quinta-feira, 2 de abril de 2015

In manus tuas…ou Um bispo que ousa levar a peito o seguimento de Cristo no momento mais dramático


Ao ler alguns textos da Paixão de Cristo, lembrei-me do lema episcopal que Dom António Francisco dos Santos, ora Bispo do Porto, assumiu quando foi eleito bispo titular de Meinedo e auxiliar de Braga e que persiste ao longo dos diversos lugares aonde foi chamado a exercer o múnus do episcopado – In manus tuas.
O lema inscrito no seu brasão de “armas de fé” é explicitado como sendo “um lema de vida, de entrega e de doação a Deus, que é simbolizada pelo ouro”. Suponho que a referência ao ouro tem a ver, não tanto com a estrutura mórfica do vil metal (embora denominado de metal nobre), mas com aquilo que ele simboliza, a nobreza do ouro cordi-humano do insigne prelado, que alguém denominou bispo da proximidade dialogante.
Já agora recordo que o aludido brasão de armas referencia o monte de seis cômoros como alusão à sua terra natal, de forte espiritualidade simultaneamente cristã e telúrica. Porém, a explicitação da simbólica alude a que “as montanhas contêm ainda o simbolismo da vida pautada pela austeridade, sacrifício e constância”. Trilogia que bem quadra ao perfil do prelado e exemplar do sofrimento de um povo que padece dos malefícios da parte de quem é chamado por via política a zelar pelos seus direitos e justas aspirações.
Não espanta que o bispo deva e queira seguir Jesus Cristo. Porém, o que é admirável neste bispo é a assunção radical do rumo e os termos escolhidos para a sua concretização e persistentemente reafirmados – união a Cristo e à Sua Cruz, sob o olhar terno de Maria, presente junto da Cruz:
Senti que só conseguiria reencontrar a serenidade de coração e a liberdade de espírito, quando com a ajuda de Deus vencesse todos os receios e temores. (…). IN MANUS TUAS é o lema episcopal que escolhi, quando o Papa João Paulo II me chamou a ser bispo auxiliar de Braga e titular de Meinedo. Renovei este mesmo compromisso diante do Papa Bento XVI quando me enviou para Aveiro. É com igual verdade que agora o afirmo diante do Papa Francisco. Este lema e os sentimentos que ele exprime unem-me a Cristo e à Sua Cruz e colocam-me sob o olhar terno da Mãe de Jesus, Senhora da Assunção, nossa Mãe e Padroeira. – (da primeira mensagem à diocese do Porto, 21-02-2014).
Mas o bispo vai mais adiante na concretização do seu propósito de proximidade e profecia, lembrado da Palavra de Deus ao Profeta Jeremias: “Irás aonde Eu te enviar” (Jr 1,7).
Serei irmão e presença junto dos doentes, dos pobres e dos que sofrem e com eles procurarei fazer caminho de bondade e de esperança na busca comum de um mundo melhor. Quero ser apóstolo das Bem-Aventuranças nestes tempos difíceis que vivemos. (id et ib).
E na mensagem que deixou à diocese de Aveiro não é menos explícito, afirmando a pauta de ação pela disponibilidade de Abraão: “Nesta hora, não encontro outras palavras senão estas ditas por Deus quando chamou Abraão: ‘Deixa a tua terra, a tua família e vai para a terra que eu te indicar’ (Gn 12,1). E, com a determinação muito própria de si mesmo:
Em todos os lugares permaneci e trabalhei, por pouco ou muito tempo, com alegria. Sempre me senti livre para daí partir no dia seguinte, se necessário fosse. Sempre, de igual modo, me senti disponível para aí permanecer. (…). À voz de Deus e ao mandato da Igreja eu só posso dizer “Sim” por entre desafios, temores e surpresas. Sempre me senti sereno quando obedeci. Sempre reencontrei a liberdade interior quando, depois de dúvidas e receios, venci o temor e disse “sim” a Deus e à Igreja. (vd mensagem deixada à diocese de Aveiro, 20-02-2014).
Assume a disponibilidade em coerência com aquilo que pediu a outros:
Pedi a muitos dos nossos sacerdotes em cada ano que, por imperativo de missão, deixassem terras e comunidades e partissem, com alegria e coragem, para outras terras e novas comunidades. Agora tenho eu mesmo de ser coerente e consequente com o que pedi aos outros. (id et ib).
Também na sua homilia na solene entrada na diocese do Porto aponta o conteúdo emblemático da sua disponibilidade:
Apenas quem serve com amor e ternura, que são as linhas do rosto de compaixão e de misericórdia de Deus, é capaz de cuidar, de proteger, de promover e de salvar o seu Povo. Por isso, irmãos e irmãs, ajudai-me a ser pastor ao jeito do coração de Deus e a seguir em todos os passos o exemplo de Cristo, o belo e bom Pastor.
É a conjugação harmoniosa entre a liberdade e a obediência, a consciência das limitações e a firme determinação, o desconhecido e a fé na Palavra de Deus e no mandato da Igreja. É o coração do bispo mergulhado na oração e feito disponibilidade e ação ao serviço de todos.
***
A frase completa do lema e do enunciado em epígrafe é “Pater, in manus tuas commendo spiritum meum” (Lc 23,46 – cf A. Merk, 1964) – Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. É, segundo Lucas, com a palavra “Pai” que Jesus introduz a sua oração/invocação derradeira antes de expirar. É ao Pai que Jesus dirige a sua última palavra neste mundo, como também fora a primeira que utilizou para dele dar testemunho, “Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?” (Lc 2,49). Foram estas as palavras que proferiu em resposta a Sua Mãe quando, encontrado no Templo, sentado entre os doutores a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas, Ela o interpelou, “Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura!” (v. 45). E é com a palavra “Pai”, e em torno dela, que Jesus ensina os discípulos a rezar (cf Mt 6, 9-15; Lc 11,2-4).
Também o diácono Estêvão, considerado protomártir do cristianismo, à imitação de Jesus Cristo, o Mártir Gólgota, enquanto o apedrejavam, orava, já não ao Pai, mas ao Seu Cristo, dizendo: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito”. E também, à semelhança de Cristo, rogou: “Senhor, não lhes atribuas este pecado” (cf At 7,59-60). Note-se o paralelismo deste rogo com o similar de Cristo: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem.” (Lc 23,34). A oração de Jesus no supremo momento da sua vida corresponde à sua consciência filial e a sua missão de misericórdia, inerente ao seu estatuto de mártir da Verdade (Jo 18,27), “pastor e bispo das nossas almas” (1Pe 22,25). O primeiro mártir é assim anunciado como o discípulo fiel do Senhor Jesus Cristo.
As palavras de Cristo In manuas tuas… e as de Estêvão são o eco neotestamentário do salmo 31 (30), v. 6, “Nas tua mãos entrego o meu espírito; Senhor Deus fiel, salva-me”. É a oração na provação, expressa a modo de súplica individual e expressão da confiança pessoal no Senhor com vista à comunidade dos fiéis de Deus, os ora fiéis de Cristo. Efetivamente, a morte de Cristo implicou a fuga de quase todos, com exceção de Maria, a mãe, acompanhada de algumas mulheres e do discípulo amado. Porém, a Sua ressurreição implicou a recongregação dos discípulos e a sua missão de ir por todo o mundo a anunciar o Evangelho, tendo a lúcida força do Espírito Santo posto os apóstolos a falar de modo que cada um os ouvia na sua própria língua (cf Lc 24,45-49; At 2,3-5). E, se com o martírio de Estêvão vieram mais perseguições e os discípulos se dispersaram, “os que tinham sido dispersados foram de aldeia em aldeia, anunciando a palavra da boa nova” (cf At 8,1-3.4). Com razão assegurava Tertuliano que o sangue dos mártires é semente de cristãos – sanguis martyrum semen christianorum.
Segundo o Papa Francisco (cf EG 31), “o bispo deve favorecer a comunhão missionária na sua Igreja diocesana, seguindo o ideal das primeiras comunidades cristãs, em que os crentes tinham um só coração e uma só alma” (cf At 4,32). Ora essa unidade provinha do grande poder com que os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus (a qual corresponde àquele pedido do Sl 31, Senhor Deus fiel, salva-me – o Deus em cujas mãos Jesus e Estêvão entregaram o espírito).
***
Assim, o bispo e os seus cristãos, irmanados no discipulado e na missão de apresentar Jesus Ressuscitado como o Messias e Senhor, devem estar atentos às palavras de Pedro, “Aqueles que tenham de sofrer segundo a vontade de Deus encomendem as suas almas ao Criador, que é fiel, perseverando na prática do bem”. E quadra-lhes o conteúdo e o dinamismo atitudinal proposto pelo Salmo 131 (130), salmo de confiança pessoal e filial, próximo da “infância espiritual”, que exprime a serenidade essencial de quem se sente invadido pelo Senhor (v.3). ei-lo:

Cântico das peregrinações. De David.

SENHOR, o meu coração não é orgulhoso,
nem os meus olhos são altivos.
Não corro atrás de grandezas
nem de coisas superiores a mim.

Pelo contrário, estou sossegado e tranquilo,
como criança saciada ao colo da mãe;
a minha alma é como uma criança saciada!

Israel, espera no Senhor,
desde agora e para sempre!

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