicaram. Só que a deputada não inclui neste “quase triplicaram” os
valores numéricos das consultas.
***
Segundo os
analistas, o acréscimo do volume da saúde no setor privado resulta do
crescimento dos seguros e da sua atenção à saúde, ao comportamento da ADSE e
subsistemas de proteção similares (que privilegiam a contratação com o setor
privado). Diga-se, no entanto, que outras
razões do abandono do setor público se prendem com a desconfiança no público
quanto ao atendimento e ao desconforto e quanto à melhor compensação pelo
trabalho realizado pelos profissionais de saúde, bem como pela não massificação
das unidades de saúde privadas.
Acresce que
muitas das figuras que ocupam cargos públicos e políticos, com honrosas exceções,
são surpreendidas a cada passo em tratamento nas unidades privadas de saúde,
vindo alguns a declarar que para tratamento normal preferem o setor privado,
mas para situações graves preferem o setor público. Porque será?
O bastonário
da Ordem dos Médicos pronuncia-se, não contra o avanço do setor privado em
saúde em si, mas contra o depauperamento crescente do serviço público de saúde,
com prejuízo notário para os setores mais debilitados da sociedade como os
pobres, os idosos e tanta gente da classe média baixa.
E não
podemos tolerar que o Estado se dispense das suas responsabilidades em matéria
da saúde a favor de todos, mormente no que concerne aos cuidados primários de
saúde, à medicina preventiva e às situações de emergência. É a Constituição, a
Declaração Universal dos Direitos do Homem e sobretudo a vida que estão em
causa.
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