Ao
ler alguns textos da Paixão de Cristo, lembrei-me do lema episcopal que Dom
António Francisco dos Santos, ora Bispo do Porto, assumiu quando foi eleito
bispo titular de Meinedo e auxiliar de Braga e que persiste ao longo dos
diversos lugares aonde foi chamado a exercer o múnus do episcopado – In
manus tuas.
O
lema inscrito no seu brasão de “armas de fé” é explicitado como sendo “um lema
de vida, de entrega e de doação a Deus, que é simbolizada pelo ouro”. Suponho
que a referência ao ouro tem a ver, não tanto com a estrutura mórfica do vil
metal (embora
denominado de metal nobre),
mas com aquilo que ele simboliza, a nobreza do ouro cordi-humano do insigne
prelado, que alguém denominou bispo da proximidade dialogante.
Já
agora recordo que o aludido brasão de armas referencia o monte de seis cômoros
como alusão à sua terra natal, de forte espiritualidade simultaneamente cristã
e telúrica. Porém, a explicitação da simbólica alude a que “as montanhas contêm ainda o simbolismo da
vida pautada pela austeridade, sacrifício e constância”. Trilogia que bem
quadra ao perfil do prelado e exemplar do sofrimento de um povo que padece dos malefícios
da parte de quem é chamado por via política a zelar pelos seus direitos e justas
aspirações.
Não
espanta que o bispo deva e queira seguir Jesus Cristo. Porém, o que é admirável
neste bispo é a assunção radical do rumo e os termos escolhidos para a sua
concretização e persistentemente reafirmados – união a Cristo e à Sua Cruz, sob
o olhar terno de Maria, presente junto da Cruz:
Senti
que só conseguiria reencontrar a serenidade de coração e a liberdade de
espírito, quando com a ajuda de Deus vencesse todos os receios e temores. (…). IN MANUS TUAS é o lema episcopal que
escolhi, quando o Papa João Paulo II me chamou a ser bispo auxiliar de Braga e
titular de Meinedo. Renovei este mesmo compromisso diante do Papa Bento XVI
quando me enviou para Aveiro. É com igual verdade que agora o afirmo diante do
Papa Francisco. Este lema e os sentimentos que ele exprime unem-me a Cristo e à
Sua Cruz e colocam-me sob o olhar terno da Mãe de Jesus, Senhora da Assunção,
nossa Mãe e Padroeira. – (da primeira mensagem
à diocese do Porto, 21-02-2014).
Mas o bispo vai mais adiante na
concretização do seu propósito de proximidade e profecia, lembrado da Palavra
de Deus ao Profeta Jeremias: “Irás aonde
Eu te enviar” (Jr 1,7).
Serei
irmão e presença junto dos doentes, dos pobres e dos que sofrem e com eles
procurarei fazer caminho de bondade e de esperança na busca comum de um mundo
melhor. Quero ser apóstolo das Bem-Aventuranças nestes tempos difíceis que
vivemos. (id et ib).
E na mensagem que deixou à
diocese de Aveiro não é menos explícito, afirmando a pauta de ação pela
disponibilidade de Abraão: “Nesta hora, não encontro outras palavras senão
estas ditas por Deus quando chamou Abraão: ‘Deixa
a tua terra, a tua família e vai para a terra que eu te indicar’” (Gn 12,1). E, com a determinação muito
própria de si mesmo:
Em
todos os lugares permaneci e trabalhei, por pouco ou muito tempo, com alegria.
Sempre me senti livre para daí partir no dia seguinte, se necessário fosse.
Sempre, de igual modo, me senti disponível para aí permanecer. (…). À voz de
Deus e ao mandato da Igreja eu só posso dizer “Sim” por entre desafios, temores e surpresas. Sempre me senti
sereno quando obedeci. Sempre reencontrei a liberdade interior quando, depois
de dúvidas e receios, venci o temor e disse “sim” a Deus e à Igreja. (vd mensagem deixada à diocese de Aveiro,
20-02-2014).
Assume a disponibilidade em
coerência com aquilo que pediu a outros:
Pedi
a muitos dos nossos sacerdotes em cada ano que, por imperativo de missão,
deixassem terras e comunidades e partissem, com alegria e coragem, para outras
terras e novas comunidades. Agora tenho eu mesmo de ser coerente e consequente
com o que pedi aos outros. (id et ib).
Também na sua homilia na solene
entrada na diocese do Porto aponta o conteúdo emblemático da sua
disponibilidade:
Apenas
quem serve com amor e ternura, que são as linhas do rosto de compaixão e de
misericórdia de Deus, é capaz de cuidar, de proteger, de promover e de salvar o
seu Povo. Por isso, irmãos e irmãs, ajudai-me a ser pastor ao jeito do coração
de Deus e a seguir em todos os passos o exemplo de Cristo, o belo e bom Pastor.
É a conjugação harmoniosa entre a
liberdade e a obediência, a consciência das limitações e a firme determinação,
o desconhecido e a fé na Palavra de Deus e no mandato da Igreja. É o coração do
bispo mergulhado na oração e feito disponibilidade e ação ao serviço de todos.
***
A frase completa do lema e do enunciado
em epígrafe é “Pater, in manus tuas commendo
spiritum meum” (Lc 23,46 – cf A. Merk, 1964) – Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. É, segundo Lucas, com a
palavra “Pai” que Jesus introduz a sua oração/invocação derradeira antes de
expirar. É ao Pai que Jesus dirige a sua última palavra neste mundo, como
também fora a primeira que utilizou para dele dar testemunho, “Não sabíeis que devia estar em casa de meu
Pai?” (Lc 2,49).
Foram estas as palavras que proferiu em resposta a Sua Mãe quando, encontrado
no Templo, sentado entre os doutores a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas, Ela o
interpelou, “Olha que teu pai e eu andávamos
aflitos à tua procura!” (v. 45). E é com a palavra “Pai”, e em torno dela, que
Jesus ensina os discípulos a rezar (cf Mt 6, 9-15; Lc
11,2-4).
Também o diácono Estêvão, considerado
protomártir do cristianismo, à imitação de Jesus Cristo, o Mártir Gólgota, enquanto
o apedrejavam, orava, já não ao Pai, mas ao Seu Cristo, dizendo: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito”. E também,
à semelhança de Cristo, rogou: “Senhor,
não lhes atribuas este pecado” (cf At 7,59-60). Note-se o paralelismo deste
rogo com o similar de Cristo: “Perdoa-lhes,
Pai, porque não sabem o que fazem.” (Lc 23,34). A oração de Jesus no supremo momento
da sua vida corresponde à sua consciência filial e a sua missão de misericórdia,
inerente ao seu estatuto de mártir da Verdade (Jo 18,27), “pastor e bispo das nossas
almas” (1Pe
22,25). O primeiro
mártir é assim anunciado como o discípulo fiel do Senhor Jesus Cristo.
As palavras de Cristo In manuas tuas… e as de Estêvão são o
eco neotestamentário do salmo 31 (30), v. 6, “Nas tua mãos entrego o meu espírito; Senhor Deus fiel, salva-me”. É
a oração na provação, expressa a modo de súplica individual e expressão da confiança
pessoal no Senhor com vista à comunidade dos fiéis de Deus, os ora fiéis de Cristo.
Efetivamente, a morte de Cristo implicou a fuga de quase todos, com exceção de
Maria, a mãe, acompanhada de algumas mulheres e do discípulo amado. Porém, a Sua
ressurreição implicou a recongregação dos discípulos e a sua missão de ir por
todo o mundo a anunciar o Evangelho, tendo a lúcida força do Espírito Santo
posto os apóstolos a falar de modo que cada um os ouvia na sua própria língua (cf
Lc 24,45-49; At 2,3-5).
E, se com o martírio de Estêvão vieram mais perseguições e os discípulos se dispersaram,
“os que tinham sido dispersados foram de aldeia em aldeia, anunciando a palavra
da boa nova” (cf At 8,1-3.4).
Com razão assegurava Tertuliano que o sangue dos mártires é semente de cristãos
– sanguis martyrum semen christianorum.
Segundo o Papa Francisco (cf
EG 31), “o bispo
deve favorecer a comunhão missionária na sua Igreja diocesana, seguindo o ideal
das primeiras comunidades cristãs, em que os crentes tinham um só coração e uma
só alma” (cf At 4,32).
Ora essa unidade provinha do grande poder com que os apóstolos davam testemunho
da ressurreição do Senhor Jesus (a qual corresponde àquele
pedido do Sl 31, Senhor Deus fiel, salva-me
– o Deus em cujas mãos Jesus e Estêvão entregaram o espírito).
***
Assim,
o bispo e os seus cristãos, irmanados no discipulado e na missão de apresentar
Jesus Ressuscitado como o Messias e Senhor, devem estar atentos às palavras de
Pedro, “Aqueles que tenham de sofrer
segundo a vontade de Deus encomendem as suas almas ao Criador, que é fiel,
perseverando na prática do bem”. E quadra-lhes o conteúdo e o dinamismo atitudinal
proposto pelo Salmo 131 (130), salmo de confiança pessoal e filial, próximo da
“infância espiritual”, que exprime a serenidade essencial de quem se sente
invadido pelo Senhor (v.3). ei-lo:
1 Cântico das peregrinações. De David.
SENHOR, o meu coração não é orgulhoso,
nem os meus olhos são altivos.
Não corro atrás de grandezas
nem de coisas superiores a mim.
2 Pelo contrário, estou sossegado e tranquilo,
como criança saciada ao colo da mãe;
a minha alma é como uma criança saciada!
3 Israel, espera no Senhor,
desde agora e para sempre!
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