A 13 de abril do corrente, li no site
“educare.pt”, um texto de Andreia Lobo sobre as pretensas vantagens da
municipalização da educação e do ensino, baseando-se num quadro opinativo
veiculado pela presidente da Associação Nacional de Licenciados em Ciências da
Educação (ANALCE), Patrícia Figueiredo. Afirmava esta profissional da educação
a sua esperança em que “o polémico processo de municipalização” possa “vir a
ser uma oportunidade” para estes profissionais das Ciências da Educação (CE), uma vez que a mais
competências corresponderá a “maior necessidade de tomada de decisões que se
querem fundamentadas”.
A principal afirmação em que lhe dou razão é que o processo é polémico e
acrescento que, em meu entender, não se pauta pelo escopo de mais e melhor
educação, mas significa a progressiva desresponsabilização do Estado em matéria
educativa, aliás como asseguram muitos, constituindo uma via para a entrega da
educação e do ensino a privados.
O lugar dos licenciados em CE na sociedade portuguesa (não digo a mesma coisa em relação a especializações, mestrados e
doutoramentos na área) resulta basicamente do esvaziamento progressivo da formação inicial de
professores nesta área, potenciado pela dispensa do 2.º ano da
profissionalização em serviço para aqueles que tinham lecionado durante seis
anos letivos no grupo disciplinar em que estavam a adquirir a
profissionalização (vd DL n.º 287/88, de 29 de agosto) e a dispensa da profissionalização
para os que estivessem a lecionar há quinze anos aquando da entrada em vigor do
DL n.º 18/88, de 21 de janeiro, e possuíssem habilitação própria no grupo em
que lecionavam, bem como a implementação das licenciaturas em ensino nas
Universidades clássicas (vd Portaria n.º 659/88, de 29 de
setembro).
É certo que surgiram novas problemáticas no contexto da educação e da
escola. Porém, a preparação para a resposta a elas deve constituir um adicional
à formação inicial de professores e não tanto a um corpo de licenciados em CE (sobretudo após o processo de Bolonha) – não dizendo o mesmo sobre a necessidade de dotar a escola de outros
técnicos superiores, nomeadamente nas áreas da Psicologia, da Saúde e do
Serviço Social. Porém, a maior parte das questões passam pela intervenção do professor
/ educador, e quanto mais qualificado melhor.
De resto, pergunto-me quantos “licenciados” em CE estão absorvidos pelos
quadros do Ministério da Educação, nas defuntas direções regionais ou nas
escolas. E vou acreditar que venham agora as câmaras municipais salvar estes
profissionais de educação, quando a tendência tem sido a afetação de
professores /educadores em prol dos quais se mobiliza o conveniente capital de
relação (Desculpe-se-me o eufemismo!), designadamente os que não têm
colocação ou os que não querem ir para longe da sua residência?
É certo que os mestres e doutores em CE têm ocupado lugar de relevo nas
estruturas do MEC, sobretudo ao nível da formação contínua e do apoio ao
desempenho. Todavia, os docentes que detêm aqueles níveis de graduação nessa
área ou têm lugar como diretores, cada vez menos, devido ao mecanismo do
agrupamento de escolas e da agregação de agrupamentos, ou, caso contrário, essa
nova qualificação é praticamente ignorada. Não é crível que venham as
autarquias fazer reverter a situação, até porque, em muitos casos, os autarcas
têm preferido exercer a sua influência no sentido de os conselhos gerais
escolherem docentes com experiência em gestão escolar a docentes especializados
em Administração Escolar (um dos ramos das CE).
***
Podem agora esperar-se alterações de vulto por força da descentralização de
competências em matéria educativa? Serão as alterações tão significativas como
as propaladas?
Os municípios têm feito o seu caminho na assunção de competências para que
se sentem vocacionados e/ou nas que lhes interessam por motivos políticos ou da
ação de proximidade.
Sempre vi os municípios ou as freguesias a “inventar” instalações para a
educação pré-escolar, a zelar a manutenção de edifícios e equipamentos (e, mais tarde, a aquisição de novos móveis escolares) e a fornecer recursos em dinheiro e
espécie para material didático, apoio escolar, aquecimento, passeios, festas,
etc. Depois, o Estado não tem sido parco na abertura de mão das competências,
mas as autarquias exigem como contrapartida o envelope financeiro, que é
usualmente incrementado e reforçado nos primeiros tempos. Assim:
O DL n.º 299/84, de 5 de setembro, vem regular a
transferência de competências para os municípios em matéria de transportes
escolares, designadamente, no processo de organização, funcionamento e
financiamento dos transportes escolares. Por este diploma, os transportes
escolares deixaram de constituir competência das escolas, deixando de estar
centralizados nas escolas preparatórias e passaram a centralizar-se nas câmaras
municipais.
Depois, a prática da construção de novos
edifícios escolares passou, em muitos casos, da assunção da direção de projeto,
lançamento de obra e sua direção a cargo do Estado, com o apoio do município, à
responsabilidade das mesmas valências pela Câmara, apoiada pelo Estado.
O DL n.º 43/89, de 3 de fevereiro, criou o conselho
de direção para a gestão financeira nas escoas preparatórias e
secundárias de que fazia parte um representante da autarquia. O Regime de
Autonomia, Administração e Gestão de Escolas, aprovado pelo DL n.º 115-A/98, de
4 de maio, criou a assembleia de escola (à semelhança do DL n.º 172/91, de
10 de maio, que não chegou à generalização e criou o conselho de escola ou de
área), em que tem assento um representante da autarquia.
O DL n.º 75/2008, de 22 de abril (ainda em vigor, com a redação que lhe foi dada
pelo DL n.º 137/2012, de 2 de julho), criou o conselho geral de agrupamento ou de
escola não agrupada, órgão de direção estratégica onde têm assento até três
representantes da autarquia. E nas competências do diretor podem incluir-se as
delegadas pela administração educativa e pela câmara municipal (vd art.os 11.º/1; 12.º/2; 20.º/6). Também
a Câmara tem um apalavra a dizer nos contratos de autonomia (vd art.os 56.º e 57.º)
Por sua vez, o DL
n.º 144/2008, de 28 de julho, transfere para o município as atribuições em
matéria de educação nas seguintes áreas (vd art.º 2.º/1): a) pessoal não docente das
escolas básicas e da educação pré-escolar; b) componente de apoio à família (CAF), sobretudo no fornecimento de refeições
e apoio ao prolongamento de horário na educação pré-escolar; c) atividades de
enriquecimento curricular no 1.º ciclo do ensino básico (AEC); d) gestão do parque escolar
nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico; e) ação social escolar nos 2.º e 3.º ciclos
do ensino básico; e f) transportes escolares relativos ao 3.º ciclo do ensino
básico (esta
já a tinham).
Todavia,
a transferência de atribuições a que se referem as alíneas a), c) e d) depende
da existência de carta educativa e da celebração de contratos de execução pelo
município (vd art.º 2.º/2).
Ora, carta educativa já todos os municípios as tinham em processo de
elaboração, aprovação e homologação (agora estão
desatualizadas); os
contratos foram celebrados por quase metade dos municípios do Continente, os
quais puderam também celebrar contratos específicos para a gestão, em termos
análogos, das escolas básicas e secundárias (vd art.º 13.º), bem como para a gestão das
residências de estudantes que estão na dependência do MEC, desde que observadas
as condições definidas para a transferência do património e do pessoal das
residências para estudantes (vd art.º 14.º/1.2).
É
de referir que, nos termos do seu art.º 1.º. o DL em referência, se estabelece
o quadro de transferência de competências para os municípios em matéria de
educação, de acordo com o regime previsto na Lei n.º 159/99, de 14 de setembro,
dando execução à autorização legislativa constante das alíneas a) a e) e h) do
n.º 1 do artigo 22.º do Orçamento do Estado para 2008, aprovado pela Lei n.º
67-A/2007, de 31 de dezembro. Porém, ficam de fora em relação à dita Lei do
Orçamento: o apoio social a indivíduos ou famílias em situação de precariedade
ou vulnerabilidade; as atividades de animação socioeducativa na rede pública
dos estabelecimentos de ensino pré-escolar; e as atividades de prevenção da
doença e de promoção da saúde.
***
Presentemente, o enquadramento das transferências
para os municípios em matéria educativa é o DL n.º 30/2015, de 12 de fevereiro,
que também estabelece quadro análogo para a saúde e para a ação social.
Estabelece o seu art.º 8.º:
“No
domínio da educação, no que se refere ao ensino básico e secundário, são
delegáveis nos órgãos dos municípios e das entidades intermunicipais as seguintes
competências:
a)
No âmbito da gestão escolar e das práticas educativas:
i) Definição do plano
estratégico educativo municipal ou intermunicipal, da rede escolar e da oferta
educativa e formativa; ii) gestão do calendário escolar; iii) gestão dos
processos de matrículas e de colocação dos alunos; iv) gestão da orientação
escolar; v) decisão sobre recursos apresentados na sequência de instauração de
processo disciplinar a alunos e de aplicação de sanção de transferência de
estabelecimento de ensino; vi) gestão dos processos de ação social escolar;
b)
No âmbito da gestão curricular e pedagógica:
i) Definição de normas
e critérios para o estabelecimento das ofertas educativas e formativas, e
respetiva distribuição, e para os protocolos a estabelecer na formação em
contexto de trabalho; ii) definição de componentes curriculares de base local,
em articulação com as escolas; iii) definição de dispositivos de promoção do
sucesso escolar e de estratégias de apoio aos alunos, em colaboração com as
escolas;
c)
No âmbito da gestão dos recursos humanos:
i) Recrutamento,
gestão, alocação, formação e avaliação do desempenho do pessoal não docente; ii)
recrutamento de pessoal para projetos específicos de base local;
d)
A gestão orçamental e de recursos financeiros;
e)
No âmbito da gestão de equipamentos e infraestruturas do ensino básico e
secundário:
i) Construção, requalificação,
manutenção e conservação das infraestruturas escolares; ii) seleção, aquisição
e gestão de equipamentos escolares, mobiliário, economato e material pedagógico.
E
o art.º 2.º determina que o processo de delegação de competências se concretiza
de forma gradual e faseada através da celebração de contratos
interadministrativos e através de projetos-piloto de um número reduzido de
municípios”.
Fica
de fora, para já, o recrutamento, seleção, gestão e avaliação de professores.
Até quando?
***
A questão pertinente que se coloca perante este ordenamento jurídico-administrativo
é se bastará a licenciatura em CE, quando para a lecionação se exige o
mestrado. Também o MEC exigirá uma PAAC a estes profissionais ou, se trabalham
no âmbito dos municípios, já tudo servirá? Depois, para todas aquelas funções
de elaboração de projetos, gestão, supervisão e avaliação bastará a licenciatura
em CE, porque se trata de funções menores em educação, e colocando os
professores a trabalhar – queira-se ou não – sob a orientação destes
profissionais menos graduados?
Patrícia Figueiredo,
secundada por António Rochette, professor da Universidade de Coimbra acredita
que a municipalização pode implicar a “necessidade” de chamar à cena quem tem
formação superior para compreender a realidade educativa, seja ao nível da
licenciatura, do mestrado ou do doutoramento. Diz ela que “os profissionais das
ciências da educação têm o pensamento e o conhecimento que falta para a tomada
de decisões políticas conscientes”. E os professores não? – pergunto eu.
***
António Rochette levanta ainda a questão do papel do Conselho Municipal de Educação
(CME), criado pelo DL n.º 7/2003, de 15 de janeiro, alterado pela Lei n.º
41/2003, de 22 de agosto, e pela Lei n.º 6/ 2012, de 10 de fevereiro.
Segundo este normativo
legal, cabe-lhe dar parecer vinculativo sobre a carta educativa ou sua revisão,
definir a política educativa municipal e deliberar sobre a rede escolar. Compete-lhe
ainda acompanhar a articulação das escolas com a Câmara Municipal (vd DL n.º 75/2008, art.º 11.º/2) e participar na negociação dos contratos de autonomia (vd id, art.º 56.º/2).
Concordo com o ilustre
professor e com o vereador da educação da Câmara de Matosinhos. É preciso mudar
a composição do CME, colocando lá os diretores dos agrupamentos do concelho,
mas também os empresários, os representantes das entidades culturais e outros
elementos da comunidade.
Mas é sobretudo necessário
que o CME efetivamente funcione, se pronuncie e seja ouvido, independentemente da
municipalização ou não da educação.
Quantos conselhos municipais
de educação foram, por exemplo, chamados a participar na decisão de encerramento
de escolas, de constituição de agrupamentos ou de agregação de agrupamentos? Quantas
vezes intervieram na distribuição de alunos pelas escolas do seu concelho,
deixando, por vezes, aflorar conflitos e interesses?
Não basta dispormos de
normativos legais. Importa que se lhes dê execução? Demais, faz algum sentido perder
tempo um governo com a elaboração de um DL cuja execução exige a celebração voluntária
de um contrato para concretizar uma opção política de vulto? Isto é brincar à
educação, não?
É preciso dar uma grande
volta à educação, que passa, não pelo corte, mas pela reperspetivação e pela valorização
dos objetivos e dos profissionais.
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