segunda-feira, 27 de abril de 2015

Viva a Constituição da República!

Foi com este brado, secundado por alguns dos seus camaradas, que António Arnaut respondeu espontaneamente às palavras de saudação e boas-vindas de Assunção Esteves aquando da receção ocorrida no Parlamento para evocar o quadragésimo aniversário das eleições para a Assembleia Constituinte, que decorreram a 25 de abril de 1975.
Essa sessão foi iniciativa do semanário Expresso e da própria Assembleia da República. Não haja dúvida de que, apesar das palavras de simpatia da Presidenta da AR, aliás como convinha, um simples “Viva!” lançado por um veterano do Parlamento vale mais do que um discurso oratório, por mais sumarento que seja.
Quanto à iniciativa do Expresso, confesso que foi uma das melhores formas de festejar o ato eleitoral para a Constituinte, inédito quanto à novidade, dimensão, objetivo e significado fundacional da democracia e único quanto ao índice de participação popular consubstanciado em 92% dos portugueses. Com efeito, a rua, as sessões de esclarecimento e a construção da consciência clara de que o voto era uma arma nas mãos do povo, um direito/dever inerente ao estatuto de cidadania de cada português e à curiosidade do “novo” – a que estaria também associado um certo cansaço das ações de rua – mobilizaram a população em todo o país; e as pessoas esperavam com complacência na fila a sua vez de receber, preencher em segredo e entregar à vista de todos na urna o seu boletim dobrado em quatro.
A revista do Expresso, do passado dia 25, traz a reportagem da sessão acima aludida em que estiveram presentes 75 dos deputados da Assembleia Constituinte, que posaram para uma fotografia para a História. Veem-se ali os rostos de homens e mulheres marcados pelo tempo, mas conservando um tónus de jovialidade pela memoração do que aquele ato de fundação do regime democrático significa para o devir pátrio. É óbvio que o Palácio de São Bento hoje reúne condições de comodidade e de serviços impensáveis em 1975. E os velhos deputados puderam experimentar estas condições, inclusive um almoço comemorativo e de franco convívio.
Além disso, puseram em destaque a memória de alguns factos, alguns dos quais eram já do conhecimento público. Assim, recordaram o cerco a que os deputados constituintes foram sujeitos, a 12 de novembro de 1985, por parte de uma multidão de trabalhadores convocados pelos sindicatos da Construção Civil e pela Intersindical. Foi uma situação de sitiamento que durou 24 horas. Alguns recordam que tiveram medo e ressaltam que somente o PCP conseguiu fazer entrar comida no Palácio. Saíram, no fim do cerco em fila e envergonhados perante a população.
Mas os deputados presentes recordaram também os que, entretanto, faleceram e os que foram substituídos durante a sessão constituinte.
Assumiram que o Palácio de São Bento era um oásis de liberdade em comparação com a agitação da rua, apesar da vivacidade das discussões, da dificuldade de evacuar as galerias em situações conflituosas por ausência da polícia por não obediência da mesma, da apresentação informal nas sessões plenárias (hoje impensável), dos episódios em que o público atirava moedas para o hemiciclo e os deputados faziam voar cinzeiros para as galerias, e da ameaça de bomba numa sessão plenária em que Pinto Balsemão estava a presidir no impedimento do presidente Henrique de Barros. Ficamos a saber que os deputados chegaram a estar com salários em atraso de pelo menos três meses, porque o Primeiro-Ministro os quis sujeitar à penúria e que se quotizavam aqueles que dispunham de maior pecúlio para ajudar a custear as despesas dos menos avantajados economicamente. E cada deputado auferia um vencimento correspondente à letra A da função pública – 10 000$00, o que no presente equivalia a cerca de €1400.
Os velhos deputados, comparando o nível do parlamento constituinte com o atual, enaltecem aquele e lamentam a mediocridade reinante na atual Casa da Democracia. Fazia-se política na rua, mas a política construía-se, refletia-se, discutia-se e passava-se a letra de forma na Assembleia Constituinte. Os representantes do povo entregavam-se então “de alma e coração” à atividade parlamentar; ainda não estavam peados pelos aparelhos partidários; lutavam em nome da ideologia, negociando o mais que podiam.
A este respeito, António Arnaut, crendo que a qualidade resultava da grande diversidade dos políticos deputados, confessa: “A Constituinte teve, do ponto de vista técnico, humano e até moral, um nível superior: havia operários e catedráticos, empresários e sindicalistas, advogados e comerciantes. Depois, o nível começou a baixar, a baixar, a baixar, até chegar…” (vd Expresso, 25/02, pg 34). E temos infelizmente de lhe dar razão, tendo em conta até as últimas iniciativas legislativas, bem como os níveis elevadíssimos de abstenção eleitoral e as faltas ao plenário.
***
Numa coisa eles estiveram de acordo. Mais do que lembrar as peripécias, importa festejar o resultado: a elaboração e a aprovação da Constituição. Pelos vistos, a cada bloco de artigos que eram aprovados, os deputados levantavam-se e entoavam a Portuguesa. O trabalho da aprovação do texto constitucional terminou às 7 horas da tarde do dia 2 de abril de 1975 e foi, a seguir, festejado com um porto de honra no Salão Nobre do Parlamento. O Presidente da República promulgou a Constituição às 9 horas da noite do mesmo dia. E a lei fundamental entrou em vigor a 25 de abril de 1976, dia das primeiras eleições para a Assembleia da República.
Assim, a Constituição da República Portuguesa (CRP), que está em vigor – embora tenha passado por 7 revisões, a última das quais ocorreu em 2005 (LC n.º 1/2005, de 12 de agosto) – conta já com 39 anos de existência.
Será bom que a CRP não seja torpedeada nem por comissão nem por omissão. Para isso, ao Presidente da República e ao Tribunal Constitucional cabe o ónus de a cumprir e fazer cumprir.
Disse bem Assunção Esteves no final do almoço dos deputados constituintes: “Queria sobretudo celebrar o papel da política como algo que contribui para uma vida realmente verdadeira – uma política que não é monopólio das instituições, mas que nos cabe a todos: os que estão aqui, na rua, nas suas casas ou no trabalho” (vd Expresso, 25/02, pg 35).  

Concluindo, seria bom que os partidos políticos de hoje olhassem para esta memória de um parlamento que trabalhou com afinco e sentido patriótico na luta por causas, em contexto de agitação e de pressão, e não para viver do poder. Seria bom que os partidos tivessem autoridade política – basta-lhes cumprir o mandato com elevação, ponderar as iniciativas legislativas e fazer trabalho político – e estofo moral para mobilizar os portugueses em torno das eleições. Serão capazes? Têm a palavra!

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