Em
Jerusalém, no cenáculo (no latim, coenaculum – de coena,
ceia) – sala no
andar superior aonde se acedia por uma escada para a ceia com os familiares e
eventuais hóspedes – foi celebrada a ceia pascal de Jesus com os discípulos, em
quinta-feira da Páscoa judaica – a nossa Quinta-Feira Santa – e segundo os
ritos tradicionais. A sala, conforme o previsto, foi cedida por um amigo do
Mestre, porque Este não tinha onde reclinar a cabeça, e a rogo dos discípulos,
que iam da parte de Jesus (cf Mt 26,17-19; Mc 14,12-16; Lc
22,7-13).
Na
Ceia, tomada de pé, sandálias nos pés, rins cingidos, bordão na mão, comia-se,
em comunidade familiar e em postura de saída, peregrinação, o cordeio pascal
imolado em sacrifício de ação de graças e expiação das faltas, cujo sangue era
sinal da aliança de Deus com o Seu povo. Acompanhava a refeição do cordeiro o
pão ázimo (pão sem fermento e sem sal) e ervas amargas. A bebida era o
vinho à judeu (com alguma água). É no pão e no vinho que o
Senhor lança a bênção pela qual estes elementos se tornam o Seu corpo e o Seu
sangue. Se o cordeiro se imolou pelo povo, agora o pão e o vinho transformados
pela bênção no corpo e sangue do Senhor são entregues e o vinho/sangue é
derramado pela expiação dos pecados da multidão dos homens todos. Já não é o
sangue do cordeiro o sinal da aliança, mas o sangue do próprio Cristo. Tal como
se distribuía o pão e a carne do cordeiro pelos comensais e se aspergiam com o
sangue do cordeiro, agora o que se distribui é o pão/corpo da vida e
vinho/sangue da salvação. É Cristo dado em sacrifício e distribuído em
comunhão. É a Eucaristia hoje instituída como sacrifício e banquete, comunhão e
aliança – nova e eterna –, união paterno-filial de Deus com o homem e a reunião
da comunidade fraterna de todos os irmãos. Não podemos deixar de relacionar com
o discurso da última ceia com o discurso joanino do Pão da Vida, que é o
próprio Cristo, alimento de vida eterna para quem dele comer e bebida de
salvação para quem aceitar beber do seu sangue.
Mas
o Senhor determinou que fizessem a bênção do pão e do vinho – corpo e sangue de
Cristo – em Sua memória e Paulo afirma: “Todas as vezes que comerdes deste pão
e viverdes deste cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha” (1Co
11,25). Nestas
palavras, em articulação com o dinamismo do relato de João em termos do serviço
e do mandamento do amor fraterno, se vê a instituição do sacerdócio
ministerial.
–
A este respeito, vd 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,14-20; Jo 6,51-59; 1Co
11,23-25.
João,
por seu turno, salienta na celebração da Ceia a ação simbólica do lava-pés (13,3-10.21-32) aceite por todos com exceção de
Pedro, que acaba por se conformar com o argumento de que tal era necessário
para participar na vida com o Senhor. Perante a disponibilidade exagerada deste
espontâneo e contraditório discípulo, o Mestre garantiu que todos estavam no
estado de limpeza, exceto um, aquele que o iria entregar, aquele que metia com
o Mestre a mão no prato (os outros evangelistas também mencionam
a traição desse apóstolo: cf Mt 26,20-25; Mc 14, 17-21; Lc 22,21-23).
Ora
o lava-pés foi um ato simbólico a partir do qual o Senhor deu a lição do
serviço aos irmãos: “Dei-vos o exemplo, para que assim como eu fiz, vós façais
também”, já que o servo não é mais que o Senhor nem o enviado mais que aquele
que o envia (13,15-16).
E é também a partir do lava-pés que o Senhor dá em seu testamento o mandato do
amor (13,33-35;
cf Mt 22,34-40; Mc 12, 28-31; Lc 10,25-28 – nos sinóticos em ligação como o
amor a Deus e com ligação ao Antigo Testamento): “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns
aos outros como Eu vos amei” (34). Mais: é este o título de identidade dos
discípulos de Cristo: “Por isto é que todos conhecerão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros”
(35). E o amor consiste no
cumprimento dos mandamentos, o amor deve ir até à morte se preciso for. O amor
retira-nos da condição de servos; torna-nos amigos de Cristo e uns dos outros,
embora suscite o ódio do mundo aos discípulos, a Cristo e ao Pai (vd
Jo 15,9-25).
E
é no contexto da ceia e no cenáculo (cap 14) que Jesus Se apresenta como o
garante, para os discípulos, das moradas no céu, a Casa do Pai, Se define como
o Caminho, a Verdade e a Vida, bem como a sua união com o Pai, de modo que quem
O vê – é preciso crê-lo – vê o Pai, e assegura que fará tudo o que os
discípulos Lhe peçam, já que vai para o Pai (cf 14,1-14). Promete a vinda do Espírito
Santo (14,15-17.25-26;
15,26-27; 16,5-15),
que o mundo não recebe, mas os discípulos receberão, porque O conhecem (14,15-17). O Espírito vem consolar,
ensinar, ajudar a cumprir, dar fortaleza e permitir a oração.
Demais,
além de perante a prosápia de Pedro o Mestre predizer a sua negação, tal como
fazem os outros 3 evangelistas (Jo 13,36-38; Mt 26,30-35; Mc
14,26-31; Lc 22,31-34),
Jesus deixa-nos a paz, mas a Sua Paz (14,27-31) e não a paz do mundo; prevê
duras perseguições (16,1-4); ensina a união dos discípulos com Ele, tal como
os sarmentos se unem à videira de que o Pai é o agricultor (15,1-8); garante a transformação da
tristeza dos discípulos em alegria (16,16-24); e, falando claramente, garante
a sua vitória sobre o mundo (16,25-33). Depois, vem o cap 17 com a
chamada oração sacerdotal de Jesus: a
manifestação da confiança no Pai, que glorificará o Filho e a prece pelos
discípulos, não para que saiam do mundo, mas para que sejam livres do mal.
Em
suma, os evangelistas garantem que Jesus, na Última Ceia, num contexto de
refeição pascal judaica com os discípulos, a quem chamou amigos e filhos,
instituiu a Eucaristia no mistério do pão e do vinho feitos seu corpo e sangue,
que entregou por nós. Fê-lo com os olhos colocados na sua Paixão, Morte e
Ressurreição. Instituiu o serviço do sacerdócio para que o sacrifício de Cristo
se presentifique, a Sua Palavra se difunda e se torne vida e os discípulos,
amando-se uns aos outros, de acordo com o mandamento que hoje receberam do
Senhor, façam que o mundo creia, espere e ame. Esta é a alegria, esta é a
missão!
***
Porém,
a Quinta-feira Santa, vista pelo olhar humano, não terminou bem. Só que tinha
de ser assim, nos termos da economia salvífica. A seguir ao cenáculo, a ação desenvolve-se no Getsémani. Nisto, os 4 evangelistas
acordam. Sigamos, no entanto, a narração de Marcos, o evangelista do Ano B, o
corrente.
Após
o canto dos salmos, saíram para o Monte das Oliveiras e Jesus predisse o
abandono de todos, segundo o que está escrito, Ferirei o pastor e as ovelhas hão de dispersar-se. Mas garantia
que, depois da ressurreição, os precederia a caminho da Galileia (cf
Mc 14,26-28).
Naquele
monte havia a propriedade chamada Getsémani. Ali chegados, o Mestre mandou que
os discípulos ali ficassem e, com Pedro Tiago e João, retirou-se para um lugar
mais isolado. Aí, tomado de pavor, confidenciou-lhes que estava numa tristeza
mortal. Ordenando-lhes que ficassem ali, adiantou-se, mas caiu por terra e orou
(cf
Mc 14,32-35),
dizendo: “ Abbá, Pai, tudo Te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se
faça o que Eu quero, mas sim o que Tu queres. (Mc 14,36).
Só
os iniciados no mistério do sofrimento compreenderão, em parte, a angústia com
que Jesus Se debatia, Ele que era o ser humano mais lúcido, mais sensível, mais
determinado da História. Lucas, o evangelista médico, releva a atrocidade da
dor de Jesus, explicitando que veio um anjo confortá-Lo e que o suor se lhe
tornou em grossas gotas de sangue que caíam por terra (vd Lc 22,43-44).
Evocando
as palavras dos Salmos 42 (5-12) e 43 (5),
o Mestre comunica àqueles três discípulos, que tinham testemunhado a
transfiguração (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36), um estado de tristeza mortal, que
lembra o sofrimento do justo (Sl 31,23; 61,3; 116,3).
Jesus
trata seu Pai por Abbá, paizinho,
papá. É o termo de intimidade com que a criança se dirige ao pai. Um judeu
nunca utilizava este termo na sua oração a Deus. Cristo fê-lo neste momento
crucial. A seu exemplo, os cristãos, filhos adotivos de Deus, irão, no Espírito,
dirigir-se ao seu Deus com este termo afetuoso (cf Gl 4,6).
Veio,
depois, ter com aqueles discípulos e, encontrando-os a dormir, interpelou Pedro
e incitou-os a vigiar e a orar para não caírem em tentação, advertindo para o
fulgor do espírito e para a debilidade da carne. A oração e a subsequente
advertência sucederam por três vezes. (cf Mc 14,37-41). No entanto, pela terceira vez,
o discurso aos três apóstolos foi diferente: “Dormi agora e descansai! Pois bem, chegou a
hora. Eis que o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores. Levantai-vos! Vamos! Eis que chega o
que me vai entregar.” (Mc 14, 41-42).
Com efeito, tinha chegado a sua hora, a hora de ser entregue nas
mãos dos pecadores.
Ainda
Ele estava a falar, chegou Judas à cabeça da multidão que vinha – da parte dos
sumos sacerdotes, dos doutores da Lei e dos anciãos – com espadas e varapaus. Reconheceram-nO logo que o traidor O beijou,
porquanto o sinal dado à multidão tinha sido: “Aquele que eu beijar é
esse mesmo; prendei-o e levai-o bem guardado”. Por isso, logo que Judas se
aproximou de Jesus e O beijou, outros deitaram-Lhe as mãos e prenderam-nO.
Então,
um dos discípulos de Jesus, puxando da espada, feriu o criado do Sumo Sacerdote
e cortou-lhe uma orelha, o que o Mestre não aprovou. Mas, tomando a palavra, Jesus
dirigiu-Se à multidão: “Como se Eu fosse
um salteador, viestes com espadas e varapaus para Me prender! Estava todos os dias junto de vós, no
Templo, a ensinar, e não Me prendestes; mas é para se cumprirem as Escrituras”. (cf Mc 14, 43-49).
Apesar de Jesus os ter ensinado e lhes ter
feito as últimas recomendações na Ceia, os discípulos até ali tão resolutos,
deixaram-se vencer pelo medo. Mesmo ouvindo Jesus a explicar que tinha de ser
assim para cumprimento das Escrituras – e não fora antes porque não tinha
chegado a Sua hora – aqueles homens deixaram-se levar pelo poder das trevas.
Fugiram.
O evangelista é explícito na referência à
fuga e insere um aparte amargamente irónico, que só ele conhece: “Então, os discípulos,
deixando-O, fugiram todos. Um certo jovem, que O seguia envolto apenas
num lençol, foi preso; mas ele,
deixando o lençol, fugiu nu.” (Mc 14, 50-51). Seria o próprio Marcos este jovem?
É
a necessária hora do poder das trevas, que esperamos ser breve, para que a
glória seja maior!
Cf
também Mt 26,47-56; Lc 22,47-53; Jo 18,3-11.
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