quinta-feira, 9 de abril de 2015

Recordando Manoel de Oliveira, cineasta humanista e cosmopolita

Finou-se o cineasta a 2 de abril na cidade do Porto, por coincidência (não me atrevo a dizer “por felicidade”, porque não o sei) no 10.º aniversário do falecimento do Papa João Paulo II, que, segundo consta, o artista admirava. Tanto o admirava que, no dizer do Bispo do Porto, manifestara à família o desejo de ver colocadas, entre outras, junto ao seu espólio pessoal, a confiar à Fundação Serralves, na futura Casa do Cinema, duas fotografias suas: uma com o Papa Wojtyla, em Roma, e outra com o Papa Bento XVI, em Lisboa. No caso do Papa Ratzinger, será para marcar o memorável encontro papal com os representantes do mundo da cultura.
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No velório compareceram muitas figuras públicas e inúmeros admiradores seus em razão da vocação artística e/ou da sabedoria que a sua experiência da vida ensina. Não desminto as referências elogiosas que lhe foram endereçadas e compartilho sobretudo aquelas que envolvem a temática da arte, do trabalho e da vida.

As exéquias solenes na Igreja de Cristo Rei, na Foz, participadas por familiares, amigos e admiradores, foram presididas por Dom Pio Alves, Bispo Auxiliar do Porto e Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais. Era Sexta-feira Santa, dia em que os cristãos se reuniam nas igrejas para celebrar a Paixão e Morte de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, “o Filho de Deus que Se fez um de nós e morreu por nosso amor para nos oferecer a alegria da salvação”.
Foi este o contexto que o venerando Prelado evocou para enquadrar aquela reunião de “convocados pelo amor ou pela amizade ou pela admiração ou pela gratidão ao cineasta Manoel de Oliveira”. Era o contexto da “serenidade do silêncio da morte, caminho de ressurreição” propício à prece ao Senhor da Vida pelo eterno descanso do irmão defunto; ao louvor e agradecimento a Deus pela sua longa vida de serviço à Sociedade e à Cultura; e à imploração do “dom da esperança, particularmente para todos os que lhe são mais próximos”.
Numa celebração em que a referência imediata eram os restos mortais, mas no horizonte da eternidade, Dom Pio Alves, evocando o longo filme da vida que o cineasta “não tinha pressa de rodar”, citou palavras da resposta do próprio, quando lhe perguntaram se já tinha pensado na morte: “A morte é algo que nos acompanha … A ideia, o receio, o pensamento, o medo, o mistério e o segredo da morte”. E acrescentara: “Alguém disse que ‘se Cristo não ressuscitou, toda a nossa fé é vã’. É o segredo da morte” (1Cor 15, 14).
Ao jornalista que lhe recordava que um dia afirmara que ‘se pudesse, já tinha comprado um bilhete para o céu’ e lhe perguntava se ‘ainda pensava na compra desse bilhete, respondera com toda a simplicidade e alguma ironia acutilante: “Sim. Não se perde nada com isso. Só se pode ganhar. Se o céu existe … é bom que se tenha o bilhete”.
O alto responsável eclesiástico pela pastoral da cultura e da comunicação social fez questão em destacar o lado “profundamente humano” do artista, “marcado pelas eternas perguntas do homem como criatura” e pelo sentido da busca, indo recorrentemente às suas raízes, recusando “fechar as janelas à Luz”, procurando infatigavelmente “horizontes de eternidade, do Absoluto”.
Depois, citou as palavras de Manoel de Oliveira na brilhante saudação que endereçou, em nome dos representantes do mundo da cultura, a Bento XVI, em 12 de maio de 2010, no Centro Cultural de Belém, justificativas do pedido de bênção filial ao Sumo Pontífice: “pertencente à família cristã, de cujos valores comungo, e que são as raízes da nação portuguesa e de toda a Europa, quer queiramos ou não”.
O texto da perícopa do Evangelho (Mc 15,33-39) proclamado naquela Celebração da Palavra exequial, já que, em razão do dia que era, não pôde celebrar-se a Eucaristia, recorda a morte de Cristo, que desemboca na ressurreição. É este Evangelho, segundo o insigne Prelado, a resposta à dúvida existencial que Oliveira expressava ao citar o apóstolo Paulo. Com efeito, Jesus Cristo, ao ter ressuscitado, obteve a vitória sobre a morte e abriu as portas do céu. Assim, embora a morte, como recorda o Livro da Sabedoria (3,1-6.9), continue a bater à porta como desgraça e aniquilamento, pela Ressurreição do Senhor, ela passa a constituir a “porta que se abre para a paz, para a imortalidade, para a compreensão da verdade, para o amor, para a misericórdia”.
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Por seu turno, o Bispo do Porto, Dom António Francisco do Santos, que marcara presença no velório para oferecer o testemunho da Igreja portuense de apreço pela cultura e por um dos seus exímios cultores, presidiu na Sé Catedral à missão de 7.º dia, no passado dia 7.
Na convicção de que “muitas vezes a Palavra de Deus é a única voz possível a quebrar o silêncio da nossa mágoa e a retirar-nos da dor que cala a nossa voz”, servindo de “bálsamo que alivia o coração nas horas de luto”, evocou os dois episódios que enformaram a Liturgia da Palavra daquela Celebração Eucarística: a caminhada dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35); e a cura do coxo por Pedro (At 3,1-10). Os discípulos de Emaús, industriados pelas explicações na caminhada, “reconheceram Jesus, vivo e ressuscitado, ao partir do pão”; Pedro, a principal testemunha do Ressuscitado, ao subir ao Templo, acompanhado de João, respondeu ao mendigo e doente, que jazia por terra à porta do Templo de Jerusalém e lhe pedira auxílio: “Não tenho ouro nem prata, mas dou-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo, levanta-te e anda”.
E, depois de sublinhar o papel da Palavra de Deus como “âncora” e “farol” de nossas vidas, relevou mais algumas das suas valias: “dá sentido à nossa esperança na vida para lá da morte”; “fortalece o valor insubstituível da amizade dos mais próximos, atentos e presentes”; sustenta a família de quem parte; e transforma em bênção que permanece para sempre, a memória sagrada de quem nos deixa.
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Depois de aludir a uma breve relação da Palavra de Deus com a família do cineasta, o qual “já contempla a luz da ressurreição e da Páscoa”, Dom António Francisco passa a uma resenha da factual e valorativa vida de Manoel de Oliveira 
Nasceu no Porto a 11 de dezembro de 1908 e faleceu com 106 anos de “uma vida cheia de talento, de êxito e de prestígio”. Apostado na simplicidade no viver, na nobreza de caráter, no gosto pela cidade, pelo rio, pelo país – simplicidade que o acompanhou durante a vida inteira – Oliveira “era um homem de brilhante saber que se maravilhava diante da sensibilidade dos mais humildes e dos gestos mais simples”.
Casado, desde 1940, com D. Maria Isabel Carvalhais, sempre achou na família o ambiente feliz que o envolveu na vida e trabalho, trabalho que assumia como “arte caldeada na arte da vida”.
Segundo o Bispo do Porto, os filmes deste artista constituem para nós “interpelações profundas e oportunos desafios para percebermos o rumo do futuro da humanidade, já que evidenciam “o gosto pela natureza, a forma de compreender e respeitar a dignidade humana e o modo de intuir os complexos contextos da sociedade atual”.
Depois, o líder da Igreja diocesana lembrou uma sequência de enunciados proferidos por Oliveira, que podem corporizar “um belo programa de vida e missão”: É “preferível morrer a perverter a dignidade. Sem dignidade não há identidade. E sem estas duas não há liberdade. E a liberdade impõe respeito pelo próximo”.
Relacionando o facto de a morte do cineasta ter ocorrido durante a Semana Santa, em que se recorda a morte de Cristo como verdadeiro “ato de primavera”, propõe esta recordação como “a melhor maneira de merecermos este grande portuense, ilustre português, prestigiado mestre, realizador e cineasta, que é Manuel de Oliveira”, ficando nós com a “certeza inabalável da vida nova que a Páscoa já lhe deu”, pois, em Cristo Ressuscitado “não é vã a nossa fé”.
No dizer do venerando Antístite, aplicado ao imortal cultor da sétima arte, “uma vida inteira não se encerra numa palavra, não se fecha na memória, nem tão pouco se devolve ao tempo”. Mais. “Uma vida dada é um tesouro que se guarda, é uma semente que germina, é uma luz que irrompe na manhã, é o anúncio definitivo da Páscoa, é a certeza perene da ressurreição”. Destaca ainda as caraterísticas valorativas que “Deus foi cinzelando em Manoel de Oliveira, desde o berço”, que compaginam “traços indeléveis de caráter, de valor e de talento que fizeram dele um peregrino do absoluto, incansável buscador da beleza e da perfeição, aparentemente muito distantes do nosso alcance humano, mas tantas vezes tocadas de perto pelas coisas belas que a arte e o talento, como sementes do divino, criam, recriam e realizam”.
O Bispo do Porto entende como um conselho, que o cineasta recebeu de Bento XVI, as palavras que o Papa alemão preferiu em resposta à saudação que Oliveira lhe dirigira em nome das homens e das mulheres de cultura de Portugal, no Centro Cultural de Belém, em 2010: “Os artistas realizam coisas belas. Procurai fazer da vossa vida lugares de beleza”. Tais palavras comportam, a meu ver, uma verificação (“realizam”) e um repto (“procurai fazer”). Embora na linha da doutrina e estética eclesiais, foram João Paulo II e Bento XVI quem protagonizou a apologia da beleza assumida como caminho de ascensão para Deus, a “via pulchritudinis”.
Lembrando que o homenageado tinha “um arquivo gigante de ideias que ainda não pusera em prática”, assegura que pertence a todos, mas sobretudo aos portuenses e às gerações futuras, “aprender na escola deste grande Mestre que soube associar o talento e a simplicidade, o rigor e a arte, o sonho e a criação, a família e o trabalho, o amor à sua cidade-mãe e a dimensão do mundo, que a universalidade da sua obra granjeou”. E, “se a morte é” – palavras de Oliveira a Frei Bernardo Domingues – “como uma porta que, quando se abre, é para alguma coisa que vale a pena”, Dom António Francisco propõe a gratidão a Deus pela vida e obra de Manoel de Oliveira, porque “para ele já se abriu a porta da ressurreição e da vida para sempre”.
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Penso que o evento constituiu um notável exemplo de diálogo entre a fé e a cultura, mediante uma personalidade marcada pela fé e arte, cultura e humanidade, telurismo e cosmopolitismo – momento secundado pela presença e pela palavra de dois notáveis bispos da Igreja em Portugal, que leem pela mesma cartilha doutrinal e pastoral. Louvores a Deus!

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