Foi com este brado, secundado por
alguns dos seus camaradas, que António Arnaut respondeu espontaneamente às palavras
de saudação e boas-vindas de Assunção Esteves aquando da receção ocorrida no
Parlamento para evocar o quadragésimo aniversário das eleições para a Assembleia
Constituinte, que decorreram a 25 de abril de 1975.
Essa sessão foi iniciativa do
semanário Expresso e da própria
Assembleia da República. Não haja dúvida de que, apesar das palavras de
simpatia da Presidenta da AR, aliás como convinha, um simples “Viva!” lançado
por um veterano do Parlamento vale mais do que um discurso oratório, por mais
sumarento que seja.
Quanto à iniciativa do Expresso, confesso que foi uma das melhores
formas de festejar o ato eleitoral para a Constituinte, inédito quanto à novidade,
dimensão, objetivo e significado fundacional da democracia e único quanto ao
índice de participação popular consubstanciado em 92% dos portugueses. Com efeito,
a rua, as sessões de esclarecimento e a construção da consciência clara de que o
voto era uma arma nas mãos do povo, um direito/dever inerente ao estatuto de
cidadania de cada português e à curiosidade do “novo” – a que estaria também associado
um certo cansaço das ações de rua – mobilizaram a população em todo o país; e
as pessoas esperavam com complacência na fila a sua vez de receber, preencher em
segredo e entregar à vista de todos na urna o seu boletim dobrado em quatro.
A revista do Expresso, do passado dia 25, traz a reportagem da sessão acima
aludida em que estiveram presentes 75 dos deputados da Assembleia Constituinte,
que posaram para uma fotografia para a História. Veem-se ali os rostos de
homens e mulheres marcados pelo tempo, mas conservando um tónus de jovialidade
pela memoração do que aquele ato de fundação do regime democrático significa
para o devir pátrio. É óbvio que o Palácio de São Bento hoje reúne condições de
comodidade e de serviços impensáveis em 1975. E os velhos deputados puderam
experimentar estas condições, inclusive um almoço comemorativo e de franco convívio.
Além disso, puseram em destaque a
memória de alguns factos, alguns dos quais eram já do conhecimento público. Assim,
recordaram o cerco a que os deputados constituintes foram sujeitos, a 12 de
novembro de 1985, por parte de uma multidão de trabalhadores convocados pelos
sindicatos da Construção Civil e pela Intersindical. Foi uma situação de sitiamento
que durou 24 horas. Alguns recordam que tiveram medo e ressaltam que somente o
PCP conseguiu fazer entrar comida no Palácio. Saíram, no fim do cerco em fila e
envergonhados perante a população.
Mas os deputados presentes recordaram
também os que, entretanto, faleceram e os que foram substituídos durante a
sessão constituinte.
Assumiram que o Palácio de São Bento
era um oásis de liberdade em comparação com a agitação da rua, apesar da
vivacidade das discussões, da dificuldade de evacuar as galerias em situações conflituosas
por ausência da polícia por não obediência da mesma, da apresentação informal
nas sessões plenárias (hoje
impensável), dos episódios em que o público atirava moedas para o hemiciclo
e os deputados faziam voar cinzeiros para as galerias, e da ameaça de bomba numa
sessão plenária em que Pinto Balsemão estava a presidir no impedimento do presidente
Henrique de Barros. Ficamos a saber que os deputados chegaram a estar com
salários em atraso de pelo menos três meses, porque o Primeiro-Ministro os quis
sujeitar à penúria e que se quotizavam aqueles que dispunham de maior pecúlio
para ajudar a custear as despesas dos menos avantajados economicamente. E cada deputado
auferia um vencimento correspondente à letra A da função pública – 10 000$00, o
que no presente equivalia a cerca de €1400.
Os velhos deputados, comparando o
nível do parlamento constituinte com o atual, enaltecem aquele e lamentam a mediocridade
reinante na atual Casa da Democracia. Fazia-se política na rua, mas a política construía-se,
refletia-se, discutia-se e passava-se a letra de forma na Assembleia
Constituinte. Os representantes do povo entregavam-se então “de alma e coração”
à atividade parlamentar; ainda não estavam peados pelos aparelhos partidários;
lutavam em nome da ideologia, negociando o mais que podiam.
A este respeito, António Arnaut,
crendo que a qualidade resultava da grande diversidade dos políticos deputados,
confessa: “A Constituinte teve, do ponto de vista técnico, humano e até moral,
um nível superior: havia operários e catedráticos, empresários e sindicalistas,
advogados e comerciantes. Depois, o nível começou a baixar, a baixar, a baixar,
até chegar…” (vd Expresso, 25/02, pg 34). E temos
infelizmente de lhe dar razão, tendo em conta até as últimas iniciativas
legislativas, bem como os níveis elevadíssimos de abstenção eleitoral e as faltas
ao plenário.
***
Numa coisa eles estiveram de
acordo. Mais do que lembrar as peripécias, importa festejar o resultado: a elaboração
e a aprovação da Constituição. Pelos vistos, a cada bloco de artigos que eram
aprovados, os deputados levantavam-se e entoavam a Portuguesa. O trabalho da aprovação do texto constitucional terminou
às 7 horas da tarde do dia 2 de abril de 1975 e foi, a seguir, festejado com um
porto de honra no Salão Nobre do Parlamento. O Presidente da República
promulgou a Constituição às 9 horas da noite do mesmo dia. E a lei fundamental entrou
em vigor a 25 de abril de 1976, dia das primeiras eleições para a Assembleia da
República.
Assim, a Constituição da
República Portuguesa (CRP),
que está em vigor – embora tenha passado por 7 revisões, a última das quais ocorreu
em 2005 (LC n.º 1/2005, de 12
de agosto) – conta já com 39 anos de existência.
Será bom que a CRP não seja torpedeada
nem por comissão nem por omissão. Para isso, ao Presidente da República e ao
Tribunal Constitucional cabe o ónus de a cumprir e fazer cumprir.
Disse bem Assunção Esteves no
final do almoço dos deputados constituintes: “Queria sobretudo celebrar o papel
da política como algo que contribui para uma vida realmente verdadeira – uma política
que não é monopólio das instituições, mas que nos cabe a todos: os que estão
aqui, na rua, nas suas casas ou no trabalho” (vd Expresso, 25/02,
pg 35).
Concluindo, seria bom que os
partidos políticos de hoje olhassem para esta memória de um parlamento que
trabalhou com afinco e sentido patriótico na luta por causas, em contexto de
agitação e de pressão, e não para viver do poder. Seria bom que os partidos tivessem
autoridade política – basta-lhes cumprir o mandato com elevação, ponderar as
iniciativas legislativas e fazer trabalho político – e estofo moral para
mobilizar os portugueses em torno das eleições. Serão capazes? Têm a palavra!
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